«Procissão» vem a ser o caminhar cerimonioso e público de um grupo de pessoas que assim visam exprimir um estado de alma todo particular. Tal tipo de cerimônia, quando aparece no decorrer da história, costuma ter caráter religioso; é mesmo de uso muito comum nos diversos cultos que o gênero humano conhece. Assim se entende que faça parte também do culto cristão tradicional. O cerimonial, porém, das procissões é, por vezes, tão exuberante que certos observadores, em nome de elevado ideal religioso, se surpreendem por ver que a piedade católica dedica estima às procissões; daí julgarem que se trata de ritos heterogêneos, indevidamente importados do paganismo para dentro do Cristianismo.
Tal modo de interpretar, porém, é errôneo. Para o remover, ponderaremos abaixo o significado que possam ter em geral gestos e atitudes do corpo no culto divino; a seguir, voltar-nos-emos para as procissões tais como elas são realizadas pela liturgia católica. Para terminar, mencionaremos uma ou outra das procissões usuais no paganismo antigo, a fim de permitir confronto com as do Cristianismo.
1. Piedade e sinais sensíveis
1. As procissões constituem um rito externo, visível. Naturalmente esse aspecto não define todo o seu valor; ao contrário, o aparato sensível de uma procissão tem que ser entendido como sinal de realidade mais profunda, mais espiritual e, por isto, mais proporcionada à dignidade do homem e ao louvor de Deus, o Sumo Espírito.
Somos assim levados a dizer, antes do mais nesta explanação, uma palavra sobre o papel dos sinais corpóreos ou sensíveis no culto religioso.
Passamos assim a desenvolver idéias já esboçadas em «P.R.» 15/1959, qu. 3 e 28/1960, qu. 8, a propósito do culto em espírito e verdade e a respeito das posições dos fiéis durante a S. Missa.
2. Sendo o homem essencialmente um composto de corpo e alma, Deus quis muito sabiamente que a alma humana não se una ao Supremo Senhor sem utilizar o corpo ou a matéria; o corpo é o órgão natural de aperfeiçoamento e, por conseguinte, de santificação da alma. Disto se segue que a alma humana por sua natureza tende a se elevar a Deus não só mediante afetos meramente interiores ou invisíveis, mas também mediante sinais emanados do corpo; entre estes se deve mencionar
– A palavra oral: expressão geralmente aprimorada dos sentimentos internos;
– Os gestos e as atitudes do corpo: manifestações de alma mais primitivas, mais espontâneas e de mais amplo significado.
Consideremos agora o papel que possam desempenhar os gestos do corpo na expressão dos afetos da alma.
3. Quintiliano (+95), no mundo pagão, dizia que os gestos são «a linguagem comum a todos os homens (omnium hominum communis sermo)».
No início da civilização cristã, era S. Ambrósio (+397) quem escrevia: «Os movimentos do corpo vêm a ser como a voz da alma (Vox quaedam animi est corporis motus)»; cf. S. Tomás, S. Teol. II/II 168, 1 ad 1.
Nos tempos modernos, os psicólogos não hesitaram em subscrever a tais afirmações, pois é fato comprovado que, enquanto a linguagem oral se diferencia de povo para povo, a linguagem dos gestos ou a mímica é comum a todos os povos e é mais ou menos idêntica em todos os tempos. Ela constitui a via primitiva e mais característica pela qual o homem se exprime; tenha-se em vista o desenvolvimento da criança, a qual começa a se manifestar por gestos antes que por palavras.
Deve-se mesmo reconhecer que os gestos são «um produto especificamente humano», como observa o psicólogo W. Wundt (Voel- kerpsychologie I3. Sprache 231), o qual faz notar que os animais irracionais efetuam movimentos para se exprimir, não pròpriamente gestos (o que quer dizer:… são sujeitos a reflexos condicionados, mas não são capazes de concatenar os movimentos de seu corpo de modo a manifestar idéias e raciocínios elaborados pelo próprio animal).
Se a tendência a se exprimir por gestos é tão espontânea à natureza humana, compreende-se que ela esteja intimamente relacionada com a oração (que é outra expressão característica da alma humana). Pode-se mesmo asseverar que não há oração sem gesto correspondente ou sem correlativa atitude do corpo; não constitui exceção a essa regra nem mesmo a prece mais íntima e mais mística, que parece exigir toda a tranquilidade, excluindo qualquer participação do corpo; com efeito, também nesse tipo de oração o corpo exerce uma função visível, somente diversa da que exerceria em outros casos (o corpo entra numa posição própria; fica artificialmente imóvel; é por vezes arrebatado acima do solo, respira segundo um ritmo próprio, etc.).
