Existe uma “Lei Natural”?

Em síntese: A lei natural é a lei que o Criador promulga mediante a natureza de cada criatura. Pode ser física ou moral. A existência da lei natural moral é afirmada pelo testemunho de todos os povos assim como pela experiência individual ou coletiva dos homens contemporâneos. Quem nega a Metafísica, nega a lei natural, que tem índole imutável e universal.

Está de certo modo apagada a noção de uma lei básica anterior a qualquer lei humana destinada a reger o comportamento das pessoas. O legislador seria a única fonte da moralidade. Ora este modo de pensar é falso, como comprova a história contemporânea, com seus regimes totalitários daninhos à sociedade e aos indivíduos; daí a conveniência de se abordar o assunto.

1. Lei natural: noção

Chama-se “lei natural” aquela que o Criador incute através da natureza ou da realidade íntima das criaturas. Pode ser física ou moral.

A lei natural física compreende as leis da natureza que regem as criaturas destituídas de conhecimento e liberdade: leis da gravidade, da atração da matéria, da flutuação…

A lei natural moral coincide com as normas morais que todo homem pode conhecer mediante a luz da razão: não matar, não roubar, não adulterar, honrar pai e mãe…

Da lei natural distingue-se a lei positiva, lei promulgada por Deus ou pelos homens em vista de situações concretas ou para explicitar e aplicar os princípios da lei natural.

Interessa-nos neste estudo apenas a lei natural moral, cuja existência é contraditada por correntes filosóficas modernas.

2. Lei natural moral: existência

A natureza é obra de Deus; por isto ela manifesta ao homem deveres que o Criador impõe à criatura para que chegue à sua plena realização. Hoje em dia há quem conteste a existência da lei natural, julgando que esta atrela o homem às leis físicas ou biológicas em detrimento da sua criatividade pessoal inteligente. Eis por que se impõe um exame dos argumentos pró-existência da lei natural.

1) O testemunho de todos os povos

Já entre os povos primitivos se encontra a noção de preceitos morais básicos como: é preciso fazer o bem, honrar pai e mãe, cultuar a divindade… Essas normas não são atribuídas a determinado chefe ou cacique, mas à própria natureza ou Divindade.

Também os povos mais civilizados da antigüidade (gregos e romanos) conheceram a lei natural, atribuindo-a à Divindade. Principalmente a filosofia greco-romana desenvolveu tal noção. Ovídio (+17 d.C.) chamava “Deus em nós” a voz que fala no íntimo de todo homem; Sêneca (65 d.C.) identificava-a como “deus junto de ti, contigo, em ti” e acrescentava: “Em nós habita um espírito santo que observa o bem e o mal” (cartas a Lucílio).

Nos tempos atuais a consciência de que existe uma lei natural com seus direitos naturais se tornou muito viva em conseqüência dos males causados pelos regimes totalitários do século XX: o Estado, atribuindo a si o supremo poder legislador, sacrificou milhões de pessoas – o que provocou a réplica das Nações Unidas formulada na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948; esta, em grande parte, não é mais do que a reafirmação da lei natural.

2) Os dizeres da S. Escritura

No Evangelho lê-se a regra de ouro, que vale para todos os homens: “Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles” (Mt 7, 12).

São Paulo é o arauto mais explícito da lei natural existente em todos os homens. Referindo-se aos pagãos, escreve:

Deus os entregou, segundo o desejo dos seus corações, à impureza em que eles mesmos desonraram seus corpos. Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém.

Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga da sua aberração” (Rm 1, 24-27).

“Todos aqueles que pecaram sem Lei, sem Lei perecerão; e todos aqueles que pecaram com Lei, pela Lei serão julgados. Porque não são os que ouvem a Lei que são justos perante Deus, mas os que cumprem a Lei é que serão justificados. Quando então os gentios, não tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos são Lei; eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem… no dia em que Deus – segundo o meu evangelho – julgará, por Cristo Jesus, as ações ocultas dos homens” (Rm 2, 13-17).

