Liberalismo e Igreja. Há algum mal em valorizar a liberdade humana?

Conforme certos filólogos, a palavra «Liberalismo» vem do adjetivo espanhol «liberal», que na Europa do século’ passado se difundiu em oposição ao adjetivo «servil» durante os movimentos políticos subsequentes ao governo de Napoleão Bonaparte. O liberalismo veio então a ser uma corrente de pensamento que afirma o valor da liberdade humana de modo tal que a cada cidadão toca o direito de conceber a Verdade, o Bem e a religião segundo o seu próprio alvitre, independentemente de qualquer tutela ou autoridade.

I. Histórico do liberalismo

Foi no setor da sociologia e da política que o Liberalismo surgiu. Deve-se, com efeito, a uma reação dos povos contra os sistemas de governo monárquicos absolutistas que tiveram voga na Europa dos séculos XVII e XVIII (o poder executivo, representado pelo rei, quase absorvia os poderes legislativo e judiciário, gozando de faculdades praticamente ilimitadas).

O berço da reação foi a França, onde a Revolução de 1789 (preparada pela filosofia racionalista e naturalista dos enciclopedistas Voltaire, Diderot, d’AIembert) desencadeou o ideal da «emancipação» dos cidadãos e do povo em todos os setores. Esse ideal encontrou em breve um dos seus maiores representantes na pessoa do sacerdote Félicité Robert de Lamennais. Imbuído de amor à causa cristã, esse varão concebeu a ideia de que a S. Igreja muito se beneficiaria se sacudisse os encargos decorrentes da sua união com o Estado; a partir de 1829, começou,, pois, a propugnar uma só tese: liberdade … liberdade em tudo e para todos; o governo civil procuraria promover o bem comum sem levar em conta os direitos da Igreja, criando um bem-estar natural, emancipado do sobrenatural; a S. Igreja, por sua vez, dispensaria a colaboração das autoridades civis, colaboração que em muitos casos equivalia a sufocação; a Igreja, dizia Lamennais, se desenvolveria melhor, pois Ela possui o poder da Verdade e do Amor, o poder mesmo de Deus. Lamennais comparava o sistema antigo à tutela exercida pelos genitores sobre os filhos, tutela que deve cessar quando estes chegam à maior idade; assim o povo teria estado sob o patrocínio da Igreja e do Governo unidos até o séc. XVIU. Doravante, porém, tendo chegado à plenitude dos tempos, o povo se devia libertar de qualquer tutela profana ou religiosa, estabelecendo uma ordem de coisas neutra em matéria de filosofia e religião; o Estado e a Igreja se separariam, reconhecendo que sua união fôra mera preparação evangélica, a qual já se achava ultrapassada. O novo regime era chamado «democracia» (como se vê, este termo, em si muito belo, foi então forjado para designar uma ordem civil tida como leiga e indiferente, mas, em última análise, naturalista, raciona- lista e anticristã).

Eis como Lamennais se exprimia:

«O Estado deve considerar-se como colocado fora de todas as comunhões religiosas, sem autoridade sobre alguma delas, mas também sem outra obrigação para com elas que não a de lhes assegurar a liberdade. Isto supõe que o Estado, destituído de Religião ou, se quisermos,, ateu, professe a liberdade de cultos e a de consciência e que a Igreja aceite pràticamente estas duas coisas» (L’Avenir, t. I pág. 29s, artigo «De la Séparation de 1’Église et de l’État»).

O ardoroso sacerdote reuniu em torno de si um grupo de jovens inteligentes e generosos, tais como Lacordaire, Montalembert, Gerbet, Rohrbacher, que constituíram a sociedade dita «Agence Générale pour la Défense de la Liberté religieuse». O movimento fundou o jornal «L’Avenir», com o lema «Dieu et Liberté», mas de duração muito efêmera (de 16/X/1830 a 15/XI/1831).

Compreende-se que as ideias de Lamennais, ousadas como eram, tenham provocado receios e oposição, da parte tanto de bispos como de simples fiéis. Diante da situação, o Papa Gregório XVI em 1832 publicou a encíclica «Mirari vos», condenando as ideias de Lamennais (ideias que naquela época acarretavam perigos e males que hoje já não se verificariam). Quase todos os discípulos do mencionado sacerdote inclinaram-se diante da sentença da Santa Sé, ficando Lamennais a sós na sua residência de Chênaie, donde continuou a disseminar ideias cada vez mais liberais.

