A obra e o efeito da santa celebração dos sagrados mistérios é a transformação dos dons no divino corpo e sangue. O fim é, por meio deles, a santificação dos fiéis, recebendo o perdão dos pecados e a herança do reino dos céus.
A preparação é o que se ordena a esta obra e a este fim, isto é, as preces, a salmodia e as leituras das Sagradas Escrituras. Para dizê-lo em uma só palavra, tudo o que antes e depois dos dons é sacrossantamente dito e feito.
Deus nos prodigaliza gratuitamente tudo o que é santo. Sendo tudo efetivamente dom da graça, nós a Ele nada lhe damos. Todavia, para que sejamos capazes de receber e conservar estes dons, há algo que se requer necessariamente de nós. Deus não concede, de fato, a santificação senão àqueles que a buscam e que a ela se dispõem. É assim que Ele nos batiza, nos unge, nos acolhe em seu convívio e nos reparte a sua sagrada mesa, o que podemos entendê-lo também através da parábola do semeador. Nela, efetivamente, lemos que”o semeador saiu a semear”.
Note-se que a Escritura não diz que o semeador saiu para arar a terra, mas para semear, pois tanto o arado como toda a preparação deve ser realizada por nós. Assim também se faz necessário para a recepção dos Sacramentos. Os que deles se aproximam devem estar retamente preparados. Convém, portanto, que na própria constituição do Santo Sacrifício esteja presente esta preparação, como de fato está. As preces, os salmos, e tudo o que nele sacrossantamente se faz e se diz têm sobre nós este poder. Todas estas coisas nos santificam e nos dispõem, em parte para que recebamos corretamente os Sacramentos, em parte para que conservemos a santificação recebida e possamos retê-la com perseverança.
Na liturgia, porém, esta santificação ocorre de dois modos.
Em primeiro lugar, quando somos ajudados pelas próprias preces, salmos e leituras. As preces convertem a Deus e alcançam o perdão dos pecados. A salmodia, semelhantemente, faz com que Deus nos seja propício e no-lo atrai com seu poder, conforme no-lo declara o próprio Salmo, ao dizer:
“Sacrifica a Deus
um sacrifício de louvor,
e eu te libertarei,
e tu me glorificarás”.
Quanto às leituras das Sagradas Escrituras, anunciando a benignidade divina e a sua humanidade, introduzindo em nossas almas a sua justiça, o seu julgamento e o seu temor, inflamando-nos em seu amor, nos trazem a alegria da alma e uma grande prontidão à obediência dos seus mandamentos.
Tudo isto torna mais bela e mais divina a alma tanto do sacerdote como do povo, e torna-os aptos a receber e a conservar a santificação que é a finalidade do sacrifício. Preparam particular e individualmente ao sacerdote, ao qual cabe o múnus de celebrar o mistério, para que não se aproxime indignamente à celebração do sacrifício. Vemos, de fato, que em muitas passagens das orações litúrgicas recomenda-se ao sacerdote que não se aproxime do sacrifício com propósitos indignos, mas que se aplique aos mistérios com as mãos, a alma e a língua puras, de tal maneira que todos nós, pelo poder das palavras que são proferidas e cantadas, sejamos auxiliados a celebrar o sagrado.
Em segundo lugar somos santificados por estas coisas e por todas as coisas as demais que se realizam neste sacrifício quando nelas vemos a figura de Cristo e das coisas que Ele fêz e sofreu por nós. Significa-se, de fato, em toda a sagrada celebração, nos salmos, nas leituras e em tudo o que é feito pelo sacerdote, a economia do recebimento de nossa natureza humana pelo Salvador. Tudo isto, ademais, é significado de tal modo que o que foi primeiro na vida do Salvador é significado pelo que no sacrifício também é primeiro; o que lhe é seguinte, por aquilo que no sacrifício é seguintes; e o que lhe é posterior, por aquilo que no sacrifício também lhe é posterior, ainda que aqueles que vêem estas coisas tenham a todas diante dos olhos. Assim, a santificação dos dons, o próprio sacrifício, anuncia a morte, a ressurreição e a ascensão de Cristo, já que estes dons preciosos se transformam no próprio corpo do Senhor, ao qual sucederam todas estas coisas, sendo crucificado, ressuscitando e ascendendo aos céus. O que é dito e feito antes do sacrifício anuncia o que se realizou antes de sua morte, isto é, seu advento e sua perfeita manifestação. Já o que vem depois do sacrifício anuncia, como Ele mesmo o diz, a promessa do Pai, a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e, por meio deles, a conversão e a comunhão dos gentios a Deus. E toda a celebração do mistério é como uma só imagem do único corpo do povo do Salvador, tornado visível pela ordem e conveniência entre si.