3) O Concílio do Vaticano II

O Concílio do Vaticano II reafirmou tal doutrina em termos muito claros:

Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e praticar o bem e evitar o mal, no momento oportuno a voz desta lei lhe faz ressoar nos ouvidos do coração: ‘Faze isto, evita aquilo’. De fato, o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com essa lei. A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está a sós com Deus e onde ressoa a voz de Deus” (Const. Gaudium et Spes no 16).

4) A razão natural

A própria razão aponta a existência da lei natural recorrendo a dois argumentos, entre outros:

a)  Quem admite a existência de Deus Criador, admitirá que tenha infundido dentro das criaturas livres, feitas à sua imagem, algumas grandes normas que encaminhem o homem à consecução da vida eterna. Essa orientação interior é precisamente o que se chama “a lei natural”.

b)  A negação da lei natural leva a dizer que os atos mais abjetos podem vir a ser considerados virtudes, e vice-versa. Quem não reconhece a lei natural, atribui ao Estado civil o poder de definir o bem e o mal éticos; a vontade do Estado torna-se a fonte da moralidade e do Direito; deste princípio segue-se a legitimação do totalitarismo e da tirania, de que dá testemunho o século XX.

3. Objeta-se…

Contra a existência da lei natural, a mentalidade moderna objeta:

1) O homem não pode estar sujeito à natureza; ele, que por sua inteligência, remove montanhas e aterra baías, como não tem o direito de alterar o curso mesmo da sua natureza corpórea? Tal objeção foi formulada com especial veemência a fim de tentar legitimar os meios artificiais de limitação da prole mediante os quais o homem interfere nas leis e no funcionamento do seu organismo.

Respondemos: o homem não pode considerar o seu corpo como considera os demais corpos da natureza física. Se o homem trata esses últimos a seu bel-prazer, desviando rios e removendo montanhas, não lhe é lícito tratar o seu corpo como bem lhe pareça. Na verdade, o corpo humano, à diferença dos demais corpos, faz parte integrante de um todo que é a pessoa humana; o homem não tem um corpo, mas é um corpo vivificado por uma alma espiritual. O corpo comunica à pessoa as suas características próprias; não é mero instrumento de uma pessoa espiritual.

Ora, assim como no plano fisiológico a corporeidade impõe ao homem certas leis (não posso comer pedras, não posso respirar gás carbônico, não posso deixar de dormir…), também no plano moral a corporeidade impõe ao ser humano certas normas (relativas à quantidade da comida, da bebida, do fumo, ao uso do sexo…); como a inobservância das leis fisiológicas leva a pessoa à morte, também o desprezo das leis morais naturais induz o ser humano à desintegração psíquica e quiçá física.

2) As mesmas idéias voltam sob a seguinte formulação: Nos tempos atuais é preciso passar de uma Ética naturalista para uma Ética personalista.

Que quer isto dizer?

O sujeito da Moral é a pessoa. A pessoa, porém, é a natureza colocada no tempo e no espaço; tais circunstâncias (tempo e espaço) mudam de modo que as leis do comportamento humano não podem ser as mesmas para todos os homens. Disto se segue um certo relativismo ético ou o existencialismo ético; a mesma conduta é boa ou má de acordo com as circunstâncias do agente.

Sem dúvida, este modo de pensar exprime a verdade até certo ponto, mas tem que ser completado pela seguinte ponderação:

A pessoa humana é uma criatura dependente de seu Criador, dependente inclusive no tocante às normas de comportamento que a levam a sua plena realização. Com outras palavras: a criatura não é autônoma, mas teônoma; não é fonte de moralidade, mas recebe do Criador o seu itinerário de volta ao Pai. Esses ditames têm caráter perene e universal, como perene é o ser de Deus e perene é a definição do ser humano (foi, é e será sempre um vivente racional). Essas normas perenes toleram exceções de acordo com as circunstâncias (uma pessoa doente não está obrigada a tudo o que a pessoa sadia faz). Em todos os tempos se reconheceu a necessidade de evitar cometer injustiças em nome de justiça cega e desumana. As exceções, porém, não significam cair no relativismo ou no existencialismo ético.