Embora estivesse dissolvido, o grupo de discípulos de Lamennais não abandonou o ideal de conciliar com os princípios do Cristianismo a sede de emancipação dos homens do século passado. Foi o que suscitou novas iniciativas e prolongadas discussões nos decênios subsequentes. Em 1848 o Pe. Lacordaire fundou o jornal «Ère nouvelle», inspirado por liberalismo assaz acentuado e arauto de reivindicações sociais inovadoras; cora ele se achavam o Pe. Maret e o leigo Frederico Ozanam. Na oposição encontravam-se Louis Veuillot e Melchior Dulac, com o seu jornal. «L’UnÍvers».

A situação se tornou cada vez mais confusa ha Franca, onde se originaram dois partidos bem característicos: um, liberal, ao qual aderiram outrossim Montalembert, De Falloux, De Broglie, Augustin Cochin, Mons. Dupanloup, bispo de Orleães; e o antiliberal, que contou com o apoio de Mons.- Fie, bispo de Poitiers. O estado de coisas era tão complexo que até os mais fervorosos católicos encontravam dificuldade para distinguir com clareza o que havia de oportuno e o que havia de errôneo nas ideias então propaladas.
Tais circunstâncias exigiam novo pronunciamento da Santa Sé. Este, de fato, se deu aos 8 de dezembro de 1864, quando o S. Padre Pio IX publicou a encíclica «Quanta cura» acompanhada do Sílabo (ou Sumário de erros do pensamento da época) ; nesses documentos o Pontífice denunciava tudo que havia de condenável nas teses dos católicos liberais.

Os anos seguintes foram anos de controvérsias. Menos de um mês após a publicação da encíclica, Mons. Dupanloup, notável por seus talentos e seu prestígio, divulgou um opúsculo intitulado «La Convention du 15 Septembre et TEncyclique du 8 décembre 1864», em que ainda procurava tornar simpática e aceitável a posição do Liberalismo. Em vista disto, distinguia entre doutrina e prática: no tocante à doutrina, asseverava, Pio IX nada condenara além do que já havia sido condenado em documentos anteriores; positivamente, apenas reiterara o pensamento da Igreja com relação à família, à sociedade e à política. No tocante à prática, porém, Mons. Dupanloup julgava que Pio IX deixara margem à conciliação com a vida moderna; seria possível, sim, abrir mão de algumas exigências práticas da verdade ou da doutrina da Igreja, caso o cumprimento de tais exigências aparecesse como algo de muito difícil ou impossível na sociedade do séc. XIX.

Esta distinção entre doutrina e aplicação prática é, em linguagem de escola, designada pela fórmula “tese-hipótese” (a hipótese leva em conta os casos concretos ou a vida cotidiana, permitindo abrandamento de conclusões decorrentes da tese ou doutrina).

A situação política da Itália favorecia as discussões: os patriotas tentavam unificar a península, abolindo o poder temporal do Papado; à sua frente, estava o Conde de Cavour, que pretendia apaziguar os ânimos, apregoando a fórmula de Montalembert: «A Igreja livre no Estado livre! (L’Église libre dans l’État libre!)»; o que queria dizer que nada haveria a temer para a Igreja caso viesse a perder o território do Vaticano, pois o Estado italiano leigo ou neutro (liberal) não entravaria as liberdades religiosas.

Sobreveio a figura de Leão XIII. Este Pontífice, pacificador como era, quis esclarecer melhor a posição da Igreja na controvérsia, publicando a 1 de novembro de 1885 e a 20 de junho de 1888 as encíclicas «Immortale Dei» e «Libertas», respectivamente. Tais documentos reafirmavam em primeiro lugar a doutrina das encíclicas «Mirari vos», «Quanta cura» e do Sílabo: asseveravam, sim, que todas as formas de governo são compatíveis com a doutrina católica, mas que a nenhum governo é lícito atribuir ao erro os mesmos direitos que à verdade ou colocar os diversos cultos no mesmo plano legal que a verdadeira Religião.

«É necessário que a sociedade civil, como sociedade civil, reconheça Deus como seu princípio e seu fim … que ela respeite e honre o poder e a soberania de Deus. A justiça e a razão proíbem que o Estado professe o ateísmo ou — o que equivaleria ao ateísmo — que ele mostre as mesmas disposições para com cada uma das diversas religiões… e indistintamente conceda a todas os mesmos direitos. Já que a profissão pública de uma só Religião é dever do Estado, faz-se mister que o Estado professe aquela Religião que é a única verdadeira, Religião que não é difícil reconhecer, principalmente nos países católicos, pois as características da verdade brilham nela por meio de sinais que a distinguem entre todas. Essa Religião, os chefes de governo tratem de a conservar, de a proteger, se querem prover, de maneira prudente e útil, como estão obrigados, ao bem comum dos cidadãos» (Leão XIII, enc. «Libertas»).