Alguns salmos, como os que se cantam nos proêmios, e também os que na proposição dos dons são ditos antes deles, significam o primeiro tempo da economia de Cristo. O que está situado depois dos salmos, como as leituras das Sagradas Escrituras, significa o que se lhe sucede.
Diverso é o uso das leituras e dos salmos. As leituras nos incentivam à virtude, os salmos nos tornam Deus propício. Nada proíbe, porém, que ambos possam a mesma coisa, isto é, que incentivem os fiéis à vida das virtudes e signifiquem a economia e a dispensação de Cristo na carne. A roupa do que a veste cumpre um determinado uso e cobre o corpo, mas por ser tal ou qual algumas vezes significa também a arte, a vida e a dignidade daquele que a veste. Assim também ocorre na liturgia. As Divinas Escrituras contêm palavras divinamente inspiradas e hinos de Deus; exortando-nos à virtude, santificam os que as lêem e as cantam. No entanto, por terem sido escolhidas tais e terem sido ordenados de um determinado modo, elas podem também significar a peregrinação de Cristo e sua instituição. Tudo isto, ademais, não ocorre apenas com o que é cultuado ou lido, mas também com tudo o restante do que é realizado na celebração. Cada uma destas coisas é feita em primeiro lugar por causa do uso presente; significam também, no entanto, algo das obras, ações ou sofrimentos de Cristo. O oferecimento do Evangelho no altar e a oblação dos preciosos dons são feitos, em primeiro lugar, conforme o seu uso o pede; a primeira para que o Evangelho seja lido e a segunda para que se ofereça o sacrifício. Ambas, porém, também significam a exibição e a manifestação do Salvador; a primeira, a sua manifestação inicial, obscura e ainda imperfeita, e a segunda, a sua manifestação perfeitíssima e última.
Entre as coisas que se realizam há também algumas que não cumprem nenhum uso, sendo feitas apenas para significar alguma outra coisa, assim como a punção do pão, a inscrição da cruz sobre o mesmo, e o próprio ferro, que o punge, feito sob a forma de lança. Este é também o caso da imersão da água nas santas oferendas.
Na realidade, em todos os demais sacramentos encontram-se coisas semelhantes. No Batismo retiram-se as vestes e os sapatos dos que devem ser batizados; a seguir estes, olhando para o Ocidente, estendem as mãos e sopram. Estas coisas, porém, lhes ensinam o quanto é necessário haver em nós o ódio ao maligno e como aquele que há de se tornar um verdadeiro cristão tem necessidade de se vigiar a si mesmo é necessário vigiar a si mesmo. E se nos demais sacramentos encontram-se coisas semelhantes, outra será a sua significação. O que se realiza, porém, na celebração do mistério dos dons, se refere tudo à economia da carne assumida do Salvador para que, submetendo a sua contemplação aos nossos olhos, santifique as almas e nos torne aptos ao recebimento dos sagrados dons.
