Isto é o Meu Corpo

Em síntese: As Testemunhas de Jeová negam a real presença de Cristo na Eucaristia, alegando que na proposição “Isto é meu corpo”, o verbo “é” significa “simboliza”. — Ora a propósito parece evidente que Jesus não usou de expressão ambígua na sua última ceia, quando deixava as últimas instruções aos seus apóstolos; ademais o estudo do contexto de Mt 26,26 prova que o verbo “ser”no caso, deve ser tomado no sentido próprio. Mais: a Tradição oral, a partir dos primeiros decênios do Cristianismo, abona a interpretação literal das palavras de Cristo. Querer ignorar esta Tradição, para ler a Bíblia como se não estivesse essencialmente ligada à Palavra de Deus oral (que lhe é anterior e que a acompanha), é sujeitar-se a arbitrariedades subjetivas e falsas.

As Testemunhas de Jeová têm espalhado um número da revista A SENTINELA (15/01/1991), portador de artigo que contesta a tradução “Isto é o meu corpo” em Mt 26,26, e propõe a versão: “Isto significa o meu corpo”, como, aliás, se lê na tradução das Testemunhas (Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas). Visto que este panfleto tem perturbado as mentes de muitos católicos, examinaremos o caso nas páginas subseqüentes.

#DicaCooperadores O Amor Divino Encarnado. A Sagrada Eucaristia Como Sacramento da Caridade, por Cardeal Raymond Burke

1. problema

As Testemunhas alegam que a forma verbal grega “esti” pode ser traduzida tanto por “é” como por “significa”. Como exemplos desta segunda alternativa, citam três textos do Antigo Testamento (Gn 41,26; Ez 5,5; Dn 7,17), que foram escritos em hebraico e não em grego (exemplos portanto inadequados), e textos do Novo Testamento como Lc8,11; Mt 13,38; 16,18; Gl 4,24; Ap 1,20.

Ora qual das duas versões mais convém ao texto de Mt 26,26? — Respondem as Testemunhas: a tradução “significa”, pois “Jesus estava vivo num corpo perfeito, quando proferiu as palavras daquele texto”; por conseguinte, “o pão que Ele ofereceu aos seus seguidores, não podia ser sua carne literal”.

Que dizer a propósito?

2. A resposta

2.1. Metáfora ou sentido literal?

Jesus na última ceia, ao deixar as derradeiras instruções aos discípulos, terá evitado qualquer termo de sentido ambíguo (nas horas supremas e decisivas os homens costumam recorrer a linguagem precisa). Cristo, assentado à mesa com os Apóstolos, tinha diante dos olhos todas as gerações cristãs através da história; sabia previamente que de maneira geral, durante séculos e séculos, os seus discípulos haviam de interpretar os seus dizeres em sentido realista, prestando adoração ao SSmo. Sacramento. Não obstante, segundo as hipóteses racionalistas, Cristo, “que não queria ensinar a real presença na Eucaristia”, teria usado termos ambíguos, induzindo em erro seus primeiros discípulos, homens simples e rudes, e, depois deles, uma multidão de fiéis cristãos! Diga-se mais: Cristo teria usado termos aparentemente claros para ocultar um simbolismo assaz difícil de se apreender; com efeito, é árduo definir qual o significado metafórico que Jesus possa ter tido em mira ao proferir as suas palavras simples sobre o pão e o vinho; em 1577, sessenta anos após o surto do luteranismo, São Roberto Belarmino dizia ter aparecido, havia pouco, um livrinho que apresentava duzentas interpretações dos protestantes para as palavras “Isto é meu corpo”!

Contra a perspectiva de um Jesus a induzir em erro os seus discípulos, insurgia-se em 1529 o humanista, crítico irônico, Erasmo de Rotterdam, que escrevia a Bero a propósito das diversas sentenças “eucarísticas” dos Reformadores (Lutero e Zwingli):

“Jamais me pude persuadir de que Jesus, a Verdade e a Bondade mesmas, tenha permitido que por tantos séculos a sua Esposa, a Igreja, haja prestado adoração a um pedaço de pão em lugar de adorar a Jesus mesmo.”

