A Regula Fidei contra o Sola Scriptura: como a Tradição formou a Bíblia

Introdução

Um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante no século XVI foi o Sola Scriptura, a ideia de que somente a Escritura deve ser considerada a regra infalível de fé para o cristão. Em outras palavras, segundo esse princípio, a Bíblia é a autoridade final para tudo o que diz respeito à doutrina e à prática da fé.

No entanto, quando olhamos com atenção para a história da Igreja, especialmente os primeiros séculos do cristianismo, surge uma pergunta importante: como esse princípio poderia ter sido vivido pelos cristãos da época, se o cânon bíblico, isto é, a lista oficial dos livros inspirados, ainda não estava definido?

Durante os primeiros quatro séculos, os cristãos não tinham uma “Bíblia fechada” como temos hoje. Havia consenso sobre muitos livros, é verdade, mas também havia dúvidas e divergências sérias sobre outros. Livros como Hebreus, Apocalipse, Tiago e até os Evangelhos circulavam em diferentes regiões com graus variados de aceitação. Ao mesmo tempo, muitos escritos não inspirados, como a Carta de Barnabé, Didaqué ou o Pastor de Hermas, eram lidos em comunidades cristãs como se fossem Escritura inspirada.

Nesse cenário, a questão se torna inevitável: com base em que critério os primeiros cristãos sabiam no que acreditar? Qual era a referência de fé da Igreja antes da definição formal da Bíblia? Será que eles já viviam o princípio do Sola Scriptura, ainda que de forma implícita? Ou será que havia uma outra realidade mais antiga e mais profunda guiando a fé da Igreja?

É sobre isso que trata este artigo. A proposta aqui não é apenas levantar uma dificuldade teórica para o princípio do Sola Scriptura, mas examinar com cuidado o contexto histórico e eclesial da formação do cânon bíblico. Vamos refletir sobre como a Igreja discerniu os livros inspirados, qual foi o papel da Tradição e qual autoridade foi decisiva nesse processo. O objetivo não é polemizar por polemizar, mas mostrar, com base em fatos e na coerência teológica, que a compreensão católica da relação entre Escritura, Tradição e Magistério é muito mais fiel à experiência concreta da Igreja primitiva.

Mais do que um embate entre posições teológicas, esse tema toca na própria maneira como Deus nos comunicou a sua Palavra e como Ele quis que sua verdade fosse guardada e transmitida ao longo dos séculos. Por isso, vale a pena refletir com calma e profundidade.

A natureza da Escritura e o problema do cânon

É bastante comum, nas discussões entre católicos e protestantes, ouvirmos uma distinção que, em si mesma, é válida: a diferença entre a autoridade ontológica da Escritura e a sua autoridade epistemológica. O que isso significa?

De um lado, o protestante afirma — com razão — que a Sagrada Escritura é inspirada por Deus e, por isso, possui autoridade em si mesma, independentemente de qualquer decisão humana. É o que ele chama de autoridade ontológica: a Escritura é Palavra de Deus porque vem do próprio Deus, e não porque algum grupo humano a tenha “tornado” Palavra de Deus.

Por outro lado, também se reconhece a necessidade de sabermos quais livros são, de fato, inspirados, ou seja, quais livros fazem parte da Escritura Sagrada. Essa dimensão é chamada de autoridade epistemológica: é o exercício da Igreja de identificar e normatizar quais textos, entre os muitos que circularam no mundo antigo, realmente pertencem ao conjunto da Palavra inspirada por Deus.

Até aqui, não há grande conflito. O problema surge quando, a partir dessa distinção, se tenta sustentar que a Igreja (ou a Tradição) foi apenas uma espécie de observadora passiva nesse processo, como se a comunidade cristã tivesse simplesmente “reconhecido” livros que já portavam, de forma clara e objetiva, sua própria autoridade divina, sem exercer um verdadeiro juízo normativo.

Mais ainda: muitos protestantes vão além e afirmam que, desde o início, a fé cristã se baseava unicamente nas Escrituras, mesmo antes da definição do cânon, e que todas as outras referências (como os escritos dos Padres e a Tradição oral) eram apenas auxiliares subordinados à Escritura, sem qualquer autoridade vinculante. Mas aqui encontramos uma dificuldade profunda, de ordem histórica, lógica e teológica.

Nos primeiros séculos do cristianismo, a Igreja ainda não possuía um cânon fechado e universalmente aceito. Diversos livros que hoje fazem parte do Novo Testamento foram, durante muito tempo, objeto de dúvidas, debates ou mesmo rejeição por parte de comunidades cristãs legítimas.

Por exemplo:

  • O livro do Apocalipse foi rejeitado em várias regiões do Oriente cristão, inclusive por autores importantes como Eusébio de Cesareia.
  • A carta aos Hebreus era contestada no Ocidente, devido à dúvida sobre sua autoria paulina.
  • A epístola de Tiago também enfrentou resistência, sendo colocada em xeque por figuras como Lutero séculos depois.

Ao mesmo tempo, livros não inspirados, como a Carta de Barnabé, o Pastor de Hermas ou a 1ª carta de Clemente, eram lidos em algumas igrejas como se fossem Escritura.

Não havia um critério óbvio, acessível a qualquer um, que permitisse distinguir os textos inspirados apenas com base na leitura interna do seu conteúdo. A autoridade divina de um texto não “saltava aos olhos” como se fosse uma propriedade química visível, era preciso haver um discernimento, com base em certos critérios doutrinais e espirituais para julgar.

É comum entre muitos protestantes a opinião de que a Igreja primitiva adotou critérios claros para discernir com precisão os livros inspirados como apostolicidade, uso litúrgico, ortodoxia e inspiração. Contudo, a realidade histórica se mostra muito mais complexa e menos uniforme do que essa simplificação sugere. Não há qualquer evidência de um consenso consistente sobre esses critérios entre as diversas comunidades cristãs antigas. Como observa o estudioso protestante Lee Martin McDonald:

Os que estudam esse assunto pela primeira vez quase sempre se surpreendem ao descobrir que as antigas igrejas não deixaram nenhum registro da evolução e formação das suas Escrituras, e também não mencionam quanto tempo foi necessário para obter concordância mais ampla sobre essas questões. […] Não há nenhuma evidência a sugerir que as antigas igrejas chegaram todas às mesmas conclusões ao mesmo tempo, ou que usaram os mesmos critérios para selecionar os livros que incluíram em suas Escrituras.”

(A Origem da Bíblia, p. 19)

Na prática, isso significa que esses critérios só podem ser deduzidos de forma aproximada e retrospectiva. Ou seja, depois que o cânon foi amplamente estabelecido, os estudiosos analisam os livros que foram incluídos e tentam identificar padrões que justifiquem sua aceitação. Mas isso é bem diferente de afirmar cabalmente que tais critérios foram conscientemente aplicados pelas comunidades cristãs primitivas de maneira uniforme e objetiva. Mais ainda: nenhum desses critérios, isoladamente ou mesmo em conjunto, consegue justificar por que todos os livros atualmente canônicos foram aceitos nem explicar por que outros escritos, também antigos e reverenciados, foram rejeitados. Recomendo fortemente a leitura da obra supracitada para aprofundar a questão.

Essa realidade é reconhecida por estudiosos de todas as tradições cristãs de origem apostólica. O próprio Concílio de Cartago, no ano de 397, representou um marco importante no Ocidente ao confirmar uma lista de livros que corresponde ao cânon que a Igreja Católica utiliza até hoje. Mas mesmo depois disso, o debate sobre certos livros continuou em alguns círculos. Foi só com o Concílio de Trento, em 1546, que a Igreja Católica definiu de forma definitiva, dogmática e infalível o cânon da Sagrada Escritura, em resposta às dúvidas levantadas pelos reformadores protestantes.

