Hinduísmo e Cristianismo: União ou Repulsa?

Dir-se-ia que os homens ocidentais, cansados das vicissitudes da história contemporânea, desejam restaurar-se à luz e ao calor de sabedoria proveniente de longe, ou seja, do Oriente e, em particular, da Índia; não há dúvida, Budismo, Teosofia, Yoga, Krishnamurti encontram aceitação crescente nas terras ocidentais. E não falta quem apregoe conciliação entre a ideologia recém-vinda e a tradicional sabedoria cristã.

Em face da situação que assim se cria, procuraremos abaixo tomar consciência exata do patrimônio de idéias da Índia, para, a seguir, poder averiguar devidamente até que ponto se coordenariam com as concepções cristãs.

1. As grandes linhas da ideologia hindu

A sabedoria hindu deriva-se, em última análise, das crenças religiosas da Índia primitiva, codificadas nos livros sagrados dos Vedas (Veda = sabedoria por excelência), livros redigidos em sânscrito entre o VIII e o V séc. a.C. de acordo com tradições derivadas de 1000/1500 a.C. Esse patrimônio primitivo fundiu-se com idéias religiosas de povos que sucessivamente habitaram a península índica, dando assim origem ao Bramanismo, em reação ao qual surgiu o Budismo (séc. V a.C.). Cada uma dessas modalidades religiosas, por sua vez, se subdividiu em correntes diversas, de sorte que existem hoje em dia o Vedanta, o Neo-bramanismo, o Vishnuísmo, o Sivaísmo, o Saktismo, o Budismo do Grande Veículo (Mahayana), o do Pequeno Veículo (Hinayana), o Veiculo Tântrico, etc. O conjunto de todas essas correntes religiosas chama-se atualmente Hinduísmo ou Sanatana Dharma (Lei ortodoxa).

Abstraindo de aspectos particulares, visaremos aqui apenas as linhas que marcam a estrutura do pensamento hindu sob as suas diversas modalidades.

Antes do mais, perguntamo-nos: que ensina a sabedoria da Índia antiga a respeito de Deus?

— O Divino é o Absoluto, substância neutra, impessoal, que está identificada com o espírito de cada homem.

Diz o livro dos Vedas, atribuindo à Divindade o nome de Brama:

«Perguntas o que é o Brama ? É teu próprio Atmã, que é interior a tudo» (Brihad Aranyaka, up. III 4).

Nessa frase note-se que Atmã (At man) significa Este Eu, ou a alma humana.

O Brama neutro, impessoal, fica inacessível aos conceitos dos homens. Não o podendo apreender em si mesmo, o devoto hindu tende a atingi-lo e adorá-lo em seus atributos ou em suas manifestações divinas; assim tem origem a série dos deuses professados pela religiosidade popular hindu; todos eles são Brama expresso em uma faceta sua; todos fazem parte de Brama, como as gotas do oceano fazem parte do oceano. Contudo é por excelência dentro da própria alma que o fiel devoto deve encontrar a Divindade, pois cada um possui ou é uma centelha divina. Assim diria Vishnu, uma das manifestações de Brama, a Siva:

«Aqueles que são vítimas da ignorância, me consideram distinto de ti» (Vishnu-Purana).

A tradição hindu admite que os deuses (ou os atributos do Brama) se encarnem, seja por seu bel-prazer, seja para cumprir uma tarefa, em particular a de socorrer a humanidade aflita. As encarnações da Divindade se chamam «avatares» ou «descidas»; Vishnu é o deus que mais frequentemente se encarna. Pode haver número ilimitado de «avatares». Ramakrishna, famoso mestre Brama do século passado (1834-1886), dizia: «Os avatares são em relação a Brama o que as ondas são em relação ao oceano».

Professando tais noções a respeito da Divindade, como conceberia o hindu este mundo e a sua história?

A substância divina única, Brama, cuja existência é eterna, acha-se animada por um ritmo constante de respiração: aos movimentos de absorver e expelir o ar correspondem respectivamente a produção (impropriamente dita criação) e a destruição do universo. Este mundo é dominado pelas leis do surto e do desaparecimento, da vida e da morte, que não são senão reproduções do ritmo de sonolência e despertar ou de inspiração e expiração que move a Divindade.