Contudo ainda há quem levante objeções ao sentido literal das palavras de Jesus.

2.2. Objeções

1) Os textos metafóricos

Vários são os textos da Sagrada Escritura em que Cristo ou os Apóstolos empregam o verbo “ser” ao sentido de “significar, simbolizar”. Sirvam de exemplo

Jo 14,6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”;

Jo 15,1: “Eu sou a verdadeira videira, e meu Pai o vinhateiro”;

1Cor 10,4: “A pedra era o Cristo” (texto particularmente utilizado pela exegese protestante).

Lc8,11: “Eis o que significa esta parábola: A semente é a Palavra de Deus”.

Mt 13,38: “O campo é o mundo. A boa semente são os filhos do Reino. O joio são os filhos do Maligno”.

Mt 16,18: “Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja”.

Gl 4,24: “Isto foi dito em alegoria. As duas mulheres são as duas alianças. ..”

Ap 1,20: “As sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas”.

— Em resposta, far-se-á observar que o contexto de tais versículos indica suficientemente tratar-se de alegoria ou locução figurada, donde natural e evidentemente decorre o sentido simbolista do verbo ser nessas passagens. No contexto, porém, da última ceia, falta todo indício de simbolismo; arbitrário, portanto, e avesso aos princípios básicos da interpretação de qualquer trecho literário seria, na exegese de tais episódios, fugir ao sentido óbvio e literal do verbo ser.

Além disto, verifica-se que nas frases citadas o sujeito é um pronome pessoal ou um substantivo, sujeito bem determinado e por si mesmo diverso do respectivo predicado; a aproximação entre sujeito e predicado em tais sentenças só pode ser figurada ou metafórica. Ao contrário, nas frases da consagração eucarística o sujeito é um pronome demonstrativo, pronome que por si mesmo é indeterminado e vai receber sua determinação do substantivo com o qual ele é relacionado, podendo mesmo identificar-se com o significado deste substantivo. Na frase de Cristo, portanto, o pronome demonstrativo touto (em grego), isto ou este, relacionado com corpo, não somente não se opõe à identificação com corpo, mas exige-a, de tal modo é simples e clara a cópula é. Em outros termos: na afirmação do Senhor, o pronome “isto” (touto) designa uma substância existente sob as aparências externas do pão, substância cuja natureza é enunciada pelo predicado “meu corpo”. De resto, nota-se que “isto (ou este) é meu corpo” equivale a “Eis aqui meu corpo”, como incute a comparação de Ex 24,8 com Hb 9,20 (a fórmula “Este é o sangue” de Ex reaparece em Hb como “Eis o sangue”).

No tocante a 1Cor 10,4, onde São Paulo aplica a metáfora do Rochedo a Cristo, note-se que este texto não pode servir para ilustrar a fórmula da consagração eucarística, pois o Apóstolo em 1Cor 10 exprime formalmente sua intenção de recorrer a uma metáfora: “Nossos pais todos beberam do mesmo alimento espiritual; bebiam, com efeito, de um Rochedo espiritual que os acompanhava; e o Rochedo era o Cristo”. O adjetivo “espiritual”, duas vezes ocorrente nestes dizeres e diretamente associado a “Rochedo”, indica bem que o hagiógrafo quer empregar uma figura de linguagem. São Paulo mesmo, sem negar a realidade da história do êxodo, declarou explicitamente que ele a considerava em 1Cor 10 como figura do que se dá com os cristãos do Novo Testamento (cf. v.10). — Na fórmula de consagração eucarística, ao contrário, falta todo e qualquer indício de uso metafórico das palavras.