A fim de ilustrar esta proposição, pode-se citar o que se dá na China. Os sons da linguagem chinesa, sendo em número relativamente pequeno, não bastam para exprimir tudo que vai dentro da alma de um chinês. Este fato tem repercussão importante no setor religioso; os gestos desempenham papel de especial relevo na piedade chinesa, de tal modo que os chineses não possuem vocábulo próprio para designar «Religião»; recorrem consequentemente ao termo «Li», que significa «ritos, costumes, reta forma, ritual», isto é, algo que se relaciona com formas sensíveis de culto sagrado.
Os autores chegam a observar que os gestos concomitantes da oração são mais ou menos os mesmos em toda a parte e em todos os povos, apesar das diferenças de credo que cada orante professa:
«Quem viaja de país para país e de povo para povo, fica surpreso por verificar a variedade e diversidade de crenças religiosas e, ao mesmo tempo, a grande unidade de gestos religiosos.
Muitíssimos gestos (de oração), e certamente os mais importantes, são comuns a todas ou a quase todas as nações e religiões. Mesmo religiões como o Budismo e o Cristianismo, que por abismos se distanciam um do outro, têm numerosos gestos em comum; assim… o de abençoar com a mão direita.. .* (Th. Ohm, Die Gebetsgebaerden der Voelker und das Christentum. Leiden 1948, 31).
Dentre os gestos comuns a todas as religiões, podem-se ainda enunciar: o de bater no peito, o de velar ou ocultar a face, o de estender as mãos para o alto, para a frente ou para os lados, o de prostrar-se por terra, o de inclinar-se profundamente, o de se sentar em atitude meditativa, etc.
Esta verificação não sugere de modo algum relativismo em matéria religiosa; apenas implica que fazer gestos, e determinados gestos na oração, não é propriamente nem cristão, nem judaico, nem budista, mas é simplesmente humano; … vem a ser, como dizíamos, espontânea expressão da natureza do homem.
4. No séc. XVI, a Reforma protestante, baseando-se principalmente em piedade subjetiva, disseminou nos seus adeptos aversão aos gestos e às manifestações religiosas sensíveis.
Eis como um escritor protestante contemporâneo, Wilhelm Stahlin, comenta tal atitude:
«’Eu sou a vida’, diz Cristo. A Igreja (protestante) responde, embaraçada e hesitante: ‘Sim; mas… apenas a vida espiritual’. O Protestantismo de tal modo cedeu à desastrosa separação de alma e corpo… que ele quase por completo perdeu a visão do conjunto humano» (Vom Sinn des Leibes 118).
O racionalismo do séc. XVIII contribuiu para acentuar o menosprezo das expressões corpóreas. Os seus protagonistas, valorizando ao máximo a inteligência ou a razão, negligenciaram o cultivo das atitudes do corpo e do seu simbolismo, como se isto fosse algo de grosseiro ou infantil.
Em nossos dias, enquanto boa parte dos homens, sejam doutos, sejam simples, se ressente de tal mentalidade unilateral, nota-se o surto de nova estima dos gestos do corpo para exprimir os afetos religiosos da alma. O Protestantismo, principalmente nos últimos vinte e cinco anos, vem redescobrindo os valores da Liturgia ou do culto ritual. Haja vista o depoimento do autor protestante Robert Will em sua obra de três volumes intitulada «Le culte»:
«Todo culto exige formas expressivas, imagens, sons, palavras, gestos, ritos, pessoas. Essas formas,… de um lado, objetivam e levantam as aspirações da alma; de outro lado, concretizam e canalizam as graças que descem do céu… Sem essas formas sensíveis, a religião se tornaria meramente subjetiva e correria o risco de perder-se… em frio sistema filosófico ou em código de preceitos éticos… A religião que não dá apreço ao culto, definha na atmosfera rarefeita de um espiritualismo exagerado» (II pág. 13. 26s).
Ainda um depoimento parece particularmente significativo. Fale o já citado Prof. Wilhem Stählin, luterano:
«Muitos louvam a nossa Igreja, por se preocupar com a interioridade, em oposição à exagerada estima que os católicos dedicam às formas externas; dizem mesmo que o Protestantismo é a face mais interiorizada do Cristianismo. Não haveria, porém, na base de todo esse ideal de interioridade um erro profundo, uma dolorosa auto- -ilusão ? Não se podem separar tão rigidamente ‘o interior’ e o exterior’. A vida é um todo indivisível, no qual se entrelaçam em indissolúvel unidade os elementos mais extrínsecos e os mais intrínsecos. De um lado, os movimentos íntimos do coração e os mais secretos acontecimentos da história costumam manifestar-se em formas externas; de outro lado, episódios que parecem só afetar a superfície dos seres, chegam a exercer sua influência nas mais recônditas profundidades. Quanto mais um homem vive realmente, tanto mais estreitos e firmes são os vínculos que ligam a sua vida exterior e a vida interior… Somos naturalmente impelidos a dar expressão ao que nos vai na alma, através das atitudes de nosso corpo, através do nosso olhar ou dos traços da nossa fisionomia, através do nosso tom de voz, através dos gestos de nossas mãos, até mesmo através da maneira de nos vestirmos e de ornamentarmos o aposento em que vivemos» (Form und Gebärde in Gottesdienst und Gebet ls).