Esta tese pode, à primeira vista, parecer rígida demais e, por conseguinte, utópica. Leão XIII tinha consciência de que seria praticamente inexequível nas circunstâncias da vida moderna. Por isto, não hesitou em explicar com precisão como na prática a doutrina (tese) poderia ser abrandada; sua posição resume-se nos três seguintes itens da enc. «Immortale Dei»:

«Ninguém tem motivo para acusar a Igreja de rejeitar concessões e acomodações razoáveis ou de ser inimiga de sadia e legítima liberdade. — Com efeito; se a Igreja julga que não é licito colocar os diversos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira Religião, Ela nem por isto condena os chefes de governo que, visando alcançar determinado bem ou impedir certo mal, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada qual seu lugar no Estado. — É, aliás, costume da Igreja cuidar com todo o zelo, para que ninguém seja constrangido a abraçar a fé católica contra a sua vontade, pois, como observa S. Agostinho, a fé só pode existir onde haja espontaneidade» (Denzinger, Enchiridion 1873-1875).

A fim de ilustrar melhor o pensamento do Pontífice, transcrevemos mais as seguintes passagens da encíclica «Libertas»

“Em sua consideração materna, a Igreja leva em conta o peso acabrunhador da fraqueza humana: Ela não ignora a onda (libertina) que, em nossa época, arrasta os espíritos e as coisas. Por isto, embora só reconheça direitos ao que é verídico e honesto, Ela não se opõe à tolerância de que os poderes públicos dão provas frente a certas instituições contrárias à verdade e à justiça, tendo em vista evitar maiores males ou obter e conservar maiores bens.
Deus mesmo, em sua Providência, embora infinitamente bom e todo-poderoso, permite, não obstante, a existência de certos males no mundo, ora para não impedir bens maiores, ora para evitar mais vultuosos males. No regime das nações, convém que os governantes imitem Aquele que governa o mundo. Mais ainda: não podendo impedir todos os males particulares, a autoridade dos homens está obrigada a permitir e deixar impunes muitas coisas que, a justo titulo, cairão sob o juízo da Providência Divina. Observe-se, porém, o seguinte: se, em vista do bem comum, as leis dos homens podem e mesmo devem tolerar o mal, nunca o podem ou devem aprovar e desejar em si mesmo. Com efeito, o mal é a privação do bem; por conseguinte, ele se opõe ao bem comum, que o legislador está obrigado a desejar e defender do melhor modo possível. Neste ponto também as leis humanas devem procurar imitar a Deus…

Uma coisa ficará sempre de pé, a saber: a liberdade concedida indiferentemente a todos e em favor de todos não é, como já muitas vezes dissemos, desejável em si mesma, pois repugna à razão que o erro e a verdade gozem dos mesmos direitos; no que se refere à tolerância, é estranho ver até que ponto se afastam da equidade e da prudência da Igreja aqueles que professam o Liberalismo”.

Após tais declarações da Santa Sé, foram-se apaziguando os ânimos; o Liberalismo como tal deixou aos poucos de ser objeto de discussão. As controvérsias, porém, imprimiram suas marcas na mentalidade dos povos em geral até o dia de hoje. Pode-se dizer que numerosas correntes de filosofia, sociologia, política, assim como vários movimentos religiosos de nossos dias são, em última análise, expressões concretas da mentalidade liberal que tanto agitou os pensadores do século passado.

Vejamos, pois, mais precisamente como se caracteriza essa mentalidade.

II. Em que consiste o liberalismo?

Como se depreende de quanto foi dito atrás, o Liberalismo constitui uma tendência ou uma atmosfera muito mais do que um sistema ou uma escola de pensamento.

Essa tendência se distingue primariamente pela intenção de desligar a liberdade humana de qualquer lei ou autoridade que não seja puramente humana ou até… que não seja a do próprio sujeito. Atribui, pois, à razão a capacidade de discutir todos os valores, remover o que ela julgar inaceitável e erguer o que ela considerar oportuno. Em particular, o Liberalismo não reconhece autoridade religiosa sobrenatural, como a afirma o catolicismo: … autoridade que mereça acato e respeito independentemente dos valores humanos (virtude e sabedoria) de seus representantes.