3) Já no passado a lei natural sofreu contestação.

Assim no século XVI Martinho Lutero, julgando que a natureza humana foi deteriorada pelo pecado, não lhe dava crédito em matéria de Moral; dizia atender apenas às diretrizes traçadas pela Bíblia Sagrada. Tal é o modo de pensar do protestantismo clássico. O catolicismo não o aceita, pois julga que existe a graça santificante, que cura as chagas do pecado e habilita o homem para a vivência dos filhos de Deus. Aliás é de notar, como dito, que o Decálogo Bíblico não faz senão repetir preceitos da lei natural (não matar, não roubar, não adulterar…) com exceção do terceiro preceito, que define o dia do Senhor como sendo o sétimo.

4) Sejam citados ainda os pensadores nominalistas e voluntaristas dos séculos XIV e XV. Afirmavam que a verdade e o bem são tais unicamente por vontade de Deus. Por conseguinte dois e dois seriam quatro unicamente porque Deus o quer, matar e roubar seriam atos moralmente maus tão somente porque Deus o quer.

– Em resposta afirmamos que todo ser é verdadeiro e bom não por vontade aleatória de Deus, mas porque o Criador quis dar a cada ente a condição de verdadeiro e bom. Em outros termos: a verdade e o bem têm seu fundamento na realidade do ser e não na vontade de Deus posterior à criação.

Fica, pois, de pé a noção de lei natural como norma incutida pelo Criador ao mais íntimo das suas criaturas para levá-las cada qual à sua meta suprema.

O que acaba de ser exposto, é corroborado pela palavra do Papa João Paulo II na encíclica Veritatis Splendor:

“Deus criou o homem e ordenou-o com sabedoria e amor ao seu fim mediante a lei inscrita no seu coração (cf. Rm 2, 15), a lei natural. Esta não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nosso coração. Graças a ela conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus as concedeu na criação” (no 12).

Aliás, a encíclica confirma o clássico ensinamento da Moral proposto neste artigo.

– Vejamos agora…

4. Conteúdo e propriedades da lei natural

4.1. Conteúdo da lei natural

O primeiro princípio da lei natural soa: “Pratica o bem, evita o mal”. Deste princípio básico deduzem-se conclusões imediatas que explicitam o que sejam o bem a ser praticado e o mal a ser evitado; tais conclusões estão formuladas na chamada “regra de ouro” (“O que não queres que façam a ti, não o faças a outrem”, Tb 4, 16)(1) como também no decálogo (Ex 20, 1-27). Destas conclusões imediatas seguem-se outras, mais remotas, que a reflexão atenta sabe deduzir: a unidade e a indissolubilidade da união conjugal, o dever de educar e alimentar os filhos, a pecaminosidade do suicídio e do duelo, a condenação do aborto…

O princípio fundamental da lei natural pode ser conhecido com certeza por todo homem normal, pois é evidente por si mesmo. O mesmo se diga a respeito das conclusões imediatas. Quanto às conclusões remotas, embora sejam por si mesmas acessíveis à razão, podem não ser devidamente apreendidas por pessoas que vivam em ambientes moralmente pouco evoluídos, onde a consciência moral esteja embotada pela mediocridade e a dureza dos corações.

Quem se aplica de coração sincero à reflexão sobre a vida moral, percebe que o preceito básico de “fazer o bem” é altamente exigente, implicando conseqüências cada vez mais delicadas e magnânimas. Todavia, para que as apreenda, a pessoa deve estar isenta de covardia ou do medo de crescer interiormente.

Consideremos as propriedades da lei natural.

4.2. Universalidade

A lei natural é válida para todos os homens e todos os tempos. Isto se deduz da unidade da natureza humana (na América, na Europa, na África, na Ásia…), da unidade de Deus e do plano divino de salvação. Tal afirmação será ulteriormente esclarecida nos parágrafos que se seguem.

