Deve-se dizer que na antiga Igreja o batismo era frequentemente administrado a adultos — o que se entende pelo fato de que o Cristianismo se recrutava em uma sociedade preponderantemente pagã, após a pregação do Evangelho feita a adultos. Não era, porém, excluído o batismo de crianças; admite-se que se tenha verificado, por exemplo, nos casos referidos pela Sagrada Escritura em que uma família inteira era batizada: foi que se dou com Lídia, a vendedora de púrpura de Tiatira, e todos os seus (cf. At 16,15); com o guarda do cárcere de Filipes e toda a sua casa (cf. At 16,33); com Crispo, o Chefe da sinagoga de Corinto, e toda a sua família (cf. At 18,8); com Estefanaz e todos os seus (cf. 1 Cor 1,16).
Na literatura cristã, testemunhos muito antigos referem o batismo de crianças: S. Irineu, por exemplo, (+ cerca de 202) afirma que Nosso Senhor veio salvar «todos os que por Ele renascem para Deus: crianças, pequeninos e meninos (infantes, parvulos et puerus)» (Adv. haer. II 22,4). Orígenes (+254/55) atesta que «segundo a praxe da Igreja o batismo é dado também aos pequeninos» (In Lev h. 8,3) e nota que «a Igreja recebeu dos Apóstolos a tradição de conferir o batismo mesmo às crianças, pois eles sabiam que em todos (os filhos de Adão) há autênticas manchas de pecado, que devem ser canceladas pela água e pelo Espírito» (In Rom 5,9). S. Cipriano (+258) repetia este raciocínio (ep. 59,3s); o sínodo de Cartago, presidido pelo mesmo S. Cipriano em 252, mandou que em caso de necessidade as crianças fossem batizadas antes mesmo de completarem o seu oitavo dia (ep. 59,2). S. Ambrósio (+397), no livro De Abraham II 11, S. Jerônimo (+420), no Diálogo contra os Felagianos III 18, atestam por sua vez o costume de batizar as crianças; S. Agostinho (+430), na controvérsia com os Pelagianos, fazia desta praxe um dos principais argumentos da existência do pecado original em todos os descendentes de Adão (De civ. Dei 21, 14,16; In Io tr. 41,5; 80,3); julgava tratar-se de praxe dos Apóstolos (ep. 166,23).
O costume se conservou ininterruptamente até hoje na Igreja, sendo que os Papas e Concílios recomendaram frequentemente a urgência da administração do batismo aos pequeninos. A razão desta tese é assaz clara: «Deus quer que todos os homens sejam salvos» (1 Tim 2,4), mesmo as criancinhas. Ora entre os meios de salvação o Senhor incluiu explícita e categoricamente o batismo : «Quem não renascer da água e do Espírito Santo, não poderá entrar no reino de Deus» (Jo 3,5), ou; «Quem crer e for batizado, será salvo; quem não crer, será condenado» (Mc 16,16), Sendo assim, visto que as crianças podem morrer a qualquer momento, procura-se-lhes administrar o batismo sem demora alguma.
Verdade é que os pequeninos não são capazes de conceber a fé ou crer. Isto, porém, não impede que sejam capazes de receber o batismo. Com efeito, a fé é mera disposição, ao passo que a ação purificadora e santificante se deve aosacramento; este, portanto, pode ser conferido sem aquela a sujeitos incapazes de conceber a fé. Assim como sem cooperação de sua parte as crianças são afetadas pelo pecado original, assim sem cooperação são libertadas do pecado e revestidas da graça do Salvador. Há mesmo nelas a exigência interpretativa do batismo, isto é, supõe-se que, se tivessem conhecimento de causa, pediriam decididamente o batismo, pois é este que lhes outorga o inicio da vida eterna ou da bem-aventurança celeste. Sem o batismo, as crianças não são condenadas ao inferno (o que não seria justo da parte de Deus), mas, afetadas pelo pecado original, carentes da graça santificante, não gozam da filiação divina, ficando por isto excluídas da bem-aventurança celeste, herança dos filhos de Deus; julga-se que (a menos que Deus queira empreender a salvação das crianças por vias a nós desconhecidas) vão para o limbo, onde gozam de felicidade meramente natural, prêmio este inferior àquele que o Senhor destina a todos os justos (a visão de Deus face a face).
Quanto à fé, a Igreja, no caso dos pequeninos, a supre; são batizados «por extensão da fé da Igreja», como explica S. Tomás, repetindo palavras de S. Agostinho (ep. 98,5):
“As crianças são levadas a receber a graça do Espírito não tanto por aqueles cujas mãos as carregam (embora por esses, caso sejam bons e fiéis), quanto pela sociedade inteira dos santos e dos fiéis… A fé de um cristão, antes, a fé da Igreja toda, é útil à criança por obra do Espírito Santo, que faz a união da Igreja e comunica a uns os bens de outros” (S. Teol. III 68, 9 ad 3).