Aliás, esta premissa é essencial para que possa existir Liberalismo: tudo é humano, e meramente humano. Por isto, tudo é relativo, tudo é imperfeito. Nada, por conseguinte, nem mesmo a Religião, merece a adesão incondicional do homem. Daí se compreende que o Liberalismo acarrete indiferentismo, ora mais, ora menos acentuado; implantando-se numa sociedade, cedo ou tarde solapa as energias coletivas e o heroísmo das atitudes.

Tal mentalidade toma facetas bem definidas quando aplicada às expressões da cultura. Eis um rápido catálogo dessas facetas:

Liberalismo filosófico. É a tendência a rejeitar no campo filosófico (ou na maneira geral de encarar o mundo e a vida) qualquer tutela que não seja a própria razão humana.

Na Idade Média, os estudiosos talvez tenham abusado da autoridade do filósofo grego Aristóteles; Descartes (+1650) iniciou a reação contra essa docilidade, reação que aos poucos foi tomando proporções exageradas. A razão humana, em consequência, negou qualquer limite no exercício da reflexão, pretendendo julgar tudo, até mesmo as verdades religiosas. A possibilidade de dogmas de origem sobrenatural, não derivados da razão, foi, de antemão, negada: o homem bastaria a si mesmo (autossuficiência do pensamento humano). As correntes filosóficas contemporâneas não cristãs, por mais contrárias que sejam entre si, supõem todas tal ponto de partida: assim o criticismo, o idealismo, o positivismo, etc.

Bons críticos modernos observam que nessa posição filosófica está latente certa contradição: o Liberalismo, que rejeita o dogma, de antemão admite um dogma — o dogma de que não pode haver autoridade ou tutela que transcenda a razão humana. Sem provas e gratuitamente, o pensador liberal se vincula a este pressuposto, cerceando a sua liberdade dentro do seu imanentismo ou da sua autossuficiência.

Liberalismo religioso. Lutero proclamou o livre exame da Bíblia, ou seja, a recusa de qualquer autoridade visível que orientasse a leitura das Escrituras Sagradas; cada crente deveria perceber dentro de si, pelo testemunho meramente interno do Espírito Santo, o sentido da Palavra de Deus. Com isto Lutero deu início a uma nova mentalidade dentro do setor religioso — mentalidade subjetivista e individualista. Eis, porém, que, quando a fé no testemunho interno se atenuou (como no protestantismo do séc. XVIII), cada indivíduo ficou com a liberdade de julgar os valores da Religião sem controle superior à sua própria razão; dai dizer-se que tanto faz abraçar esta como aquela religião ou mesmo recusar qualquer religião. Em última análise, todas as Religiões seriam boas; dir-se-ia que é o homem quem as faz, quem as julga, quem as condena, em vez de ser condenado pela Religião.

Tais ideias repercutiram em certas correntes bíblicas dos séc. XVIII/XIX, favorecendo exageros na crítica dos livros sagrados. Em consequência, notáveis autores dedicados ao estudo das Escrituras chegaram a negar a Divindade de Cristo. Tal estado de coisas provocou entre os anglicanos o benfazejo «Movimento de Oxford», encabeçado por Newman, o qual denunciou e impugnou o liberalismo religioso, primeiramente como anglicano, depois como católico.

Pio IX, no Silabo, condenou a proposição no 4, conforme a qual a razão seria a soberana norma para se julgar qualquer tipo de verdade (cf. Denzinger, 1704).

Aplicado ao setor das relações da Igreja com o Estado, o Liberalismo religioso propugna um Estado leigo (que praticamente é Estado ateu), dissimulado sob o nome de Estado «tolerante»: Religião não seria valor necessário a um programa de bom governo; em matéria de Religião, não haveria propriamente nem verdade nem erro, nada enfim que merecesse o empenho do Estado.

A Igreja, na impossibilidade de conseguir melhor solução, aceita esse agnosticismo, contanto que não degenere em perseguição religiosa.

Liberalismo político. Caracteriza-se, no seu âmago, pelas ideias que acabam de ser expostas no tocante à Filosofia e à Religião. A política é uma das aplicações da Filosofia e da atitude religiosa do cidadão.

Liberalismo econômico. No setor econômico, o Liberalismo ensina que a livre concorrência é lei providencial, a qual estimula a produção dos bens e a prosperidade dos povos; o interesse pessoal dos cidadãos, isento de qualquer intervenção do Estado, seria o grande propulsor das atividades econômicas.