A implicação lógica: é possível uma regra de fé sem conteúdo definido?

Se a Bíblia é a única regra de fé — como afirma o princípio do Sola Scriptura —, então é necessário saber com clareza o que é a Bíblia. Não basta dizer que “a Escritura tem autoridade”; é preciso saber quais livros possuem essa autoridade.

A analogia que alguns protestantes usam, comparando a Bíblia a uma luz que brilha por si mesma, falha nesse ponto. Uma luz que ninguém sabe onde está, ou que aparece misturada com outras fontes de luz não confiáveis, não pode servir de guia seguro.

Seria como dizer que temos uma Constituição como lei suprema de um país, mas que por séculos ninguém soube exatamente quais artigos realmente pertencem a essa Constituição. Sem um critério claro para identificar quais textos têm autoridade constitucional, qualquer interpretação se torna subjetiva e frágil.

Da mesma forma, se os cristãos dos primeiros séculos não tinham um consenso claro sobre quais livros eram inspirados, como poderiam seguir a Escritura como única regra infalível de fé? Que Escritura seria essa, se os limites do cânon estavam em disputa?

A resposta católica é clara e coerente: a Igreja, fundada por Cristo e guiada pelo Espírito Santo, recebeu autoridade não para “criar” a Escritura, mas para identificá-la com segurança e fidelidade, segundo a fé recebida dos Apóstolos.

E aqui está o ponto central: essa fé recebida não vinha dos livros, ela era anterior aos livros. Era a fé dos Apóstolos transmitida oralmente, celebrada nos sacramentos, guardada pela sucessão dos bispos, vivida na comunhão da Igreja. Essa fé apostólica é o que chamamos de Tradição.

Portanto, antes mesmo de a Bíblia ser um “livro”, a fé cristã já existia. E foi essa fé, recebida, vivida e guardada pela Igreja, que serviu de critério para reconhecer quais livros correspondiam à verdadeira doutrina dos Apóstolos.

Em resumo, a tentativa de sustentar o princípio do Sola Scriptura nos primeiros séculos entra em contradição com os próprios fatos da história cristã. A Bíblia, tal como a conhecemos hoje, só pôde ser formada graças à ação da Igreja, iluminada pela Tradição e guiada pelo Espírito Santo. Antes do cânon, havia uma fé viva, concreta, comunitária e essa fé era a referência real para os primeiros cristãos.

Dizer que a Escritura era a única regra de fé quando ainda não havia consenso sobre o que era Escritura é, no mínimo, um grande anacronismo. Mais ainda: é ignorar que a própria existência do cânon só foi possível porque havia algo anterior à Escritura escrita, a Tradição viva da Igreja, que nasceu com os Apóstolos e continua até hoje.

Regula Fidei e a Tradição Apostólica

Como vimos, a ortodoxia — isto é, a conformidade doutrinal com a fé recebida dos apóstolos — é frequentemente citada como um dos critérios considerados na formação do cânon bíblico. E, nesse ponto, há algo com que podemos concordar: desde os primeiros séculos, os cristãos tinham, sim, uma regra de fé clara, coerente e viva, o que alguns estudiosos chamam de proto-ortodoxia.

Essa regra, porém, ainda não era a Bíblia como a conhecemos hoje, com todos os livros definidos, encadernados e distribuídos de maneira uniforme. O que orientava a fé e a doutrina dos cristãos era algo mais fundamental, mais enraizado na própria vida da Igreja: aquilo que os Padres chamavam de regula fidei — a regra da fé.

regula fidei era um resumo ou compêndio da fé apostólica, transmitido de forma oral, celebrada na liturgia, ensinada no catecumenato e protegida pelo magistério dos bispos. Ela expressava o núcleo essencial da fé cristã: a Trindade, a encarnação do Verbo, a paixão, morte e ressurreição de Cristo, o batismo, a Igreja, a salvação, a esperança da ressurreição dos mortos, entre outros pontos. Era, por assim dizer, o filtro doutrinal que guiava a vida da Igreja, antes mesmo que o cânon da Escritura estivesse plenamente definido.

A voz dos Padres da Igreja

Vários Padres da Igreja testemunham esse papel central da regula fidei. Um dos mais importantes é Santo Irineu de Lyon, discípulo de São Policarpo, que por sua vez foi discípulo direto do apóstolo João. Irineu escreveu por volta do ano 180 d.C., em um contexto de combates contra as heresias gnósticas. Ele afirma:

Como já observei, a Igreja, tendo recebido esta pregação e esta fé, embora espalhada por todo o mundo, conserva-a com zelo, como se habitasse uma única casa. Ela crê nestes pontos [doutrinários] como se tivesse uma só alma e um mesmo coração; proclama-os, ensina-os e transmite-os com perfeita harmonia, como se tivesse apenas uma única boca. Pois, embora as línguas do mundo sejam diversas, o conteúdo da tradição é um e o mesmo. As Igrejas que foram fundadas na Germânia não creem nem transmitem nada diferente, nem as da Espanha, nem as da Gália, nem as do Oriente, nem as do Egito, nem as da Líbia, nem as que foram estabelecidas nas regiões centrais do mundo. Assim como o sol, criatura de Deus, é um e o mesmo em todo o mundo, assim também a pregação da verdade brilha em toda parte e ilumina todos os homens dispostos a conhecer a verdade.

(Contra as Heresias, I, 10, 2)

Observe que Irineu não apela à Bíblia como critério supremo, mas à fé que a Igreja recebeu dos apóstolos. Essa fé é anterior ao cânon, anterior à definição formal da Escritura, e é ela que serve de régua para julgar doutrinas e discernir quais textos estão ou não em conformidade com o que os apóstolos ensinaram.

Outros Padres, como TertulianoOrígenesCiprianoAtanásio e tantos mais, também no oriente, testemunham a existência e o uso dessa regra de fé como critério normativo. Por exemplo, Tertuliano escreve:

Visto que o Senhor Jesus Cristo enviou os apóstolos para pregarem, (a nossa regra é:) que não devem ser recebidos como pregadores senão aqueles que foram designados por Cristo; pois ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo (cf. Mt 11,27). Ora, o Filho não parece tê-lo revelado a ninguém além dos apóstolos, que Ele enviou a pregar — aquilo, é claro, que Ele lhes havia revelado. […] Se as coisas são assim, então é igualmente evidente que toda doutrina que concorda com essas igrejas apostólicas — moldes e fontes originais da fé — deve ser considerada verdadeira, como contendo sem dúvida aquilo que essas igrejas receberam dos apóstolos, os apóstolos de Cristo, e Cristo de Deus.

(De Praescriptione Haereticorum, 21)

São Basílio Magno escreve:

Das crenças e práticas que, quer aceitas universalmente, quer publicamente exigidas, são preservadas na Igreja, umas provêm de ensinamento escrito; outras, recebemos transmitidas em mistério pela tradição dos apóstolos; e ambas, no que se refere à verdadeira religião, têm igual força.

(Sobre o Espírito Santo, 27)

Critério funcional para o reconhecimento do cânon

regula fidei, portanto, não era apenas um resumo doutrinário para instrução dos catecúmenos. Ela serviu, de fato, como um dos critérios mais importantes usado pela Igreja para julgar se um livro merecia ou não ser lido como Escritura inspirada por Deus.