Quando a criança atinge a idade da razão, dá-se-lhe a instrução religiosa, a fim de que conceba a reta fé e a professe devidamente; ela então renova as promessas do batismo, que em seu nome fizeram os respectivos padrinhos. Naturalmente deve-se desejar que a catequese dos adolescentes batizados seja eficiente, apta a formar bons cristãos, de modo que o gérmen da graça santificante, depositado prèviamente na alma pelo batismo, não venha a ser frustrado. É este desejo que leva a Igreja a não batizar crianças à revelia dos respectivos pais ou sem que haja esperança de se dar posteriormente instrução católica aos jovens batizados (excetuam-se apenas os casos de morte, pois então prevalece o direito da criança à salvação eterna).
Dir-se-á talvez que é injusto batizar as crianças sem o seu consentimento, impondo-se-lhes, sem consulta prévia, os graves deveres religiosos decorrentes do sacramento (Erasmo de Rotterdam, +1536, por exemplo, admitia o batismo dos pequeninos, mas queria que o ratificassem ao chegarem a idade adulta; caso não o quisessem, deveriam ser considerados isentos das respectivas obrigações).
Em resposta, observar-se-á que o dever de renunciar a Satanás e observar a Lei de Deus não depende estritamente de alguma lei positiva, mas é ditado pela própria lei natural, lei que fala dentro de todo indivíduo antes que peça e receba o batismo; assim como todo homem por lei é obrigado a aderir a Deus (ao Deus único, que se revelou por Cristo) e a se esforçar por conseguir sua salvação eterna, assim também é consequentemente obrigado por lei natural a receber o batismo (caso este se lhe torne acessível). Donde se vê que não se faz injúria à criança, conferindo-se-lhe o batismo quando ainda não pode dispor de si; ao contrário, presta-se-lhe grande favor, pois lhe é destarte possibilitada à entrada no reino dos céus; é-lhe mesmo assegurada a salvação para os anos anteriores ao uso da razão; quanto aos deveres, não se lhe impõe nenhum ao qual o pequenino não esteja, por sua natureza mesma, obrigado de maneira imediata ou mediata. Caso o cristão batizado, chegando à idade do discernimento, rejeite os encargos do seu batismo, incorre em um mal menor do que a perda da visão beatífica (a qual seria de prever, caso morresse sem o sacramento).
Não se pode negar que, no decorrer da história da Igreja, se fizeram ouvir vozes e escolas contrárias ao batismo das crianças. Contudo sempre foram consideradas errôneas ou heréticas. Poder-se-ia traçar a seguinte lista:
– nos séc. III/IV vários cristãos queriam diferir o batismo até a idade de se casarem ou até que se acalmasse o fogo das paixões da adolescência; temiam manchar a inocência batismal (cf. Tertuliano, De baptismo 18). A motivação era, sem dúvida, fraca; o cristão deve ter a santa ousadia de aceitar os dons de Deus, sabendo que o Senhor sempre concede a graça necessária para se evitar o pecado. Os bispos e teólogos desaprovaram categòricamente tal tendência a adiar o batismo, pois equivalia a tentar a Deus, expondo a pessoa temerariamente a perder a salvação eterna;
– no séc. m a seita dos Hieracitas, propugnando exageradamente a mortificação da carne, julgava que o batismo de nada serve às crianças, pois estas ainda não podem praticar a ascese (cf. S. Agostinho, Haer. 48). Já atrás demonstramos em que termos os pequeninos são capacitados para o batismo;
– no séc. V a escola dos Pelagianos negava o pecado original e, por conseguinte, a necessidade do sacramento para as crianças. Já vimos como S. Agostinho, exprimindo a doutrina comum da cristandade, se insurgiu contra tais opiniões;
– no séc. XII Pedro de Bruys, fundador da seita dos Valdenses, não admitia o batismo dos pequeninos, por não poderem estes conceber a fé; julgava mesmo serem as crianças incapazes de se salvar (!);
– no séc. XVI, oposição forte surgiu por parte dos Anabatistas (= Rebatizadores), encabeçados por Tomaz Münzer e os «profetas» de Zwickau, em 1523-1525; rebatizavam todos os que a eles aderiam após haverem sido batizados em idade infantil. Calvino os desaprovava (Institution de la religion chrétienne, ed. Pannier III. Paris 1938, 224s); também os reprovavam os luteranos da «Confissão Augustana» (cf. art. 9). De resto, Lutero, Calvino e Zwingli, os chefes do movimento protestante, conservaram o uso tradicional de conferir o batismo às crianças;
– por fim, no séc. XVII os Batistas, seguindo John Smyth (cf. «Pergunte e Responderemos» 7/1957, qu. 17), fizeram do batismo conferido exclusivamente a adultos e por via de imersão uma das instituições fundamentais de sua denominação religiosa. Admitem que as crianças mortas sem tal rito se salvem, o que logicamente deveria implicar em negação do pecado original. A posição dos Batistas só se sustenta se se considera o batismo como mero rito exterior ou ato de agregação jurídica à comunidade. Os Batistas do séc. XVII e seus continuadores contemporâneos não podem dizer que formam uma só «Igreja» com os diversos tipos de «Batistas» mencionados na lista acima; o traço que os assemelha a esses é meramente acidental; a teologia dos Batistas modernos, que se baseia toda na tese da justificação nominal, devida à fé e inamissível, é inspirada pelos princípios de Lutero e Calvino, e difere incontestàvelmente das ideologias dos hereges antigos e medievais; não há continuidade doutrinária entre uns e outros.