Essas ideias foram apregoadas de maneira sistemática na Escola de Manchester, orientada por Adam Smith (+1790). «Deixar fazer, deixar passar», tal era o lema desse tipo de Liberalismo; nenhuma autoridade teria o direito de exercer controle sobre as iniciativas dos indivíduos, que destarte facilmente cediam ao egoísmo e à ganância, estabelecendo a opressão dos pobres por parte dos ricos, reduzindo o trabalho à categoria de mercadoria sujeita às leis da oferta e da procura; tais males foram agravados pelo fato de que os economistas liberais do séc. XVIII professavam a total separação entre economia, de um lado, e moral (consciência), do outro lado. Foi o liberalismo econômico que provocou a concentração de grandes capitais em mãos de poucos proprietários, com detrimento para a massa da população entregue à miséria (donde o chamado «capitalismo»).

Liberalismo artístico. Propala a separação entre às regras da arte e as normas da consciência ou da moral. Ao artista seria lícito produzir toda e qualquer obra de arte, sem levar em conta os ditames da ética. Cf. «P. R.» 25/1960, qu. 5, onde se encontram a explanação e a refutação dessa atitude liberal.

Em conclusão: o Liberalismo resumiria todas as suas expressões no seguinte princípio: Todo homem responsável por seus atos tem o direito de fazer o que lhe agrade, «certo ou errado», desde que os atos de tal indivíduo não prejudiquem a sociedade.

As categorias de «certo» e «errado», conforme esta apreciação, são muito variáveis, de modo que ninguém pode pretender possuir a certeza ou a verdade.

Que dizer de tais ideias?

III. Uma reflexão

Como vimos, o princípio básico do Liberalismo ensina que a liberdade é um bem absoluto, acima do qual não há padrão; consequentemente, ao homem é lícito, com a sua liberdade, empreender o que queira.

Ora não é difícil verificar as falhas deste princípio. Em verdade, o homem nada tem de absoluto, mas é um ser relativo, que só se consuma voltando ao seu Autor , o Bem Supremo ou Deus. A liberdade, portanto, não é o Supremo Bem ou o Fim do homem, mas é mero meio de que o homem dispõe para atingir com dignidade o seu Fim Supremo, Deus.

Realizar o bem é o fim do homem. Querer realizá-lo, e querer realizá-lo de maneira consciente e nobre, eis o que a liberdade presta de grandioso ao homem.

Por conseguinte, o cidadão não vive para gozar simplesmente da sua liberdade, mas para utilizá-la, para pô-la ao serviço do seu ideal supremo, que é a consecução do Sumo Bem ou Deus.

Donde se vê que o homem recebeu, sim, a liberdade de escolher entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro, mas não recebeu o direito de escolher o mal e o erro. Não; a própria natureza humana exige que o homem, para ser o que deve ser, aplique a sua liberdade a escolher a verdade e o bem, rejeitando; o erro e o mal.

O genuíno uso da liberdade, portanto, não implica que. o homem tenha o direito de escolher indiferentemente entre o bem e o mal, mas apenas… que ele tem o direito de escolher o bem com dignidade superior à de uma máquina ou de um autômato. Donde se vê que a ninguém é lícito, em nome da liberdade professar e apregoar o que lhe passe pela cabeça. Quem queira fazer isto, encaminha-se para a sua ruína física e moral; ora a natureza a ninguém deu o direito de se destruir. — É preciso, pois, que haja autoridade e guia em todo e qualquer setor em que o indivíduo se queira lançar.

São estas ideias que nos levam a rejeitar a mentalidade do Liberalismo como algo de falho ou algo de nocivo à própria dignidade humana.

A fim de favorecer a reflexão sobre o assunto, transcrevemos aqui algumas passagens de Fulton Sheen, que, em estilo característico, enunciam as mesmas ideias:
 
«A liberdade não é o direito de fazer o que me pareça…; ao contrário,. .. é o direito de fazer o que devo…

Essa palavrinha «dever» significa que o homem é livre. O fogo é necessàriamente quente, o gelo é necessariamente frio, mas o homem deve ser bom.

A liberdade não é o poder de fazer qualquer coisa que se queira… Certamente você pode fazer qualquer coisa que lhe agrade ou que queira. Pode roubar do seu vizinho, pode bater na sua mulher, pode encher colchões com giletes usadas, e também matar a tiros de metralhadora as galinhas do vizinho, mas você não deve fazer nada disso, parque, se fizesse algo tal, se desfiguraria ou degradaria, deixaria de ser o que um homem deve ser.
A liberdade é, pois, mais um poder moral do que um poder físico, é um dever e não um poder.»