Os textos que expressavam de maneira clara e coerente a fé apostólica, isto é, os que estavam em sintonia com a regula fidei, foram aceitos na liturgia e, pouco a pouco, reconhecidos como canônicos. Os que continham doutrinas estranhas ou ambíguas, mesmo que tivessem aparência piedosa ou fossem atribuídos a autores respeitados, foram rejeitados.

Enquanto muitos protestantes sustentam que somente a Escritura é a norma normativa da fé cristã (norma normans non normata), e que a Tradição seria apenas uma norma derivada (norma normata), os fatos históricos apontam justamente o contrário: foi a própria Escritura que, em sua formação, se submeteu ao crivo da Tradição Apostólica viva.

Em outras palavras, os livros foram julgados à luz da fé da Igreja e não o contrário. A Tradição exerceu, nesse processo, a função de norma normativa. A Bíblia foi formada a partir do testemunho contínuo da Igreja, não como uma autoridade autônoma que se impôs à comunidade, mas como um fruto discernido por ela com base na fé recebida dos apóstolos.

Esse fato é devastador para o princípio do Sola Scriptura. Se a Escritura é a única norma normativa (norma normans non normata), como explicamos que ela tenha sido formada por meio de um juízo normativo anterior e externo a ela? Se o cânon foi normatizado pela Regula Fidei, então essa Regula Fidei também é norma normativa. O Sola Scriptura, nesse caso, colapsa em sua própria premissa.

É importante ressaltar que essa regula fidei não era uma “tradição humana” no sentido pejorativo que às vezes se atribui a certas práticas posteriores. Ela era a memória viva da fé dos apóstolos, mantida com zelo nas comunidades cristãs sob a liderança dos bispos, em sucessão direta dos apóstolos.

Não era um “plano B” para substituir a Escritura, mas o próprio ambiente espiritual e doutrinal em que a Escritura nasceu, foi acolhida e passou a ser lida como Palavra de Deus.

E essa Tradição não foi abandonada quando o cânon foi definido. Ao contrário: a Igreja sempre continuou a ler a Escritura dentro da fé que a produziu. É por isso que, até hoje, a Igreja Católica ensina que a Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição e o Magistério não estão em concorrência, mas formam juntos uma única regra de fé indivisível (cf. Dei Verbum, 10).

Essa realidade histórica e teológica é uma dificuldade incontornável para o princípio do Sola Scriptura. Afinal, se a fé foi vivida, protegida e ensinada antes do cânon e se foi essa fé que serviu de base para a formação do próprio cânon, então a Escritura não pode ser isolada da Tradição, nem considerada como a única autoridade infalível. A Igreja só pôde reconhecer a Palavra escrita porque já vivia a Palavra transmitida e vivida.

A Igreja como sujeito normativo: reconhecimento ou determinação?

Ao discutir a origem do cânon bíblico, muitos protestantes recorrem a uma analogia bastante conhecida: dizem que a Igreja não “determinou” o cânon das Escrituras, mas apenas o reconheceu, tal como um ourives que examina uma pepita de ouro e constata que ela é, de fato, ouro verdadeiro. Nesse raciocínio, os livros inspirados já “eram” Escritura desde o momento em que foram escritos e a função da Igreja teria sido apenas identificar, entre os muitos escritos cristãos existentes, aqueles que realmente possuíam esse caráter sagrado.

Essa comparação parece correta à primeira vista, mas esconde um problema sério. Ela parte de pressupostos que não se sustentam à luz da realidade histórica, nem resistem a uma análise teológica mais profunda. Em outras palavras, a analogia falha e falha em pontos cruciais.

A primeira falha da analogia do ourives é de ordem epistemológica. O ouro pode ser reconhecido por propriedades empíricas, mensuráveis e constantes como peso, cor, densidade, reatividade química. O perito analisa essas propriedades e conclui, com base em critérios objetivos, se a substância é realmente ouro.

Mas a inspiração divina de um texto não funciona assim. Ela não é uma propriedade física ou visível do documento, nem algo que se possa comprovar com experimentos. A inspiração é uma realidade espiritual, interna ao próprio ato de composição do texto, e que transcende a observação humana direta.

Ou seja, não há nenhuma “fórmula mágica” que permita, apenas lendo um texto, saber com certeza se ele é inspirado por Deus. Não basta que o conteúdo seja edificante, nem que tenha sido escrito por um apóstolo, nem que seja citado por um Padre da Igreja. Afinal, existem textos não canônicos com doutrina sã, e textos canônicos (como o Cântico dos Cânticos ou Eclesiastes) que nem sempre pareceram edificantes à primeira vista. A inspiração não se prova por aparência.

Logo, o ato de reconhecer a inspiração não é puramente descritivo ou técnico, mas envolve necessariamente um juízo espiritual e eclesial, orientado por uma autoridade confiável. É exatamente aqui que entra a Igreja.

A segunda falha da analogia protestante está em considerar o juízo da Igreja como se fosse uma simples constatação de um fato pré-existente como se a Igreja estivesse apenas “apontando” aquilo que já era evidente por si mesmo.

Mas esse não foi o processo histórico vivido pelos cristãos dos primeiros anos da Igreja. O reconhecimento do cânon demorou séculos, envolveu debates intensos, diferentes listas, dúvidas, exclusões e inclusões, tudo isso feito no seio da vida e da autoridade da Igreja. O que houve não foi uma simples “observação imparcial”, mas um discernimento doutrinal profundo, conduzido por comunidades eclesiais, sínodos e, finalmente, concílios.

Mais ainda: quando a Igreja confirmou o cânon, especialmente nos Concílios regionais de Hipona (393), Cartago (397 e 419), e finalmente no Concílio de Trento (1546), ela o fez com autoridade normativa, não apenas como uma sugestão. Ela definiu, de modo vinculante, quais livros deveriam ser recebidos como Palavra de Deus por todos os fiéis. E o fez porque recebeu autoridade de Cristo para isso.

Como diz Jesus aos apóstolos:

Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos rejeita, a mim rejeita. (Lucas 10,16)

Esse versículo deixa claro que a autoridade dos apóstolos e, por sucessão, a autoridade da Igreja não é apenas administrativa ou pedagógica, mas representativa do próprio Cristo. Por isso, quando a Igreja fala com seu Magistério autêntico, ela o faz com autoridade divina. E essa autoridade não se restringe à moral ou à disciplina: ela se estende à fé e à doutrina, incluindo o discernimento da Escritura.

A fé na Escritura depende da autoridade da Igreja

Essa visão é confirmada por um dos maiores Padres da Igreja: Santo Agostinho. Num famoso trecho de sua obra Contra a Carta de Maniqueu, ele escreve:

Eu não creria no Evangelho, se não fosse movido pela autoridade da Igreja Católica.

(Contra ep. Manichaei, 5,6)

Essa frase é uma verdadeira pedra no sapato para qualquer tentativa de defender o princípio do Sola Scriptura nos moldes históricos. Agostinho não está negando a inspiração da Escritura, mas reconhecendo que a sua certeza de que os Evangelhos são Palavra de Deus vem, em última instância, da autoridade da Igreja, a mesma Igreja que guardou, transmitiu e discerniu os textos ao longo dos séculos.

Se um crente só pode saber com certeza quais livros pertencem ao cânon porque confia no juízo da Igreja, então é evidente que a Igreja não é apenas um canal de transmissão, mas um verdadeiro sujeito normativo no reconhecimento da Palavra inspirada.

Essa autoridade da Igreja não nasce da vontade humana, nem de um consenso entre teólogos, nem da tradição cultural. Ela é um dom divino. Foi o próprio Jesus quem confiou à sua Igreja a missão de ensinar com autoridade (cf. Mt 28,18-20), de ligar e desligar (cf. Mt 16,19; 18,18), de ser “a coluna e o fundamento da verdade” (cf. 1Tm 3,15).

