“Por que é que o Pai Nosso rezado pelos católicos não inclui a fórmula final: ‘Porque teu é o reino e o poder e a glória para sempre. Amém’, fórmula encontrada na Bíblia dos protestantes (cf. Mt 6,13)?”
“Também quisera saber por que os católicos interpelam a Deus na segunda pessoa do plural (Vós), quando Jesus no Pai Nosso usou a segunda pessoa do singular (Tu)? Não se distanciam da Bíblia?”
1. Em primeiro lugar, deve-se observar que a fórmula é “Porque teu é o reino e o poder e a glória para sempre. Amém” evidentemente não pertence ao teor original de Mt 6,13 ou do Santo Evangelho, mas é acréscimo que os copistas fizeram ao texto sagrado. Tal conclusão se deduz do exame dos códices e manuscritos mais antigos dos Santos Evangelhos: os testemunhos mais fidedignos não contêm a citada fórmula. Em consequência, os exegetas contemporâneos, tanto católicos como protestantes, são unânimes em não a admitir nas edições gregas do texto de São Mateus; para não citar outros nomes, lembramos aqui a edição do autor protestante Eberhard Nestle («Novum testamentum graece et latine». Stuttgart, Privilegierte Wuerttembergische Bibelanstalt), edição grega geralmente reproduzida pela «British and Foreign Society» de Londres: neste texto-padrão, verifica-se que é deixada de parte a cláusula hóti sou estin he basiléia kai he dynamis kai he doxa eis tousaioõnas, amen. A tradução portuguesa de Ferreira de Almeida ainda hoje reproduz a fórmula acima, pois, tendo Almeida trabalhado no séc. XVII, quando os recursos de crítica do texto ainda eram assaz exíguos, o tradutor julgava simplesmente que tais palavras faziam parte do texto sagrado; hoje Ferreira de Almeida, desejoso como era de reproduzir fielmente os dizeres do texto original, já não incluiria a cláusula na sua tradução.
O acréscimo se explica pelo uso da oração dominical na Liturgia: as preces públicas costumavam (e ainda costumam) terminar por uma doxologia ou fórmula de louvor, à semelhança do que se vê no epistolário de São Paulo, (por exemplo, em Ef 3,20s; Rom 9,5; 11, 33-36; 2 Cor 9,15); também as homílias e os sermões dos bispos e presbíteros na antiguidade se encerravam geralmente mediante tais fórmulas. O acréscimo era plenamente justificado na Liturgia, pois inculcava a finalidade suprema do culto sagrado, que é dar glória a Deus (ainda hoje todos os salmos da oração oficial da Igreja se terminam por um «Glória ao Pai»). O uso litúrgico, porém, induziu (erroneamente) alguns copistas a inserir no próprio texto da Bíblia a fórmula de doxologia.
Tendo-se em vista estes precedentes, não se hesitará em cancelar das edições, tanto gregas como vernáculas, do Novo Testamento a mencionada cláusula.
2. Quanto ao tratamento atribuído ao Pai do céu na oração dominical, observar-se-á o seguinte: o texto grego dessa prece usa a segunda pessoa do singular, porque tal era a única fórmula para interpelar alguém (mesmo a Divindade) na linguagem grega. Em português a situação é outra ; há escolha entre Tu e Vós, sendo que o pronome Tu significa tratamento familiar, muito íntimo, enquanto Vós representa tratamento mais solene e majestoso. Pois bem; a tradição cristã entre nós (ao menos no Pai Nosso) habituou-se a interpelar a Deus mediante o Vós, entendendo com isso exprimir em grau máximo o respeito e a dedicação devidos ao Pai do céu, respeito e dedicação que o Tu grego expressava claramente, mas que o Tu português talvez desfigurasse um pouco. Ao lado desta razão em favor de Vós, poder-se-ia também indicar uma justificativa para o tratamento Tu: seria o desejo de professar, com toda a nitidez, intimidade e sentimentos filiais para com o Pai do Céu, sentimentos filiais que o Tu melhor reproduz do que o Vós.
Em última análise, vê-se que uma e outra fórmula são plenamente legítimas; pelo que os católicos não teriam dificuldade em dizer Tu a Deus onde hoje se costuma dizer Vós, desde que a mudança se tornasse conveniente.