Natureza e natural
Etimologicamente, natureza vem do radical latino gna, que significar gerar (donde nasci = nascer). Daí se vê que natura, natureza, já por sua etimologia designa (para falarmos em termos muito simples) «aquilo que faz alguma coisa ser o que ela é».
Na linguagem precisa da Filosofia e da Teologia, por «natureza» de um ser entende-se a essência específica desse ser ou a sua estrutura ontológica. Assim a natureza do homem (aquilo que propriamente faz que o homem seja homem) é a sua racionalidade ou a sua composição de corpo e de alma racional.
Define-se consequentemente como natural «o que é proporcional à natureza» ou «o que é determinado pelas exigências da natureza» ou ainda «o que decorre da natureza».
Assim como há diversos tipos de natureza (a do homem, a do animal irracional, a da planta…), há também diversos tipos de «natural»: é, sim, natural, para o homem (não, porém, para a pedra), ter uma inteligência, uma vontade, sofrer a doença, a velhice, a morte; para que o olho veja, é condição natural haja luz (o mesmo, porém, não se requer para que o ouvido ouça).
A ordem natural, por conseguinte, é a reta disposição das criaturas necessária para que possam conseguir o fim último correspondente à sua natureza ; no caso do homem: para que este possa chegar à bem-aventurança de que é capaz a sua natureza.
Sobrenatural
Sobrenatural, em relação a determinada natureza, é:
– em termos negativos: aquilo que não pertence à integridade dessa natureza nem é necessário para que ela se conserve ou para que consiga a sua perfeição ou finalidade natural;
– em termos positivos: o que está acima das exigências dessa determinada natureza. O sobrenatural, portanto, é sempre um dom gratuito, que sobrevém à natureza já constituída.
O sobrenatural divide-se em
a) sobrenatural simplesmente dito e sobrenatural relativo.
Sobrenatural simplesmente dito é aquilo que excede as exigências de toda e qualquer criatura: tal é, por exemplo, a visão de Deus face a face;
Sobrenatural relativamente dito ou segundo determinado aspecto é aquilo que excede as exigências de determinada criatura apenas; assim o raciocínio é natural ao homem; seria sobrenatural porém, para a pedra.
b) Sobrenatural quanto à substância e sobrenatural quanto ao modo.
Sobrenatural quanto à substância é aquilo que por si ou por sua própria essência está acima do alcance de determinada natureza; assim o conhecimento dos mistérios divinos.
Sobrenatural quanto ao modo diz-se aquilo que por sua essência é natural, mas que, pelo modo como é produzido, ultrapassa o alcance de determinada natureza; assim o desencadeamento de uma tempestade (coisa natural) num momento em que o céu esteja limpo e a atmosfera serena, é um fenômeno sobrenatural quanto ao modo.
Mais dois exemplos ilustrativos sejam aqui consignados.
A vida milagrosamente restituída a um cadáver é vida natural (vegetativa e sensitiva) causada de modo sobrenatural por Deus; a graça santificante, ao contrário, é vida essencialmente sobrenatural, em relação tanto ao homem como ao anjo, pois consiste em participação da vida íntima de Deus, dispondo a criatura a ver o Criador face a face.
À luz de quanto dissemos, depreende-se que ordem sobrenatural vem a ser a reta disposição das criaturas necessária para que possam conseguir o seu fim último sobrenatural simplesmente dito, ou também :… para que o homem possa chegar à visão de Deus face a face.
Tornam-se oportunas agora algumas observações em torno de quanto acaba de ser exposto:
1) O sobrenatural não se opõe por si ao natural nem destrói a estrutura da natureza. Ao contrário, o sobrenatural supõe a natureza e tende a aperfeiçoá-la. Consequentemente, os dons sobrenaturais podem ser comparados ao fogo, que penetra totalmente a barra de ferro, comunicando-lhe as propriedades de luz e calor características do fogo, sem, porém, destruir a natureza do ferro; são também comparados ao enxerto que, colocado em árvore selvagem, não extingue a vida desta, mas, ao contrário, faz que produza melhores frutos.
2) É fora de propósito dizer-se, com Ripalda, teólogo do séc. XVII (t 1648), que Deus poderia criar uma substância sobrenatural, ou seja, uma substância para a qual o sobrenatural simplesmente dito fosse natural. O sobrenatural simplesmente dito excede as exigências de toda e qualquer criatura; nunca, portanto, pode ser natural a uma criatura.
Preternatural
O preternatural vem a ser uma modalidade de sobrenatural: é aquilo que aperfeiçoa determinada natureza, excedendo as exigências dessa natureza, sem, porém, a elevar acima de si mesma; o preternatural, portanto, é um dom que liberta a natureza dos defeitos que lhe são congênitos, possibilitando-lhe mais fácil consecução de seu fim próprio.
Haja vista o seguinte exemplo. É natural ao homem morrer após alguns decênios de vida na terra; admita-se, porém, que a existência de determinada pessoa venha a ser prolongada por Deus de modo a não conhecer a morte, sem, porém, que essa pessoa deixe de exercer as faculdades de simples homem (portanto, sem ser elevada ao plano dos anjos ou dos filhos adotivos de Deus); diz-se então que o dom correspondente a tal prolongação é o dom preternatural da imortalidade. — «Preter denota o que está além das exigências da natureza, permanecendo, porém, na linha mesma da natureza, não passando para plano superior (sobrenatural).
Eis outro exemplo: o homem, como vivente racional, adquire lentamente as suas idéias mediante o raciocínio. Dado, porém, que, em vez de conquistar paulatinamente sua ciência pelo raciocínio, o homem venha a possuí-la imediatamente infundida por Deus no momento da sua criação, diz-se que recebe o dom preternatural da ciência; é um dom que não está propriamente acima da natureza, mas está fora de quanto é devido à natureza humana como tal.
Convém por fim notar que «sobrenatural» e «preternatural» não são termos sinônimos de «espiritual». Todo espírito tem sua natureza e por esta se acha integrado na sua respectiva ordem natural (de alma humana, de anjo…). Pode, porém, ser elevado à ordem sobrenatural ou preternatural mediante os dons que acabamos de caracterizar. Paralelamente, todo ser material tem sua natureza, pertencendo a determinada ordem natural (de corpo humano, p. ex.); além disto, pode ser sujeito de dons sobrenaturais (da glória dos filhos de Deus…) ou preternaturais (imortalidade da carne, isenção de dores e miséria…).
Observe-se também que o sobrenatural e o preternatural não são necessàriamente algo de milagroso. Por «milagroso» (no sentido religioso) entende-se o fenômeno extraordinário que chame a atenção dos homens por ser sinal de Deus (cf. «P. R.» 6/1958, qu. 1). Ora pode-se muito bem admitir que dons sobrenaturais ou preternaturais sejam concedidos à natureza humana sem chamar a atenção da comunidade, nem mesmo a do sujeito agraciado. Doutro lado, porém, deve-se reconhecer que todo milagre é algo de sobrenatural ou, ao menos,… de preternatural (justamente por derrogar ao curso normal da natureza é que o milagre chama a atenção dos homens).