Portanto, quando a Igreja proclama o cânon das Escrituras, ela não o faz como quem “opina”, mas como quem proclama com autoridade apostólica aquilo que é verdadeiro e vinculante para todos os fiéis. O cânon, nesse sentido, não é um simples consenso humano, mas uma verdade discernida pela Igreja com a assistência do Espírito Santo.

A ideia de que a Igreja apenas “reconheceu” o cânon, como se estivesse observando uma propriedade intrínseca nos textos, não corresponde à realidade dos fatos e falha em capturar a natureza do processo eclesial. O que ocorreu foi um ato normativo, realizado com base na fé recebida dos apóstolos (regula fidei) e na autoridade confiada por Cristo à sua Igreja.

Reconhecer isso não diminui a Escritura, mas a coloca no seu devido lugar: como Palavra de Deus discernida, transmitida e protegida pela comunidade visível que o próprio Deus instituiu para ser guardiã da verdade.

O problema epistemológico do Sola Scriptura: o caso do cânon

Um ponto raramente enfrentado com seriedade pelos defensores do Sola Scriptura foi muito bem expresso por Patrick Madrid ao apontar que o conhecimento do cânon bíblico precisa ser tão autoritativo e infalível quanto o seu conteúdo. Afinal, de que serve termos uma Escritura inspirada se não sabemos com certeza quais livros pertencem a ela? Mais ainda: esse conhecimento deve ser vinculativo a todos os cristãos, caso contrário, cada indivíduo poderia moldar o cânon conforme suas convicções pessoais. Além disso, é necessário reconhecer que esse mesmo cânon autoritativo, infalível e vinculativo faz parte do conjunto da Revelação divina. Ou então estaríamos aceitando, como base da fé, uma lista formada por tradições humanas, o que contradiz a própria lógica do Sola Scriptura. E é justamente aqui que reside o impasse: esse conhecimento não está na Escritura.

A resposta protestante mais comum apela para o testemunho interior do Espírito Santo. A própria Confissão de Westminster, uma das mais influentes do protestantismo reformado, afirma:

A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus. […] a nossa plena persuasão e certeza da sua infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna do Espírito Santo, que pela palavra e com a palavra testifica em nossos corações.

(CFW, IV e V)

Na prática, isso equivale a dizer: “Sabemos que é inspirado porque sentimos que é inspirado.” Mas esse critério subjetivo é completamente inútil como fundamento doutrinal universal. Afinal, um mórmon poderia dizer o mesmo sobre o Livro de Mórmon, um muçulmano sobre o Corão, ou um gnóstico sobre seus evangelhos apócrifos.

Além disso, se esse testemunho interior do Espírito é a única fonte de certeza, então o cânon se torna relativo e não vinculativo, cada crente poderia aceitar ou rejeitar livros com base em sua experiência pessoal. Mas isso contradiz frontalmente a própria lógica da revelação cristã, que é objetiva, pública e vinculante.

É por isso que o cânon só pode ser compreendido como parte da Revelação divina recebida e guardada pela Igreja, sob a assistência do Espírito Santo. Negar isso é cair em uma espécie de “agnosticismo canônico”, onde a Bíblia é exaltada em teoria, mas seu conteúdo é uma questão de opinião pessoal.

Paradoxalmente, ao apelar para os concílios antigos e para os Padres da Igreja na tentativa de justificar o cânon, os protestantes reconhecem implicitamente aquilo que negam formalmente: o valor normativo da Tradição e do Magistério. Eles rejeitam o “testemunho de homens e da Igreja”, mas recorrem justamente a esse testemunho para montar a própria Bíblia que usam.

A conclusão é inescapável: sem uma autoridade visível, assistida pelo Espírito Santo, o cânon não pode ser conhecido com certeza e, portanto, o Sola Scriptura não pode funcionar.

Sola Scriptura: um princípio anacrônico

O Sola Scriptura é frequentemente apresentado como um retorno à fé original da Igreja. Os reformadores protestantes, no século XVI, defendiam que estavam simplesmente restaurando o modelo bíblico e apostólico, supostamente corrompido pela Igreja Católica ao longo da história. Mas quando examinamos com cuidado a realidade da Igreja primitiva, essa tese simplesmente não se sustenta.

A verdade é que, embora bem-intencionado por parte de muitos, o Sola Scriptura é um princípio anacrônico, ou seja, uma ideia que foi colocada de forma artificial no passado, mas que não existia nem como conceito nem como prática nos primeiros séculos do cristianismo. Ele parte de um contexto posterior e tenta retroceder a um tempo em que sua aplicação era, de fato, impossível.

Como vimos, nos quatro primeiros séculos da Igreja não havia uma lista uniforme de livros bíblicos aceita por todos os cristãos. Diversas comunidades utilizavam conjuntos diferentes de escritos, alguns que mais tarde foram reconhecidos como canônicos, outros que acabaram sendo rejeitados.

Essa diversidade não era fruto de desleixo, mas da própria natureza histórica do cristianismo nascente, que se expandia rapidamente em contextos culturais diferentes, com comunicações lentas e sem uma estrutura unificada de controle doutrinário imediato.

Diante disso, é incoerente afirmar que os primeiros cristãos seguiam unicamente a Escritura como regra infalível de fé, se nem mesmo havia consenso sobre quais livros eram Escritura. O princípio do Sola Scriptura exige, por definição, um cânon definido e acessível, algo que simplesmente não existia na maior parte dos primeiros séculos.

A fé era transmitida pela Tradição viva da Igreja

Diante da ausência de um cânon definido e universal nos primeiros séculos, a fé cristã era transmitida e preservada pela Tradição Apostólica viva: na pregação oral, na liturgia, na instrução catequética, nos sacramentos e, sobretudo, na sucessão episcopal, os bispos, legítimos herdeiros dos apóstolos, que guardavam e transmitiam a fé recebida com fidelidade. Era essa vida eclesial concreta, anterior ao cânon completo, que assegurava a integridade da doutrina cristã em meio às incertezas canônicas e aos desafios doutrinais.

A fé cristã era vivida antes de ser escrita. A pregação apostólica foi o primeiro anúncio da salvação. Somente depois é que parte desse conteúdo foi colocada por escrito, e ainda assim, nunca com a intenção de substituir a Tradição viva da Igreja.

É por isso que a própria Bíblia atesta a importância dessa Tradição não escrita. São Paulo escreve:

Portanto, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos ensinamos, seja por palavra, seja por carta nossa. (2Ts 2,15)

Observe que o apóstolo não faz distinção entre a autoridade da tradição oral e a da tradição escrita. Ambas são transmitidas com a mesma autoridade apostólica.

Outro exemplo está em 1Cor 11,2:

Eu vos louvo por vos lembrarem de mim em tudo e por manterem as tradições exatamente como eu as transmiti a vós.

Assim, mesmo os autores sagrados reconhecem que há ensinamentos que foram passados e que esses ensinamentos são vinculantes para a fé cristã.

Os hereges também usavam a Escritura

Outro dado histórico muito importante, frequentemente ignorado, é que os hereges também apelavam à Escritura para justificar seus desvios doutrinários. Grupos como os marcionitas, os montanistas, os ebionitas, os arianos e, sobretudo, os gnósticos, todos afirmavam basear suas crenças em “textos sagrados”.

Marcião, por exemplo, elaborou sua própria versão do Evangelho de Lucas e das cartas de Paulo, rejeitando o Antigo Testamento e partes do Novo que não se adequavam à sua teologia dualista. Os gnósticos, por sua vez, escreviam seus próprios “evangelhos” e reinterpretavam os textos apostólicos com base em seus esquemas esotéricos.

