Se era necessário que Cristo fosse traído para se cumprirem as Escrituras, como se explica que Judas tenha sido condenado, pois Jesus disse: “Melhor lhe fora que não houvesse nascido” (Mt. 26,24)?
Se Deus vê todas as coisas, vê que vou fazer o mal. Deixa-me, entretanto, a liberdade. Não consente no mal?
É preciso observar, em primeiro lugar, que as profecias não tiram a liberdade de arbítrio do homem; não se pode, por conseguinte, dizer que Judas agiu de tal modo porque de tal modo fôra profetizado o seu procedimento; mas, ao contrário, afirmar-se-á que tal era a profecia porque tal havia de ser a conduta de Judas, Deus tudo sabe de antemão; mas a presciência divina de modo nenhum extingue a liberdade do homem; sabia, pois, desde toda a eternidade que Judas havia de atraiçoar livremente o Divino Mestre.
Aprofundemos ainda a explicação: o Pai Eterno decretou (que seu Filho padecesse como Redentor do inundo, na carne humana. Para obter este efeito, não foi necessário que a Onipotência Divina endurecesse o coração de Judas ou decretasse positivamente o pecado do traidor. Lembremo-nos de que a Santa Igreja condenou como herética a doutrina de Godescalco (+868), o qual afirmava haver uma predestinação direta e positiva para o mal (tese repetida por Calvino no século 16). Não; o mal nunca acontece porque Deus o queira em si; o Criador apenas permite que o homem, por sua livre vontade, torne lacunosos ou carecentes os dons positivos e bons que ele recebe de Deus (sabemos que o mal não é uma entidade positiva, mas mera carência; cf. “Pergunte e Responderemos” 5 pag. 3).
Portanto, o pecado de Judas, que não foi positivamente decretado pelo Senhor Deus, se deve à habitual desordem da concupiscência ou, mais remotamente, à falibilidade do livre arbítrio da criatura; foram a avareza (cf. Jo 12,4-6; 13,29) e o ódio que levaram Judas a atraiçoar o Salvador. Aconteceu, porém, algo de estupendo: o Todo-Poderoso fez que a obra má de Judas ainda servisse a um plano bom, à Redenção do gênero humano! — É neste sentido apenas que se diz que o pecado de Judas estava englobado no piano do Criador expresso pelas Escrituras.
Mas Deus não podia ter impedido a queda de Judas, fazendo que a Paixão de Jesus decorresse sem a traição?
Sem dúvida, podia Deus ter evitado que Judas pecasse; mas, para isto, deveria ter retocado ou mutilado o livre arbítrio do homem. Tal retoque, o Senhor não o quis fazer, pois Êle costuma respeitar os seus dons, não derrogando ao que deu. Deixou, portanto, que os acontecimentos da Paixão se desenrolassem segundo o curso que lhes podiam dar as escrituras livres postas em jogo (Judas contribuiu principalmente com a sua avareza; os Fariseus, com a sua soberba e hipocrisia; o povo judaico, com sua obsessão; Pilatos, com a sua fraqueza de caráter. A Providência Divina apenas quis assegurar a vitória final ao Bem, encaminhando surpreendentemente até os erros e desmandos dos diversos atores para a salvação do gênero humano.
Algo de semelhante se dá em todo pecado. O Senhor deseja a salvação de todos os homens (cf. 1 Tim 2,4) e concede a todos sem exceção a graça suficiente para praticarem o bem; a morte do Redentor na cruz visava, sim, o gênero humano inteiro. O próprio Judas foi intimado por Jesus a tomar consciência da hediondez da traição, quando o Mestre interpelou na última ceia (cf. Mt 26,25). Contudo Deus permite que o homem exerça a sua liberdade, resistindo à graça; caso escolha o Bem, produz ato mais nobre do que se fora forçado; dado, porém, que opte pelo mal, a culpa há de lhe ser atribuída exclusivamente, pois da parte de Deus nada terá faltado para que praticasse o bem.
Vê-se, pois, que o mistério da iniquidade depende, em última análise, da liberdade de arbítrio do homem, arma de dois gumes que o Criador outorgou à criatura para que esta se eleve acima de um autômato, mas que o homem, apesar de todas as solicitações da graça, não raro utiliza para sua ruína (veja-se “PeR” 5 pág. 5-9).
Quanto à sorte eterna de Judas, a tradição exegética costuma interpretar as palavras de Jesus em Mt 20,24 como anúncio de sua condenação definitiva. Contudo tal sentença não é unânime nem obrigatória.