Dentre os seres visíveis, o homem, de maneira especial, corresponde à Divindade; é o microcosmos colocado dentro do macrocosmos ou do grande corpo divino que é a natureza: assim, a carne humana corresponde à terra; a palavra, ao fogo; o hálito, ao ar; o olho, ao sol…

Mais precisamente, o mundo, por respiração de Brama, ter-se-á formado de acordo com o seguinte processo: originou-se primeiramente o akaça ou éter, corpo de extrema sutileza, que deu início aos quatro elementos fundamentais: o ar, o fogo, a água, a terra. Estes, combinando-se, deram origem à Vida dentro de um corpo embrionário chamado «o ovo de Brama» e depositado no seio das águas. A partir desse gérmen, foram-se desenvolvendo aos poucos os diversos seres, visíveis e invisíveis, que constituem este mundo. Os entes inferiores tendem a evoluir até o grau humano, que representa o ponto culminante da evolução. Quanto ao homem, ele almeja emancipar-se do corpo pesado e do mundo material em que se acha, para voltar à Substância primordial de Brama.

O hindu concebe a história como repetição de ciclos simétricos, em cada um dos quais o mundo nasce, evolui e desaparece. Cada ciclo («Kalpa» ou «dia de Brama») dura aproximadamente 4.320 milhões de anos; ao termo destes, o cosmos é reabsorvido em Brama, donde se há de formar posteriormente um novo ovo cósmico!

No conjunto do universo, que papel toca ao homem?

Ao homem é dado compreender o caráter ilusório da matéria que o envolve, ou seja, compreender que a multiplicidade que o cerca não é multiplicidade, mas é a unidade de Brama. Em outros termos: é-lhe dado perceber que este mundo não é senão o cenário de uma comédia cujos atores são os homens. Em consequência, o indivíduo humano deve fazer tudo para se libertar da matéria. A fim de o conseguir, torna-se-lhe necessário esquecer o que lhe é exterior e concentrar a sua atenção no «Eu» interior, onde se encontra a centelha divina ou Brama. Tal purificação não se consegue no decorrer de uma só existência terrestre; por isto cada indivíduo tem que voltar mais de uma vez à Terra, sujeitando-se ao ciclo das reencarnações ou samsara. As reencarnações são inexoravelmente regidas pela lei do karma, segundo a qual cada ato humano produz um efeito bom ou mau, que configurará a próxima encarnação do respectivo sujeito, tornando-o mais feliz ou menos feliz conforme os seus méritos ou deméritos.

Para ilustrar a obrigação, imposta aos devotos, de esquecerem tudo que lhes é extrínseco e extinguirem todo desejo das coisas terrestres, contam os hindus o seguinte episódio:

Um mestre (guru), interrogado por seu discípulo sobre a eficácia do amor divino, mergulhou a cabeça do jovem em um rio, detendo-a dentro d’água até quase sufocá-lo… Quando o discípulo foi retirado do rio, o mestre perguntou-lhe:

«Em que pensavas, quando imerso n’água ?»

«Todo o meu ser só tendia a respirar. Só desejava isso. Só podia pensar nisso !»

«Está bem, replicou o mestre, quando tiveres igual necessidade de Deus, serás libertado!»

Por conseguinte, desde que o homem adquira plena consciência de que ele não se distingue da substância universal ou de que sua alma é idêntica à totalidade, está em condições de se libertar do corpo; a alma então se funde em Brama, ultrapassando as categorias da unidade e da multiplicidade, o que implica em perda da individualidade pessoal.

A fim de favorecer a concentração da alma em si mesma e a sua consequente libertação, os hindus recorrem a técnicas especiais de controle dos movimentos do corpo, principalmente da respiração. A tais exercícios se dá o nome de Yoga.

Assim expostas as grandes linhas da espiritualidade hindu, procuremos cotejá-las com os traços dominantes da sabedoria cristã.

2. A sabedoria cristã : confronto…

Quem estabelece o confronto entre sabedoria hindu e sabedoria cristã, sem demora observa uma nota comum dominante em ambas: a consciência do mistério ou de que aquilo que o homem apreende com os sentidos não esgota o conteúdo da realidade. Assim tanto o hindu como o cristão vivem do invisível mais do que do visível.

O misticismo ou a consciência do mistério representa a religiosidade espontânea, inata em todo homem; não é nem especificamente hindu nem especificamente cristã, pois a natureza inteligente de per si experimenta a necessidade de viver em função do transcendente. É, sem dúvida, por causa dessa base de religiosidade natural férvida que muitos julgam poder identificar entre si Cristianismo e Hinduísmo.

Contudo note-se que não basta ao homem, para chegar à sua consumação, apreender vagamente a existência do Transcendente que o cerca. É preciso que procure, na medida do possível, aproximar-se do Mistério com a inteligência, pois o homem é um ser essencialmente intelectivo ou racional.