Quanto ao batismo por imersão, era geralmente praticado na Igreja antiga, por simbolizar muito vivamente os conceitos, essenciais a este sacramento, de morte (descida na água) e ressurreição (ascensão da água) com Cristo. A imersão, porém, não era o único rito em uso; seria difícil crer que os três mil convertidos no dia solene de Pentecostes em Jerusalém (cidade em que a água era escassa; cf. 4 Rs 20,20) hajam sido batizados por imersão (cf. At 2,41); muito menos se concebe que o carcereiro batizado com toda a sua família na prisão de Filipes tenha sido mergulhado na água (cf. At 16,33); o mesmo se deve talvez dizer do sacramento administrado por São Pedro na casa do centurião Cornélio (cf. At 10,47s).
Em favor do batismo por imersão costuma-se citar a etimologia da palavra batismo: esta, dizem, vem do grego baptizein, verbo que significava primitivamente sepultar. Sabe-se, porém, que na linguagem grega posterior, principalmente na do Novo Testamento (assim como na tradução do Antigo Testamento dita dos LXX), baptizein tem o significado de lavar, purificar, às vezes mesmo em sentido meramente figurado. Assim é que Jesus designa a descida ou infusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos como um batismo (cf. At 1,5) : também apresenta sua Paixão como um batismo (cf. Lc 12,50). É vão, portanto, o argumento etimológico.
No fim do séc. I, o pequeno ritual intitulado «Didaqué» atesta que, em caso de necessidade, o batismo podia ser validamente administrado também por infusão, ou seja, por tríplice derramamento de água sobre a cabeça do neófito (cf. c. 7). É de crer que o batismo não pudesse ser conferido aos doentes ou «clínicos» senão por infusão ou aspersão, ritos estes que S. Cipriano explicitamente assevera válidos (cf. ep. 69,12).
Entre os cristãos do Ocidente, foi prevalecendo, por motivos de ordem prática (tratava-se de forma acidental da administração do sacramento), o rito de infusão ou derramamento de água, suficiente para exprimir a idéia de loção ou purificação espiritual, que é essencial ao sacramento do batismo; desde que a água toque o corpo e sobre este escorra, tem-se o simbolismo sacramentai, tornando-se então acidentais a quantidade de água e ulteriores modalidades do contato (imersão, infusão ou aspersão). A Igreja Católica não tem dificuldade em reconhecer a validade do batismo de imersão, o qual continua em uso entre os orientais unidos a Roma. Como, porém, aplicar tal dito a doentes, encarcerados, crianças recém-nascidas ou ainda existentes no seio materno ou a neófitos dos desertos e das regiões polares? Não há dúvida, forçoso então é recorrer à infusão ou à aspersão. Donde se infere que a validade do sacramento não está necessariamente ligada a um ou outro desses ritos.
Note-se que até 1653 os Arminianos ou Batistas Gerais ingleses administravam o batismo por infusão. Ainda hoje algumas igrejas batistas, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos da America (haja vista a «Northern Baptist Convention of U.S.A.»), recusam-se a considerar o rito de imersão como condição essencial para a agregação à Igreja.
A título de complemento, vai aqui citada a última instrução da Santa Sé referente ao batismo das crianças:
“Implantou-se em certos lugares o costume de retardar a administração do batismo por pretensas razões de comodidade ou de caráter litúrgico. Tendem a favorecer esse adiamento algumas opiniões, inteiramente destituídas de fundamento sólido, relativas ao destino eterno das crianças mortas sem o batismo.
Por esse motivo esta Sagrada Congregação (do Santo Ofício), com a aprovação do Soberano Pontífice, adverte aos fiéis que as crianças devem ser batizadas o mais cedo possível, conforme prescreve o cânon 770. Exorta igualmente os párocos e pregadores a impelirem ao cumprimento desta obrigação.
Dado em Roma, na Sede do Santo Oficio, no dia 18 de fevereiro de 1958.
Artur de Jorio, Secretário”