Diante disso, a Igreja não respondeu apenas com a Escritura, porque ela sabia que a Escritura, isolada da Tradição, pode ser facilmente manipulada. O critério definitivo sempre foi a fé recebida dos apóstolos, viva e protegida na comunhão da Igreja.

É por isso que os Padres nunca se cansaram de repetir que o verdadeiro ensinamento cristão só pode ser encontrado na Igreja que tem sucessão apostólica e permanece fiel à Tradição recebida. Santo Irineu, por exemplo, enfrentando os gnósticos, escreveu:

O verdadeiro conhecimento consiste na doutrina dos apóstolos, na constituição antiga da Igreja em todo o mundo, e na manifestação distinta do Corpo de Cristo segundo a sucessão dos bispos, por meio da qual foi transmitida aquela Igreja que existe em todos os lugares e chegou até nós, sendo guardada e preservada sem falsificações das Escrituras, por um sistema doutrinal completíssimo, sem receber acréscimos nem sofrer diminuições nas verdades que ela crê.

(Contra as Heresias, IV, 33,8)

Um princípio teologicamente insustentável

Diante de tudo isso, é difícil evitar a conclusão: o princípio do Sola Scriptura, tal como formulado pelos reformadores, não é praticável nos primeiros séculosnão tem base histórica, e não é bíblico.

  • Não é praticável, porque sem um cânon definido, não havia como aplicar o princípio de forma concreta.
  • Não é histórica, porque a Igreja sempre viveu da Tradição, antes mesmo de ter uma Escritura consolidada.
  • Não é bíblica, porque a própria Escritura dependeu da autoridade da Igreja para a sua formação.

Além disso, ao propor a Escritura como única fonte de fé, o protestantismo se viu obrigado a negar parte da própria Escritura que fala da Tradição (como 2Ts 2,15), ou a reinterpretar seu significado em termos não compatíveis com a prática da Igreja primitiva.

O resultado foi a fragmentação doutrinária visível nas milhares de denominações protestantes todas alegando seguir “somente a Bíblia”, mas chegando a conclusões contraditórias. Isso mostra, na prática, que a Escritura, separada da Tradição e da autoridade da Igreja, não é suficiente para preservar a unidade da fé.

Conclusão: o fracasso do Sola Scriptura

Ao longo desta análise, examinamos o princípio protestante do Sola Scriptura sob diversos ângulos: histórico, lógico, teológico e prático. E o resultado é claro: a tese de que a Escritura sempre foi — e deve ser — a única regra infalível de fé para os cristãos não se sustenta.

Não se trata de um ataque gratuito, nem de uma simples discordância teológica. Trata-se de olhar com honestidade para os fatos e reconhecer que o Sola Scriptura é uma doutrina anacrônica, ou seja, uma ideia que foi concebida no século XVI, mas que tenta se projetar artificialmente sobre os primeiros séculos da Igreja, onde ela simplesmente não existia e nem poderia existir.

Além disso, o próprio ato de definir quais livros fazem parte da Bíblia (o cânon) requer uma autoridade exterior à Escritura, capaz de fazer um juízo normativo baseado em princípios evidentemente extra-escriturísticos, a regula fidei. Negar isso é ignorar o processo real e complexo da formação do cânon, um processo que envolveu séculos de discernimento, critérios doutrinais e decisões eclesiais guiadas pela fé da Igreja.

Dizer que a Igreja apenas “reconheceu” os livros inspirados, como se isso fosse uma mera observação, é ignorar a natureza espiritual e comunitária da inspiração. A inspiração divina não é algo que possa ser “detectado” por análise textual ou sentimento pessoal. Ela exige um discernimento espiritual que só é possível à luz da fé apostólica, vivida e preservada na comunhão da Igreja.

Do ponto de vista teológico, o princípio do Sola Scriptura cai em uma contradição: ele exige que a Bíblia seja a única autoridade infalível, mas essa mesma Bíblia não se identifica a si mesma como tal e não fornece uma lista dos seus próprios livros. Em outras palavras, a Escritura não te dá nem o “Sola”, nem a “Scriptura”.

O que se impõe, portanto, é um reconhecimento honesto: o princípio do Sola Scriptura não corresponde à fé da Igreja primitivanão encontra apoio nos testemunhos dos primeiros cristãos e não tem condições de sustentar, por si só, a integridade da doutrina cristã.

Se queremos realmente ser fiéis à fé dos apóstolos, aquela vivida, sofrida e transmitida pelos mártires, bispos e santos dos primeiros séculos, precisamos deixar de lado ideias posteriores que distorcem essa herança. O Sola Scriptura é uma dessas ideias. Por mais bem intencionado que tenha sido, ele não resiste à luz da história, da razão nem da própria Escritura.

A proposta aqui não é condenar os irmãos separados que professam sua fé com sinceridade, mas sim encorajá-los a refletir sobre os fundamentos da própria crença. Se o princípio do Sola Scriptura não encontra respaldo nem na prática da Igreja primitiva, nem na realidade histórica da formação do cânon, então talvez seja hora de reconsiderar sua validade e redescobrir, com humildade, a riqueza da fé que desde o início foi vivida em comunhão com a Igreja, aquela que São Paulo chamou de “coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15).

Objeções

Objeção #1: A cronologia dos fatos

A precedência temporal da Tradição oral em relação à Escritura não implica, necessariamente, que a Tradição tenha autoridade normativa sobre a Escritura. Ela pode ter simplesmente cumprido um papel transitório, sendo substituída pela Escritura uma vez que o texto inspirado foi escrito e reconhecido.

Resposta

De fato, a simples precedência temporal não implica autoridade normativa. Mas o artigo não baseia o seu argumento na cronologia pura dos acontecimentos, mas na estrutura interna da Revelação conforme nos foi entregue por Cristo aos apóstolos e por eles à Igreja. Ou seja, o argumento não é cronológico, mas ontológico e teológico: a Tradição não só veio antes da Escritura, como também lhe dá origem, contexto, conteúdo e reconhecimento.

A Tradição Apostólica, chamada de parádosis em grego, é o ato vivo de transmitir a fé. É anterior à Escritura enquanto fonte da própria Revelação, pois os apóstolos não escreveram imediatamente tudo o que receberam de Cristo. Durante anos, a fé foi transmitida exclusivamente pela pregação oral, pela celebração litúrgica, pela vida comunitária e pelo ensinamento dos bispos, como nos atesta o Novo Testamento:

“Portanto, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos ensinamos, seja por palavra, seja por carta nossa.” (2Ts 2,15)

Paulo não contrapõe Tradição e Escritura; pelo contrário, afirma ambas como fontes vinculantes e igualmente apostólicas. O conteúdo da fé cristã foi inicialmente comunicado por meio da Tradição oral, e foi da Tradição que a Escritura nasceu e não o contrário. Os evangelhos foram escritos porque havia uma fé já vivida, que precisava ser transmitida com fidelidade no contexto das comunidades em expansão. A Tradição é, portanto, ontologicamente constitutiva da Revelação: não é apenas o “antes”, mas o “de onde” a Escritura brota.

Objeção #2: Acusação de circularidade

Por que os católicos creem que a Igreja tem autoridade infalível? Porque a Tradição e a Escritura assim ensinam. Mas por que confiam na Tradição? Porque a Igreja a atesta. E por que confiam na Escritura? Porque a Igreja canonizou os livros. Isso não é circularidade? A Igreja se autorreferencia para fundamentar sua própria autoridade. Isso é uma petição de princípio teológica.