2) A fórmula de Lucas e Paulo

Conforme Paulo e Lucas, Jesus disse: “Este cálice é a nova Aliança em meu sangue, que será derramado” (Lc 22,20; cf. 1Cor 11,25). Ora, assim como o cálice continuou a ser cálice após estas palavras, dir-se-á que também pão e vinho não deixaram de ser pão e vinho após os dizeres que, conforme Mt e Mc, Jesus proferiu sobre eles. Que replicar a isso?

— Na realidade a fórmula de 1Cor e Lc coincide com a de Mt e Mc quanto ao sentido doutrinário, incutindo ambas a real presença; apenas se diferenciam no plano filológico ou estilístico. Ao passo que Mt e Mc empregam uma construção de frase muito lisa e clara, a tradição de Paulo e Lucas recorre a dois artifícios de redação, mencionando sucessivamente o recipiente em lugar do respectivo conteúdo (o cálice em lugar da substância do vinho que ele continha) no sujeito da frase, e o efeito em lugar da causa (a Nova Aliança em lugar do sangue que a tornou possível e a selou) no predicado da mesma frase; por conseguinte, se quiséssemos fazer abstração dos artifícios de estilo, teríamos em 1Cor e Lc a construção: “Isto (ou esta substância que se acha contida no cálice) é o meu sangue, o sangue que acarreta e sanciona a Nova Aliança entre Deus e os homens”. A construção artificiosa de São Paulo e São Lucas serve para exaltar a realidade da Aliança selada pelo corpo e o sangue de Cristo imolados, enquanto a formulação simples de São Mateus e São Marcos realça principalmente a realidade da presença do corpo e do sangue do Senhor que selara essa Aliança.

3) “Jesus estava vivo… “

“Jesus estava vivo e presente na última ceia; por isto o pão só podia ser símbolo do seu corpo”. — Quem assim fala, usa de um raciocínio meramente humano a priori. Deus pode fazer tudo que não seja absurdo, ainda que surpreenda as expectativas humanas. Ora os textos bíblicos são assaz eloqüentes e claros no sentido de incutir a conversão do pão em corpo e a do vinho em sangue do Senhor Jesus. A teologia, por sua vez, mostra não haver aberração lógica neste processo.

2.3. A Tradição

Para entender os textos do Novo Testamento, estavam as antigas gerações cristãs mais habilitadas do que os leitores do século XX, como são as Testemunhas de Jeová. Conheciam muito melhor a língua e os hábitos do helenismo assim como as intenções dos Apóstolos e Evangelistas, que transmitiam a mensagem de Cristo. Ora as antigas gerações cristãs entenderam as palavras da consagração eucarística em sentido literal,([1]) iniciando assim a Tradição da Igreja que o protestantismo no século XVI contestou.([2])

É ousado e estranho pretender, nos tempos modernos, compreender melhor o Novo Testamento do que o fizeram os cristãos durante quinze séculos. Aliás, o Cristianismo tem sua fonte de doutrina não somente na Palavra de Deus escrita, mas também na Palavra de Deus oral, que é anterior àquela e que continua a ressoar na Igreja através da Tradição, da qual o Magistério da Igreja é o órgão credenciado e autorizado pelo Senhor Jesus (cf. Mt 16,19; Lc 22,31s; Jo 21,15-17). Separar a Palavra bíblica do seu berço oral e lê-la como se não houvesse um modo de entendê-la tão antigo quanto o Cristianismo é entregar-se a arbitrariedade e intuições subjetivas. Nas dúvidas relativas ao modo de entender uma palavra bíblica de duplo sentido, não há melhor alvitre do que o recurso à Tradição oral.

Vê-se, pois, que as objeções das Testemunhas de Jeová ao entendimento clássico de Mt 26,26 não procedem. É de concluir, de acordo com os testemunhos do Novo Testamento escrito e da Tradição oral, que o Senhor Jesus quis afirmar a sua real presença no pão e no vinho consagrados.

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