Ora, justamente ao tentar realizar esta tarefa, o Hinduísmo diverge fundamentalmente do Cristianismo. Com efeito,

Pode-se dizer que a diferença capital vigente entre uma e outra ideologia consiste em que a sabedoria hindu identifica a Divindade, o mundo e o homem numa só substância posta em evolução através da história (panteísmo ou monismo.), ao passo que a ideologia cristã distingue nitidamente entre Deus pessoal, transcendente Criador, de um lado, e, do outro lado, o mundo criado (em que ulteriormente se diferenciam os irracionais e os homens).

Aqui seja apenas recordado que o panteísmo cai no ilógico, pois identifica o Absoluto (que por definição é Deus) e o relativo, o Infinito (Deus) e o finito, como se o Infinito não fosse senão a soma de partes finitas ou como se o Absoluto não fosse senão o relativo elevado ao auge de sua perfeição; na verdade, a estrutura do finito e relativo difere radicalmente da do Infinito e Absoluto, como o ser que é por si difere radicalmente do ser que não é por si; admitir identidade entre ambos é renegar o principio de contradição («o ser não é o não ser»), é obstruir as vias para qualquer raciocínio.

Por muito ilógico que seja, o panteísmo nunca deixou de seduzir os homens; e isto, por três motivos principais:

O panteísmo, fazendo de Deus uma substância neutra e impessoal, parece salvaguardar melhor o infinito da Divindade, ao passo que o conceito de personalidade parece induzir determinações (no sentido de limitações e imperfeições) em Deus.

Note-se, porém, que tais aparências são vãs. pois a noção de personalidade não inclui em suas notas constitutivas alguma limitação; ela apenas significa um sujeito ou «Eu» subsistente em uma natureza intelectiva (natureza intelectiva finita, na criatura; infinitamente perfeita, no Criador).

Inegavelmente, o panteísmo abre ao homem horizontes grandiosos, colocando-o no plano do Divino. Ora isto corresponde bem ao senso do mistério impregnado em toda criatura humana e aguça-o (com detrimento, porém, para a dignidade intelectual do homem).

O panteísmo, identificando o Divino e o humano, cancela o fundamento de qualquer atitude religiosa. O panteísta poderá, sim, falar de religião; na verdade, porém, ele não cultuará outro ser senão o próprio «Eu», que ele (talvez inconscientemente) estará endeusando. Um tal tipo de religião não molesta muito a natureza humana; ao contrário, oferece sempre meios para legitimar as mais variadas tendências do indivíduo.

Para o cristão, ao contrário, Deus é tudo, e a criatura (de per si) nada é. O homem procede do não-ser ; todo o ser e agir de que ele dispõe, são dádivas gratuitas do Criador; os próprios méritos do homem decorrem de prévios dons de Deus. Em consequência, a criatura não pode fazer valer título algum de glória perante o Senhor; ao invés disso, toda a glória do homem consiste em viver como mendigo de Deus; é nesse total «entregar-se a Deus» (a Deus que não se identifica com criatura alguma) ou «servir a Deus» que o homem encontra o seu «reinar», pois o Altíssimo, que criou o homem gratuitamente, só o criou para o dignificar. — Ora, inegàvelmente, realizar essa atitude de humildade e renúncia a si não é fácil à criatura.

Em conclusão: a idéia de que o homem é criatura e Deus é o Criador (Aquele que produz a partir do nada) é levada até as suas últimas consequências no Cristianismo, e aí assume importância capital; o discípulo de Cristo não procurará a sua glória senão no reconhecimento de que nada é e nada pode, mas tudo recebe de Deus (de um Deus que não é o próprio homem).

Outra diferença notória entre sabedoria cristã e sabedoria hindu — diferença, aliás, que muito logicamente se prende à anterior — deve-se à tese da reencarnação, que os hindus professam. Tal tese compreende-se bem num sistema em que não há Deus pessoal, distinto do homem, a quem se possa atribuir a salvação da criatura. Em tal ideologia, é claro, que ao próprio homem toca a função de se salvar por si mesmo, purificando-se de todo afeto desregrado; já que isto não se costuma dar no decorrer de um só currículo de vida terrestre, o pensador panteísta é logicamente levado a admitir vários currículos terrestres a fim de assegurar a salvação do homem!

Bem diversa torna-se a questão da salvação sob a perspectiva do Deus pessoal do Cristianismo. O cristão, professando que Deus é o Autor do homem, afirma igualmente que Deus é o Salvador da sua criatura. Para o discípulo de Cristo, o Todo-Poderoso proporciona ao homem os meios de se salvar no decorrer de uma só existência terrestre, pois esta é suficiente para que cada um opte decididamente por um ideal… (aliás, ninguém tem consciência de já haver vivido alguma vida anterior aqui na terra).