Mais adiante continua o autor, falando de «espécies de liberdade» a fim de designar «verdadeira e falsa liberdade» :

«Qual é a mais elevada espécie de liberdade? Fazer o que devo, isto é, obedecer à minha consciência e salvar a minha alma, ou fazer tudo o que eu queira, seja bom, seja mau?

Eis dois aspectos da liberdade, pois alguém se faz santo pela mesma vontade pela qual se pode tornar um demônio.

Este é o problema: Qual é a mais alta forma de liberdade ?

Decerto, fazer o que devemos é mais alta forma de liberdade do que fazer o que queremos, porque a primeira termina no perfeito desenvolvimento da nossa personalidade, ao passo que a última termina em sua escravização.
 
Por exemplo, o homem deve ser sóbrio, e não se entregar demais ao hábito da bebida. Suponhamos, porém, que diga : ‘Sou livre, portanto, nada de proibições nem… de restrições puritanas; por isto beberei quanto quiser’. Depois de algum tempo, tal homem fica escravizado à bebida; em lugar de fazer o que lhe agrada, bebe não por prazer, mas para evitar o desprazer de não beber. Tendo agido mal, sua vontade permanece ainda livre para escolher o que é bem,, mas ele não é mais livre para fazê-lo. Todas as forcas de resistência foram vencidas e sua liberdade acaba em escravidão. O erro que cometeu, é o erro que o mundo moderno está cometendo: pensar que liberdade significa independência da lei, e que infringir as leis de Deus é uma forma de afirmação de personalidade. O que devemos meter em nossas cabeças, como cidadãos, como pais de família e como educadores, é que liberdade não significa ilegalidade. Pelo contrário, a liberdade é condicionada pela obediência à lei. Liberdade fora da lei não existe, só existe liberdade dentro da lei… Por exemplo, um aviador só tem liberdade de voar se submeter-se à lei da gravidade, isto é, deve agir dentro da lei e não fora dela. Tente agora dar uma prova de afirmação da personalidade, e atire-se do Empire State Building e verá que num minuto terá perdido toda liberdade — até a de viver… Esqueça a finalidade de uma navalha e use-a para abrir latas de tomates, e estragará a navalha porque esqueceu sua finalidade…

Assim se dá com a lei moral; somos verdadeiramente livres quando obedecemos à finalidade ou à lei para a qual fomos criados, finalidade que é o desdobramento e o desenvolvimento de nossa personalidade através de nossa eterna felicidade com Deus. Temos liberdade de ignorar a lei moral, de beber, de roubar, de ser adúlteros, de sacudir os punhos com ódio, assim como temos liberdade de ignorar a lei da gravidade, mas cada vez que a ignoramos, ou diminuímos ou destruímos a nossa liberdade. Alcança-se a liberdade real, agindo não fora da lei, mas dentro dela.

…Deus implantou na natureza humana e em Sua Igreja as leis que nos permitem realizar a finalidade da vida e atingir os mais altos objetivos de nossa personalidade. Essas leis não são represas que detêm o progresso; são diques que impedem que as águas do egoísmo e da concupiscência invadam a terra. Se eu obedecer ou fizer o que devo, serei livre. Se desobedecer ou fizer o que quiser, estarei agindo contra os mais altos interesses de minha natureza. Cada vez que peco, sou menos homem em razão disso, tal como a máquina em cujo uso se violam as instruções do fabricante é menos máquina.

Pecar, que é o desprezo da finalidade e da lei da vida, não é prova de liberdade; é o começo da escravidão, porque, como disse Jesus Cristo, ‘todo aquele que comete o pecado, é escravo do pecado* (Jo 8,34)» (O problema da Liberdade. Rio de Janeiro 1945, pág. 3742).

Uma vez refutado o princípio básico do Liberalismo, verifica-se consequentemente quanto são errôneas as concretizações ou aplicações do mesmo nos diversos setores da Filosofia, da Religião, da economia, etc. Por isto não nos demoraremos na consideração direta de tais aspectos. Apenas aqui lembraremos que a S. Igreja nos últimos anos, ao conceber as suas relações com o Estado e com outros credos religiosos, mais e mais propugna a tolerância ou o «caso de hipótese» de que já Leão XIII se fez arauto; cf. «P. R.» 36/1960, qu. 6.

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