Deus outrora criou a terra do nada para tornar mais bela e divina a alma dos que a contemplam. Muito mais criou Deus agora uma inumerável multidão de outras coisas para que fossem por nós consideradas e cridas as coisas que Ele nos ordenou. Ele, efetivamente, não poderia salvar-nos e tornar-nos seus se as coisas pelas quais devêssemos ser salvos nos tivessem ficado escondidas. Assim, Deus primeiro criou na alma dos homens, sem que antes estas coisas tivessem existido, a reverência, a fé e o amor a Cristo; depois, estando tudo isto já cuidadosamente meditado por aqueles que crêem, Deus já não as cria mais. Já cridas, as conserva, renova e aumenta, tornando os homens mais firmes na fé e mais fervorosos na piedade e na caridade. Se, não existindo estas coisas, pôde Deus criá-las para que existissem, muito mais facilmente poderá conservá- las, guardá-las e renová-las. Ora, estas coisas são precisamente aquelas com as quais importa que nos aproximemos do que é sagrado, e sem as quais é completamente nefando que o contemplemos. Referimo-nos à religião, a fé e a um amor a Deus muitíssimo veemente. Tão importantes são estas coisas que importava que a contemplação que no- las pudesse inserir fosse significada na constituição deste sacrifício. Deus assim quis que não apenas pela mente, mas também de certo modo pelos olhos, víssemos a grande pobreza de Cristo que de fato era rico; a sua peregrinação, não obstante possuir todos os lugares; as injúrias que sofreu, não obstante ser bendito; seus sofrimentos, apesar de ser impassível; quanto ódio recebeu, não obstante tanto ter amado, e quanto se humilhou a si mesmo, não obstante o tanto que era. Cristo, de fato, com tudo isto que sofreu e realizou preparou diante de nós esta mesa, e nós, admirando a novidade da salvação, tomados pelo assombro da multidão de suas misericórdias, reverenciamos àquele que assim se compadeceu e que assim nos salvou.
Confiemos-lhe nossa alma e nossa vida, abrasemos nosso coração no fogo de seu amor, e se tais formos, poderemos com segurança e familiaridade embrenharmo-nos no fogo de seus mistérios.
Não é suficiente, para que assim nos tornemos, que tenhamos aprendido alguma vez as coisas que são de Cristo ou que delas tenhamos notícia. É necessário também que as cravemos nos olhos da alma para que as possamos contemplar em ato, expulsos todos os demais pensamentos, de tal maneira que lhe possamos entregar uma alma convenientemente preparada para receber esta santificação.
Se tivermos alguma razão de piedade, tanta que de tudo o que nos for perguntado possamos responder corretamente, mas tão pouca que quando for necessário mergulhar nos mistérios não consideremos tudo retamente nem nos utilizemos da mente, para nós nenhuma será a utilidade daquele conhecimento. Nenhuma das coisas que então nos forem ditas poderá mudar nossos afetos; continuaremos afeiçoados aos pensamentos que nos detém e teremos apenas os afetos que estes poderão produzir.
Tudo isto levou a que fosse arquitetada esta figura, em parte não apenas significando pelas palavras, mas a tudo também conduzindo sob o olhar, em parte manifestando-se por todo o tempo do sacrifício, para que podesse agir mais facilmente nas almas, e não infundisse nelas apenas a contemplação, mas também o afeto e a paixão, na medida em que estas coisas nos fossem impressas de modo mais evidente pelos olhos do que pela imaginação. Pelos olhos, de fato, não se dá lugar ao esquecimento, nem se permite que o pensamento se dirija a outro até que tenha sido trazido à própria mesa, de tal modo que, refeitos por estes pensamentos e possuídos por uma forte memória, nos tornemos participantes dos sagrados mistérios, trazendo santificação à santificação, contemplação à santificação, santificação ao mistério e, transformados de glória em glória, alcancemos, partindo do que é menor, aquilo que é de tudo o maior.
Eis, compendiosamente, todo o sacrifício. Devemos, porém, a seguir, tratar individualmente de cada uma de suas partes, começando pelo seu início.
Consideraremos primeiro as preces que se fazem no início, as bênçãos sagradas, os cânticos sagrados, e as leituras. Consideraremos depois a própria obra sagrada, o próprio sacrifício. Em seguida a santificação pela qual, através dele são santificadas as almas dos cristãos, tanto dos vivos como dos mortos. Consideraremos, finalmente, se algo ainda necessitar de consideração e contemplação, as coisas que se lhe seguem, os cânticos e as preces dirigidas a Deus pelo povo e pelo sacerdote.
Antes de tudo, porém, e em todas as coisas nas quais se manifesta a economia da carne assumida pelo Salvador por toda a celebração do mistério, consideraremos o que a ela pertence e por quais das coisas que se realizam na sagrada celebração são significadas.