Não aceitando a reencarnação, o cristão possui naturalmente um conceito da história deste mundo assaz diverso do que o hinduísmo professa.

Para o hindu, a história consiste numa série de ciclos que se vão repetindo sem finalidade nem sentido: a evolução dos acontecimentos nada acarreta de novo, mas a lei de ascensão e declínio rege inexoravelmente os indivíduos e as coletividades, impedindo-lhes a consumação; em consequência, o hindu espera obter a sua perfeição justamente emancipando-se da história ou escapando à vida deste mundo.

Tal concepção é adequadamente representada pelo símbolo de uma serpente enrolada sobre si mesma, de tal modo que a cabeça morda a cauda; esta figura significa bem que os giros da história presente carecem de sentido; principio e fim coincidem entre si; «circula-se» sem esperança de melhor ordem de coisas neste mundo…

O cristão, ao contrário, é otimista em relação ao universo e à história; esta, para ele, se assemelha a um cone que se abre em demanda de uma grande realidade, realidade que o vai penetrando cada vez mais, dando sentido sempre mais denso e rico às fases da história; o tempo do cristão é prenhe, cada vez mais prenhe, de eternidade.

Quanto à purificação da alma, o Cristianismo, como a sabedoria hindu, a propugna mediante ascese, disciplina das faculdades psíquicas e somáticas; há, pois, um «Ioguismo» cristão (na medida em que Ioga significa a técnica de colocar o corpo plenamente a serviço da alma). O cristão, porém, exerce sua disciplina norteado por concepções bem diversas das do hindu: ele sabe que o Senhor é quem lhe dá a graça de lutar contra as paixões e que, consequentemente, todo o êxito de seus esforços depende da soberana misericórdia de Deus. — A respeito de Ioga, cí «P. R.» 16/1959, qu. 1.

Em resumo, verifica-se que sabedoria cristã e sabedoria hindu representam duas concepções de Deus, do mundo e do homem essencialmente divergentes uma da outra, de sorte que não pode haver fusão, mas, sim, opção, entre uma e outra.

3. Apesar de tudo, otimismo sadio…

Após fazer à sabedoria hindu as reservas acima, não poderíamos rematar este confronto sem uma palavra de otimismo construtivo.

Quem hoje em dia considera a grande maioria da população da Índia, e mesmo de outros países da Ásia, imersa no panteísmo e alheia ao conhecimento do verdadeiro Deus, talvez conceba a questão: porque terá sido o Criador tão liberal na revelação de Si aos povos ocidentais, deixando, ao contrário, tantos orientais destituídos da noção do verdadeiro Autor do universo ?

— Não é lícito ao homem pedir a Deus contas da distribuição de seus dons. Como quer que seja, porém, pode-se afirmar, sem perigo de errar, que a Índia, e o Oriente em geral, receberam do Senhor Deus um patrimônio religioso de imenso valor — patrimônio que certamente se torna esteio de salvação eterna para hindus e demais povos orientais, se é devidamente utilizado por esses homens.

E qual seria esse patrimônio?

É, como já dizíamos, a tempera profundamente mística que domina a alma dessas criaturas, ou a consciência que tais indivíduos têm da primazia do que não se vê, do eterno, sobre aquilo que se vê e é transitório. Os orientais sabem avaliar profundamente as riquezas da vida interior; têm assim, por excelência, «uma alma naturalmente cristã», para usarmos a expressão de Tertuliano (De testimonio anime 17) no fim do séc. II. Deve-se mesmo frisar que neste particular os orientais são mais prendados do que os homens do Ocidente; o ocidental é, sim, muito dado à vida ativa, mesmo a um ativismo febril, que dispersa sem obter resultado positivo, tendendo cedo ou tarde a cair no puro materialismo; entre as suas múltiplas ocupações, ele quase não encontra tempo para Deus!… Eis, porém, que na escola da Índia e do Oriente os ocidentais encontrarão sempre irmãos que em si representam o ideal da vida toda voltada para os valores que não passam.

Tal é o testemunho de dois monges católicos ocidentais — os PP. Monchanin (Svvami Paramarubyananda) e Le Saux (Swami Abhishiktesvaranda) — , que na Índia fundaram recentemente o mosteiro de Saccidananda:

«Dentre todos os povos da terra, a Índia parece ter recebido da Divina Providência uma missão privilegiada. Dir-se-ia que uma mensagem lhe foi confiada, mensagem a proferir no mundo e a proclamar através dos tempos… Essa mensagem afirma a primazia do mistério de Deus sobre o mistério das coisas criadas, o valor único daquilo que não passa,… do eterno, do espiritual, da vida interior.