Resposta

Essa objeção parte de um mal-entendido epistemológico e teológico fundamental. A acusação de circularidade só faria sentido se a Igreja usasse sua própria autoridade para legitimá-la, sem qualquer referência externa e objetiva. Mas não é isso que a Igreja faz, nem no plano da fé, nem no plano da história.

A fé católica não se baseia em um sistema fechado de autoafirmação institucional. Ela parte de um acontecimento real, histórico e sobrenatural: a Encarnação do Verbo, a vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo. Este acontecimento não é apenas uma ideia ou uma mensagem, mas um evento divino no tempo e no espaço. E foi dentro desse evento que Cristo instituiu visivelmente uma Igreja, confiando-lhe uma missão, uma doutrina e uma autoridade, com a garantia permanente da assistência do Espírito Santo.

Logo, nós não cremos na autoridade da Igreja porque as Escrituras dizem que ela tem autoridade. Cremos na autoridade da Igreja porque Jesus Cristo a instituiu com essa missão, antes mesmo de qualquer linha do Novo Testamento ser escrita.

As Escrituras testemunham essa missão, sim, mas não a originam. A autoridade da Igreja é anterior à Escritura, porque é derivada diretamente de Cristo. Em outras palavras: não é a Bíblia que “cria” a Igreja; é a Igreja, instituída por Cristo, que gera, transmite, canoniza e interpreta a Escritura com fidelidade.

A sucessão lógica e histórica é esta:

  1. Cristo fundou a Igreja e confiou a ela o ensino da verdade (Mt 28,18-20; Lc 10,16);
  2. Essa Igreja pregou, celebrou, viveu e ensinou a fé apostólica durante décadas antes de escrever o Novo Testamento;
  3. Foi essa mesma Igreja que discerniu e canonizou os escritos inspirados, sob a assistência do Espírito Santo (Jo 14,26; 16,13);
  4. Portanto, a Escritura deriva da missão da Igreja e não o contrário.

Por isso, não há circularidade. O que existe é uma cadeia coerente de transmissão da Revelação, que começa em Cristo, passa pelos apóstolos, continua na sucessão episcopal e chega até nós por meio da Tradição viva e da Escritura, como fontes complementares e inseparáveis.

Objeção #3: Sola Scriptura não exige um cânon fechado

Mesmo sem um cânon fechado, havia Escritura suficiente para que o princípio do Sola Scriptura fosse praticável. A autoridade da Escritura já era reconhecida nas comunidades cristãs primitivas, e mesmo que não houvesse unanimidade sobre todos os livros, aqueles que eram aceitos já podiam servir como base normativa da fé.

Resposta

A objeção falha por uma razão decisiva: é epistemicamente impossível, tanto do ponto de vista lógico quanto teológico, aplicar o princípio do Sola Scriptura sem saber com certeza o que constitui “a Escritura”.

O Sola Scriptura não significa apenas que “escritos inspirados têm autoridade”, isso qualquer cristão admite. A tese protestante afirma que somente a Escritura é a autoridade suprema e infalível para a fé cristã (norma normans non normata). Ora, essa norma não pode funcionar como um princípio universal vinculativo para todos os cristãos com meia Bíblia ou com Bíblias variáveis em diferentes comunidades. É necessário que seja identificada com exatidão, completude e certeza. Do contrário, ela não pode cumprir a função normativa que se lhe atribui. Um critério normativo não pode ser normativo se seu conteúdo está em aberto.

Pense na Constituição de um país. Suponha que por séculos ninguém saiba com segurança quais são os artigos legítimos dessa Constituição. Há versões diferentes em circulação, cláusulas em disputa, livros usados numa região e rejeitados em outra. É possível dizer que esse país vive “sob a autoridade da Constituição”? É evidente que não. Da mesma forma, sem um cânon fechado, o cristão não tem como saber com autoridade o que pertence à Escritura. E se não sabe o que é a Escritura, não pode invocá-la como única regra infalível. Qualquer aplicação se torna, no máximo, pessoal ou local, mas nunca universal, infalível e normativa, como exige o Sola Scriptura.

Alguns tentam mitigar o problema alegando que havia um “núcleo de livros” consensualmente aceitos (Evangelhos, Paulo etc.). Mas isso não resolve o problema, só o desloca:

Quem define esse núcleo? Com qual autoridade? Por quais critérios? O próprio conceito de “consenso” não é normativo, mas descritivo. E como mostram os dados históricos, esse consenso era parcial e frequentemente regional.

Bíblia parcial é Bíblia normativa? Bíblias divergentes, com diferentes composições em diferentes comunidades, podem ser vinculativas para todos os cristãos como se fossem a única regra infalível? Se Tiago ou Apocalipse foram rejeitados por séculos, e hoje são reconhecidos como inspirados, então cristãos daquele tempo ou rejeitavam a Palavra de Deus ou estavam sob uma norma incompleta. Ambas as alternativas são incompatíveis com a suficiência normativa da Escritura.

Este é o ponto central e inescapável: a Escritura não contém em si a lista dos seus próprios livros. Nenhum livro bíblico define o cânon. Portanto, para que a norma “Escritura” funcione como critério normativo supremo, é preciso um juízo exterior e anterior que a identifique com certeza.

E aqui está a contradição protestante: eles se valem do fruto (o cânon) mas negam a árvore (Tradição e Magistério) que o produziu. A Bíblia que usam é resultado de uma Igreja que eles dizem ser falível, mas cujo juízo aceitam como infalível apenas neste ponto. Isso é metodologicamente incoerente.

O próprio teólogo protestante Willi Marxsen, em uma análise honesta, admite:

A teologia protestante às vezes é míope a esse respeito. Ela concorda que o cânon surgiu sob a supervisão do Espírito, mas a consequência inevitável dessa visão é que a norma para a igreja para todo o tempo não é mais o Novo Testamento, mas o Espírito Santo que guiou a igreja. No entanto, como o trabalho do Espírito não pode ser mostrado como o trabalho do Espírito, a fé deve ser focada na igreja como o veículo do Espírito, e isso significa que a igreja seria sua própria norma. Estas são as únicas escolhas: Ou a decisão do século IV está sujeita a revisão, tornando assim todas as decisões da igreja passíveis de revisão, ou a tradição (como é comumente entendida) se torna a norma. A Igreja Católica Romana adotou a última posição que, em suas implicações, é de longe a mais consistente. Não devemos negligenciar isso. A esta altura, deve ser evidente que a visão que os protestantes mantiveram desde a Reforma não é uma verdadeira alternativa.

(Willi Marxen, The New Testament as de Church’s book, pg. 18-20)

Objeção #4: Analogia com Newton e a gravidade

“A Igreja não nos deu o cânon do Novo Testamento mais do que Sir Isaac Newton nos deu a força da gravidade. Deus nos deu a gravidade… Newton não criou a gravidade, mas a reconheceu.” (J.I. Packer, God Has Spoken, 3d ed.)

Resposta

A analogia proposta por Packer é engenhosa, mas profundamente falaciosa — tanto no plano epistemológico quanto no teológico. Ela pressupõe um paralelo entre a descoberta científica de uma realidade natural objetiva (a gravidade) e o discernimento eclesial da Revelação divina escrita (o cânon da Escritura). Essa comparação fracassa por várias razões:

Primeiro, porque a força da gravidade é uma realidade física mensurável. Newton não precisou “crer” na gravidade — ele a observou por meio de fenômenos naturais repetíveis e verificáveis. Sua função foi descrever matematicamente o que podia ser observado por qualquer outro cientista, independentemente de fé ou tradição.

