A resposta de P. R.” 3/1957 qu. 5 salientava que a pena primária do inferno é o alheamento a Deus; é o ódio ao Sumo Bem, não, porém, o ódio que procura fugir do seu objeto, mas o ódio que não se pode consolar por estar para sempre (e por própria iniciativa) separado do seu objeto. Tremenda dilaceração!
Essa pena de índole espiritual não é a única do inferno. Porque não? Porque o pecado significa não somente aversão a Deus, mas também indevida conversão à criatura; o pecador nesta vida serve-se das criaturas materiais em vista de seu prazer egoísta. Ora, já nesta terras as criaturas materiais violentadas pelo homem exercem sobre este uma sanção espontânea; o pecador é vítima dos seus próprios desmandos. Tal reação das criaturas materiais se verifica, com toda a coerência, na vida futura, ocasionando o que se chama a pena dos sentidos.
Dentre os agentes que causam a pena dos sentidos, o principal é o que se denomina o fogo do inferno.
O que é o fogo do inferno?
Os teólogos afirmam que:
1) Não se trata de fogo meramente metafórico, equivalente ao “ardor” do arrependimento interior. Este conceito não satisfaria às repetidas afirmações da S. Escritura que parecem visar um elemento diverso do réprobo a agir sobre este; também não satisfaria à noção de pecado acima recordada (= conversão à criatura);
2) Não se trata, porém, de um fogo da mesma espécie que o fogo terrestre, o qual devora sua presa e rapidamente se extingue: “non est materialis talis qualis est apud nos. — Não é material como o fogo entre nós” (S. Tomás, S. Teol., Supl. 97, 5 and 1).
A denominação de fogo atribuída a esse agente se deve ao fato de que causa nos réprobos sofrimentos comparáveis aos da queimadura no organismo humano. São Tomás tenta de certo modo elucidar a sua atuação, lembrando o seguinte: todo espírito separado do corpo, como é a alma humana, tem por si o poder de aplicar a sua inteligência e a sua vontade aos objetos de seu agrado, sem sofrer restrição por parte de algum corpo. Ora no inferno, diz São Tomás, existe um agente cuja influência consiste em limitar a atividade da inteligência e da vontade do pecador, fazendo que este assim coibido expie todas as desordens provocadas pelo uso de uma liberdade desenfreada na terra; por conseguinte, o fogo do inferno restringe a determinado local a atividade da inteligência e da vontade do réprobo — o que é penoso castigo para o espírito, que por si deseja ardentemente expandir-se na luz e viver intensamente a sua vida espiritual (cf. S. Teol., Supl. 70,3; os fundamentos remotos desta doutrina são os textos bíblicos que falam de um “acorrentamento” dos réprobos no inferno: Jud 6; Apc 20,2).
Além disto, o fogo do inferno deve exercer ação também sobre os corpos dos pecadores após a ressurreição destes (por enquanto não há corpos no inferno); essa ação deve ter índole física e mecânica apenas, sem produzir combinações químicas (as quais provocariam alteração e corrupção).
Feitas estas observações, o cristão verifica quão sábio é guardar sobriedade quando se trata de explicar o fogo do inferno. Diria S. Agostinho: “A natureza desse fogo, o lugar do mundo ou da criação em que ele existirá, são temas que, a meu ver, ninguém sabe explanar a não ser aquele a quem o Espírito de Deus o revele” (De civ. Dei XX 16, cd. Migne lat. 41,682).
“Que concluiremos senão que nossa ignorância sobre o modo como age o fogo do inferno é completa e que só podemos arquitetar hipóteses mais ou menos plausíveis?” (A. Michel, Feu de l’enfer, em “Dictionnaire de Théologie catholique” V 2. Paris 1939, 2235).
Ótima monografia sobre o assunto é a coletânea de artigos de índole bíblica, patrística, dogmática, historiográfica (história das religiões) e iconográfica devida a Carrouges, Spicq, Eardy, Héris, Dorival e Guitton, e intitulada “L’Enfer”, Paris 1950.