Essa mensagem, a Índia a transmitiu, e primeiramente a transmitiu a si mesma, em suas gerações sucessivas, de idade em idade… de vidente a vidente…» (J. Monchanin et H. Le Saux, Ermites du Saccidananda. Paris 1956, 28s).

Na base destas observações, preconiza-se hoje a evangelização da Índia principalmente por obra do monaquismo contemplativo católico lá implantado e vivido em suas formas mais consequentes possíveis.

As considerações acima se encerrarão pela seguinte reflexão : a Índia recebeu realmente da Divina Providência uma mensagem importante a dizer ao mundo. Essa mensagem não consiste propriamente em tal ou tal proposição de filosofia ou teologia (vão é o panteísmo hindu com seus corolários, como atrás foi dito). É, antes, a atitude religiosa por excelência, a afirmação de que o homem só se realiza na procura incondicional de Deus, que a Índia apresenta ao mundo. A Índia, por sua existência mesma, constitui um caloroso apelo a Deus, ao único Deus, que o hindu entrevê presente entre os homens e que ele desejaria possuir em plenitude ! — Que os cristãos recebam essa lição de procura sequiosa de Deus e, em troca, comuniquem aos irmãos hindus a genuína noção do Pai Celeste ou a face do Deus vivo e verdadeiro patenteada no S. Evangelho ! É nesse intercâmbio que sabedoria hindu e sabedoria cristã se unem: aquela oferece a medida generosa e dilatada dentro da qual esta se deve derramar incontaminada e fecundante !

À guisa de Apêndice, vai aqui transcrita oportuna passagem de uma encíclica missionária que o S. Padre o Papa Pio XII publicava aos 2 de junho de 1951:

«Quando a Igreja convida os povos a se elevarem sob a guia da religião cristã a uma forma superior de vida humana e de cultura, Ela não se comporta como quem, sem respeitar coisa alguma, abate uma floresta exuberante, devastando-a e destruindo-a; antes, Ela imita o jardineiro que enxerta um ramo de qualidade em um tronco selvagem a fim de que este um dia produza frutos mais doces e saborosos. A natureza humana conserva em si, apesar da mancha herdada da triste culpa de Adão, um fundo naturalmente cristão, que, iluminado pela luz de Deus e nutrido pela graça, pode ser elevado à virtude autêntica e à vida sobrenatural. Por isto a Igreja jamais tratou com desprezo e desdém as doutrinas dos gentios; ela, ao contrário, as libertou de todo erro e impureza, e, por fim, as rematou e coroou mediante a sabedoria cristã. Da mesma forma, as artes e a cultura dos povos não cristãos,… a Igreja as acolheu com benevolência, cultivou-as com cuidado e levou-as a grau de beleza tal que jamais haviam atingido. Ela também não condenou, mas de certo modo santificou, os costumes próprios e as instituições tradicionais dos diversos povos. Modificando o espírito e as modalidades das festas dos pagãos, a Igreja fez que estas servissem para lembrar os mártires e para glorificar os santos mistérios. Muito a propósito escreve S. Basílio: ‘…Habituados a considerar o sol no seu reflexo sobre as águas, poderemos doravante levantar o olhar diretamente para a própria luz… A vida da árvore consiste em que se carregue de frutos na estação oportuna; não obstante, as folhas que se agitam em torno dos ramos, acrescentam algo à beleza dos frutos. Assim a alma dá seus frutos por excelência quando apreende a própria Verdade; contudo a sabedoria meramente humana pode servir de manto à Verdade (divina), à semelhança das folhas que envolvem os frutos dando a estes sombra e beleza» (texto traduzido do original publicado na «Revista Eclesiástica Brasileira» 11 [1951] 707).

Os dizeres acima parecem aplicar-se muito adequadamente a definir as relações vigentes entre a sabedoria hindu e a sabedoria cristã.


Bibliografia:

  • M. Queguiner, Introduction à l’Hidouisme. Paris 1958.
  • S. Lemaítre, Hindouisme ou Santana Dharma, em «Encyclopédie du Catholique au XXème siècle», n. 144. Paris 1957.
  • J. Herbert, Spiritualité hindoue. Paris 1947.
  • Vitalité aetuelle des Religions non chrétiennes. Collection «Rencon- tres» n’ 48. Paris 1957.
  • M. Percheron, O Buda e o budismo. Rio de Janeiro 1958.
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