Já a inspiração divina dos livros bíblicos é uma realidade espiritual, que não pode ser observada, medida ou testada empiricamente. Ninguém pode “ver” a inspiração ao ler um texto. Dois escritos antigos podem parecer igualmente piedosos, coerentes e até ortodoxos, mas apenas um pode ser inspirado. A distinção entre os dois não está disponível à observação científica. Ela exige um discernimento espiritual e eclesial, iluminado pelo Espírito Santo (cf. Jo 16,13).

Portanto, enquanto Newton descreve leis naturais com base em dados sensoriais objetivos, a Igreja não apenas “reconhece”, mas discerniu, entre escritos diversos, quais são ou não Palavra de Deus — o que envolve um juízo normativo e espiritual que transcende o modelo de investigação científica.

Outro problema com esta analogia é que ela pressupõe que o cânon do Novo Testamento era tão evidente quanto a gravidade bastando ser “reconhecido”. Mas os fatos históricos contradizem completamente essa suposição. O processo de formação do cânon levou mais de três séculos e envolveu dúvidas reais, debates intensos e critérios teológicos disputados. Muitos livros hoje considerados canônicos foram rejeitados ou suspeitos em várias regiões enquanto outros, hoje tidos como apócrifos, foram amplamente lidos como Escritura inspirada.

Se o cânon era tão evidente quanto a gravidade, por que tantos santos, doutores e comunidades cristãs discordaram sobre ele por séculos? A única conclusão coerente é esta: o cânon não “se impôs” automaticamente. Ele foi discernido, com critérios doutrinários, litúrgicos e apostólicos, isto é, com referência à fé viva da Igreja (regula fidei).

Por fim, o dr. Packer confunde duas ordens distintas: Deus é o autor da Revelação, Ele inspirou os autores sagrados. Mas a Igreja é o sujeito histórico do reconhecimento normativo da Revelação escrita. Ou seja: a Escritura foi de fato inspirada por Deus, mas somente a Igreja, sob assistência do Espírito Santo, pôde discernir quais livros são inspirados e quais não são.

E esse discernimento não é uma constatação passiva, como se os livros brilhassem em dourado ou tivessem uma aura visível. É um juízo feito a partir da Tradição apostólica viva, pela autoridade confiada à Igreja (cf. Mt 28,18-20; Jo 20,21-23; 1Tm 3,15). Ao contrário do cientista, que reconhece leis naturais “visíveis”, a Igreja exerce um juízo espiritual, normativo e assistido por Deus.

Packer ignora aqui uma distinção clássica da teologia cristã, já presente em Santo Tomás de Aquino, entre os modos de conhecimento da razão natural e da fé sobrenatural. O aquinate ensina, não exatamente com essas palavras, que é próprio da ciência que a mente humana adira ao que é proposto, em razão da evidência da coisa mesma; mas é próprio da fé que o entendimento adira a uma verdade por um ato da vontade, movido pela graça de Deus, e não por evidência natural. (cf. Comentário à “De Trinitate” de Boécio, cap. IV–VI).

A inspiração dos livros bíblicos não é evidente por si mesma (per se nota), como o é a queda de um objeto sob a força da gravidade. Ela não pode ser demonstrada pelas categorias da ciência experimental (scientia), mas apenas discernida e recebida no âmbito da fé (fides), conforme a ação do Espírito Santo na Igreja.

Assim, o juízo sobre o cânon pertence não ao domínio da ciência empírica, mas ao da fé e da Revelação. É um discernimento espiritual, confiado por Cristo à Igreja, que opera como “coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15). Compará-lo a uma descoberta científica é confundir dois níveis completamente distintos de conhecimento — algo que a tradição católica sempre distinguiu com clareza.

O que temos aqui não é apenas uma analogia falha, é uma ilustração enganosa que desinforma mais do que elucida. Retoricamente elegante, mas teologicamente vazia. Não se sustenta nem sob a luz da história, nem sob a lógica da fé. O cânon da Escritura não caiu do céu como maçãs na cabeça de Newton. Foi reconhecido pela Igreja, com autoridade conferida por Cristo, como fruto da fé viva que ela recebeu, guardou e transmitiu.

Objeção #5: Sobre a infalibilidade do cânon bíblico

Se é necessário uma definição infalível para se conhecer o cânon da Bíblia com certeza, isso significa que a Igreja Católica teria passado 1.500 anos sem um cânon definido infalivelmente. O mesmo vale para os judeus, que também viveram a fé do Antigo Testamento por séculos sem uma lista formal e infalível dos seus livros sagrados. Isso mostra que é possível viver a fé sem uma definição infalível do cânon, tornando o argumento católico desnecessário e exagerado.

Resposta

Essa objeção parte de uma confusão entre suficiência prática e autoridade normativa infalível. De fato, é verdade que a Igreja viveu durante muitos séculos sem uma definição dogmática e infalível do cânon bíblico. Mas isso não significa que ela tenha vivido sem um cânon funcional, nem que isso justifique a tese protestante do Sola Scriptura.

A fé cristã sempre foi vivida na comunhão da Igreja, pela Tradição viva, com a Escritura lida, celebrada e interpretada no seio dessa Tradição. O fato de o cânon não ter sido definido infalivelmente até Trento não implica que cada cristão precisava de um decreto dogmático para crer com certeza prática na Escritura. A Igreja sempre teve um uso normativo da Escritura em sua liturgia, pregação e doutrina, mesmo antes da definição formal.

Contudo, o que o protestantismo exige é algo diferente e muito mais radical: que a Escritura seja a única fonte infalível de fé, o que demanda um conhecimento igualmente infalível de quais livros pertencem a ela. Isso não é apenas uma questão de uso prático, mas de fundamento epistemológico do sistema protestante. E é aí que reside o problema: o protestante não tem base infalível para saber qual é sua única autoridade infalível.

O católico pode viver com um certo grau de indefinição por séculos, porque não depende apenas da Escritura: ele tem também a Tradição e o Magistério como critérios de verdade. Já o protestante precisa da certeza absoluta da lista de livros inspirados, pois sem isso seu único fundamento de fé se torna incerto e, portanto, autocontraditório.

Quanto aos judeus, o caso é semelhante. Eles viveram sob a Antiga Aliança com base na revelação que lhes foi dada, mas também não viviam sob o princípio do Sola Scriptura. Sua fé se baseava na tradição oral, nos sacerdotes, no templo, nos escribas, no Sinédrio. Aliás, até hoje o judaísmo rabínico não tem um consenso infalível sobre o cânon (por exemplo, os judeus etíopes aceitam mais livros do que o cânon massorético). O Novo Testamento também nos mostra que havia divergências entre os saduceus e os fariseus sobre a autoridade dos profetas, por exemplo (cf. At 23,8).

Ou seja, nem os judeus precisaram de um cânon infalível, porque também não tinham um princípio que exigisse isso. Eles viviam a fé como um povo guiado por instituições visíveis e vivas tal como a Igreja, antes da definição dogmática do cânon.

Portanto, a objeção falha por dois motivos: Pressupõe erroneamente que o uso prático de um cânon funcional equivale à exigência teológica de um cânon infalivelmente definido, o que não é verdade; E aplica ao catolicismo uma exigência que só faz sentido dentro do sistema protestante.

O problema não é viver com um cânon funcional; o problema é exigir que a Bíblia seja a única regra infalível de fé, sem ter uma base infalível para saber o que é a Bíblia. Em suma: o catolicismo pode viver por séculos com grau de indefinição porque sua regra de fé é a Tradição viva da Igreja, que inclui a Escritura mas não se resuma a ela. O protestantismo, ao negar essa Tradição e esse Magistério, coloca todo o peso epistemológico sobre a Escritura, sem ter uma base segura sequer para saber qual é essa Escritura. Eis o colapso inevitável do Sola Scriptura.