1 Formulação positiva em Mt 7, 12.

4.3. Imutabilidade

A lei natural moral em si é imutável em virtude dos princípios que acabam de ser apontados. Todavia a aplicação da lei natural nem sempre foi a mesma entre os homens de bem no decorrer da história. Com efeito, para perceber certas conclusões da lei natural, o homem depende de circunstâncias, como mostram as considerações seguintes:

É imutável o princípio natural segundo o qual todo homem tem direito ao uso da sua liberdade pessoal e, por conseguinte, a escravatura é condenável. São Paulo, aliás, exortava os cristãos a tratar os escravos como irmãos (Filemon 16). Todavia a emancipação imediata dos escravos no tempo de S. Paulo e a reestruturação da sociedade eram algo de impensável naquela época. Na Idade Média, o servo da gleba poderia ter sido tratado com mais liberalidade; todavia era-lhe conveniente ficar fixo no solo do senhor feudal, porque este lhe garantia a proteção e a defesa que ele não teria em outras condições.

Estas considerações se estendem a outros tipos de comportamento dos antigos aceitos tranqüilamente em épocas passadas, mas hoje tidos como contrários à lei natural: o tratamento infligido às mulheres, a morte pelo fogo, as guerras religiosas… Para julgar a moralidade de tais costumes, não nos é lícito aplicar-lhes os critérios lúcidos que os tempos atuais nos oferecem, mas que os séculos passados não propiciavam aos homens. Cometeria injustiça quem quisesse defender a justiça tratando os antepassados como se trata em juízo um cidadão contemporâneo. Para avaliar a conduta dos antepassados, temos de nos transferir para a sua respectiva época e entender os valores morais dentro do grau de compreensão então vigente.

Notemos ainda o seguinte: assim como na vida de um indivíduo há três idades (a infantil, a adulta e a senil), assim também as há na história da humanidade em geral e dos povos em particular. Ora, como não se pode imputar a uma criança e a uma pessoa decrépita a responsabilidade de um adulto, também não se podem argüir povos primitivos e menos primitivos como se argüi um povo plenamente civilizado; sim, há povos primitivos que ainda devem chegar à sua maturidade como há outros que estão decadentes e em desaparecimento; cometem faltas graves contra a lei natural (a antropofagia, por exemplo), não porque esta não valha para todos os homens, mas porque não têm as condições históricas necessárias para compreender todo o alcance da mesma. Estas ponderações projetam luz sobre a lei do talião: “Dente por dente… olho por olho”. Para os homens primitivos, esta fórmula já era muito exigente, porque 1) impedia que a pessoa danificada se compensasse arbitrariamente infligindo ao adversário dano maior do que o que recebera; 2) valia para todos os componentes da tribo, de modo que os chefes e maiores não ficavam isentos de sanção.

4.4. Dispensabilidade da lei natural?

Para responder a esta pergunta, devemos distinguir entre preceitos primários e preceitos secundários da lei natural.

Preceitos primários são aqueles sem os quais a ordem moral se torna totalmente impossível: tenhamos em vista, por exemplo, a obrigação de não levantar falso testemunho, a de não blasfemar contra Deus, a de não adorar ídolos… Tais normas da natureza são absolutamente imutáveis e não admitem dispensa (pois uma dispensa em tais casos não concorreria para o bem do indivíduo ou da sociedade).

Preceitos secundários são normas muito úteis, a tal ponto que a ordem moral já não poderia subsistir ou ao menos ficaria seriamente comprometida, caso fossem violados de maneira geral e estável. Admitem, porém, dispensas transitórias e raras, devidas à fraqueza da natureza humana ferida pelo pecado original e ainda não resgatada pela graça do Redentor. – Ora entre os preceitos secundários da lei natural estão o da monogamia e o da indissolubilidade do matrimônio; com efeito, a geração e a procriação da prole, assim como o auxílio mútuo dos cônjuges, podem ser obtidos, embora em termos precários, mesmo sob uma legislação poligâmica e divorcista. É à luz destas considerações que se deve entender a permissão dada pela Lei de Moisés em Dt 24, 1-4; 17, 17 (onde há restrições à prática mesma do divórcio).

Comments (0)
Add Comment