Objeção #6: A regula fidei e a Escritura têm o mesmo conteúdo

A Tradição apostólica, ou regula fidei, não é algo distinto da Escritura em conteúdo. Elas expressam a mesma verdade, embora em formas diferentes. Portanto, o recurso à Tradição não implica uma autoridade normativa independente ou complementar, mas apenas uma forma de preservar e transmitir a mensagem bíblica. A Tradição, nesse sentido, é materialmente redundante em relação à Escritura.

Resposta

Essa objeção tenta harmonizar o Sola Scriptura com o papel histórico da Tradição apostólica, sugerindo que a regula fideié funcionalmente importante, mas não normativamente distinta da Escritura. Em outras palavras, ela seria apenas um modo provisório, oral e informal, de transmitir o mesmo conteúdo que mais tarde foi escrito nos livros do Novo Testamento. No entanto, essa tese falha em quatro níveis: histórico, bíblico, teológico e lógico.

Primeiramente, a premissa protestante de que a Tradição e a Escritura têm exatamente o mesmo conteúdo é desmentida pela própria história da Igreja primitiva. A regula fidei não era um simples resumo da Escritura, ela guiava a leitura e interpretação da Escritura, e muitas vezes funcionava como um dos critérios principais para reconhecer ou rejeitar escritos disputados.

Como vimos anteriormente, os cristãos dos primeiros séculos enfrentaram uma abundância de textos religiosos, alguns dos quais pretendiam ser apostólicos. O que determinou sua aceitação ou rejeição? Não foi a simples leitura comparativa com outros livros, mas a conformidade doutrinal com a fé recebida, vivida e professada pela Igreja. E essa fé, anterior à fixação do cânon, não era apenas a Escritura, mas a regula fidei, um corpo doutrinal que funcionava como norma normativa antes da própria Bíblia estar estabelecida.

Além disso, em muitos Padres da Igreja, como Irineu, Tertuliano e Orígenes, vemos a regula fidei atuando como critério hermenêutico, protegendo contra interpretações distorcidas, mesmo quando feitas com base em textos bíblicos. Isso mostra que, na prática da Igreja primitiva, a Escritura era lida dentro da Tradição e pela Tradição e nunca como uma norma solitária, autoevidente e autossuficiente.

É preciso considerar também que, desde o início da Igreja, a fé era transmitida e vivida com base em dois elementos inseparáveis: a Escritura (AT) e a Pregação oral dos apóstolos. O Novo Testamento testemunha repetidamente essa realidade (cf. At 2,42; 1Ts 2,13; 2Tm 2,2).

Para sustentar que esse modelo foi substituído por um sistema de autoridade exclusivamente escrita, seria necessário provar biblicamente que a pregação oral foi (ou deveria ser) revogada como norma viva, e que toda a autoridade da fé foi (ou deveria ser) transferida para os livros escritos. Mas nenhuma passagem das Escrituras afirma isso e menos ainda há um momento histórico verificável em que tal transição teria ocorrido. Pelo contrário, a Tradição oral continuou sendo tratada como vinculante, mesmo após a redação e o reconhecimento dos textos sagrados.

Note, meu caro leitor, que essa objeção parte de uma concepção reducionista de Tradição, como se esta fosse apenas uma forma de transmitir conteúdos que já estariam todos plenamente codificados nas Escrituras. Mas a Tradição apostólica é uma fonte viva da Revelação: inseparável da Escritura, sim, mas não uma mera duplicação oral do seu conteúdo.

A Escritura e a Tradição não são concorrentes, mas co-originárias, ambas derivando da mesma fonte: Cristo e os apóstolos, sob a inspiração do Espírito Santo. A Tradição não apenas transmite a Escritura, mas a interpreta, atualiza e aplica com autoridade, como se vê no magistério constante da Igreja ao longo dos séculos. O argumento de que a Tradição é materialmente redundante com a Escritura ignora a função normativa e interpretativa da Tradição.

Contudo, mesmo se admitíssemos — apenas para efeito de argumentação — que a Tradição e a Escritura contém exatamente o mesmo conteúdo (identidade material), isso não justificaria, em hipótese alguma, o princípio do Sola Scriptura.

O que se poderia afirmar nesse caso é que a Escritura possui suficiência material: ou seja, que todo o conteúdo da Revelação divina se encontra, de fato, nas Escrituras. Mas isso é muito diferente de afirmar que a Escritura possui suficiência formal, isto é, que ela sozinha é a única regra infalível de fé.

Mesmo se a Escritura contiver toda a verdade revelada (materialmente), ela não pode, por si só, funcionar como a única norma suprema da fé (formalmente), pois precisa de interpretação autorizada, feita à luz da Tradição viva e sob a assistência do Magistério — se não da Igreja Católica Romana, de qualquer outro magistério.

Ter o mesmo conteúdo não significa possuir o mesmo papel, função ou autoridade formal. Por exemplo: se duas testemunhas dizem exatamente a mesma verdade em um tribunal, isso não torna uma delas descartável, nem transforma automaticamente a outra em única fonte legítima. O testemunho convergente reforça a verdade, mas não anula a autoridade das partes envolvidas.

Da mesma forma, mesmo que a Tradição ensine exatamente o que está nas Escrituras, ela o faz com autoridade própria, recebida dos apóstolos e assistida pelo Espírito Santo. Sua autoridade não depende de ser distinta em conteúdo, mas de ser o canal legítimo da transmissão da fé.

Logo, o protestante não pode afirmar que a Escritura é a única regra infalível só porque o conteúdo da Tradição coincide com o dela. Isso é uma falácia de exclusão. Se a Tradição também ensina com autoridade, ainda que as mesmas verdades da Escritura, então ela é igualmente normativa e o princípio do Sola Scriptura se desfaz.

Além disso, se Tradição e Escritura têm o mesmo conteúdo, então a exclusividade protestante se torna desnecessária. O princípio “somente a Escritura” perde todo o seu propósito e se transforma numa negação gratuita da Tradição, mesmo quando ela é reconhecida como verdadeira e fiel. Isso revela uma postura ideológica, não teológica.

E mais: quem garante que a Tradição transmite fielmente o conteúdo da Escritura? O próprio protestante, que nega a autoridade da Igreja? Ou a própria Igreja, que preserva essa Tradição? Ao admitir a confiabilidade da regula fidei, o protestante acaba aceitando, ainda que implicitamente, a autoridade de quem a guarda e transmite: a Igreja visível e apostólica.

Por fim, a objeção de que a regula fidei e a Escritura têm o mesmo conteúdo é refutada pela história, pela bíblia, pela teologia e pela lógica da fé cristã. A Tradição não é apenas redundante: ela é fundante no conteúdo, normativa na autoridade e indispensável na interpretação. A Escritura, por si só, não é capaz de se autointerpretar, nem de se autopreservar. É a Tradição viva da Igreja que garante sua compreensão fiel, assim como garantiu sua formação e preservação ao longo dos séculos.

Portanto, mesmo que Tradição e Escritura coincidam materialmente, isso jamais justifica excluir a Tradição como autoridade infalível. Fazer isso é negar aquilo que se acabou de afirmar: que a Tradição transmite fielmente a verdade. E reconhecer isso é admitir que a fé cristã não repousa sobre uma “Escritura solitária”, mas sobre a Palavra de Deus transmitida em, com e pela Igreja, como ensina São Paulo:

“Permanecei firmes e guardai as tradições que vos ensinamos, seja por palavra, seja por carta nossa.”

(2Ts 2,15)

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