As considerações até aqui propostas já evidenciam o valor dos gestos corpóreos e dos sinais visíveis nas afirmações da piedade. É à luz dessas idéias que nos deteremos abaixo sobre tal forma sensível de piedade que são as procissões.
2. Piedade e procissões cristãs
1. Se as procissões constituem uma modalidade sensível de culto, torna-se oportuno perguntar sem delongas: qual o seu significado? quais as atitudes de alma que elas exprimem?
Responderemos lembrando em primeiro lugar que somente o homem, entre os demais viventes neste mundo, tem o corpo erguido, capaz de se adiantar em passo firme e disciplinado. O caminhar de estatura ereta constitui verdadeira arte, e arte cheia de nobreza; sendo particularidade exclusiva da criatura humana, significa propriamente o «ser homem».
Na verdade, quantos sentimentos do íntimo da alma não se exprimem mediante o caminhar! Existe, sim, o andar leviano, desigual, indisciplinado, que revela superficialidade, despreocupação desregrada, desordem de afetos interiores. Existe também o andar firme, bem compassado, que manifesta tranquilidade e equilíbrio interiores, harmonia e coragem de ânimo…
Pois bem; caminhando disciplinadamente em procissão religiosa, um grupo de homens pode exprimir duas atitudes:
a) Vitória, triunfo.
Já o «ficar em pé» simboliza vitória; é normalmente a posição de quem venceu a luta. Ora diga-se que uma assembleia religiosa afirme solenemente essa posição dando passos disciplinados, numa caminhada processional; tal assembleia significa então que ela venceu ou que ela reconhece ter recebido grandes graças de Deus. A procissão assim empreendida equivale a louvor e agradecimento ao Pai Celeste; é um culto de adoração e glorificação a Deus.
Tal é o significado das procissões festivas que a Sagrada Liturgia celebra: a assembleia cristã caminha então ostentando o sinal ou o símbolo das graças recebidas que são o motivo especial do louvor. Tal sinal é geralmente a cruz ou o crucifixo, instrumento-fonte de Redenção e de qualquer vitória dos cristãos. Dada a importância capital da cruz, o Ritual (tit. IX) prescreve seja levada a cruz à frente de qualquer procissão. — Além da cruz, costuma-se levar o objeto que exprime o tema preciso do louvor do dia:
a’) ou o SSmo. Sacramento, a mais preciosa dádiva do Amor Divino,
b) ou uma relíquia, estátua ou imagem do Senhor. Está claro que relíquias e imagens, no culto, desempenham papel meramente relativo; têm a função de lembrar o Senhor Jesus mesmo, Deus feito homem, a Quem o povo católico em procissão dirige sua adoração e seus louvores;
À luz destas proposições, a procissão de palmas rio domingo inicial da Semana Santa vem a ser a expressão da complacência do povo cristão no triunfo ou na Redenção que Cristo obteve mediante a própria morte. Semelhantemente, a procissão das velas na festa da Candelária (2 de fevereiro) manifesta o júbilo pela vinda de Cristo, luz da verdade, ao mundo que jazia nas trevas do erro.
c) ou uma relíquia, imagem, estátua de Santo. Também este objetos são relativos; visam chamar a atenção dos fiéis para a Virgem SSma. ou algum dos amigos de Deus que estão na glória do céu.
Considerando os santos, os fiéis não os adoram; mas prestam sua adoração e gratidão a Deus pelas graças que Ele concedeu a tais justos, pedindo ao mesmo tempo queira o Senhor também a nós, peregrinos na terra, conceder semelhantes graças para chegarmos à plenitude da Redenção. Os santos vêm a ser assim motivo de glorificação e súplica fervorosas dirigidas ao Senhor Deus; nunca se devem tornar o termo final que detenha a nossa atenção e a nossa piedade a ponto de não nos voltarmos ulteriormente para Cristo e para o Pai do Céu; sejam meros veículos ou estímulos para mais conscientemente conhecermos e amarmos o Senhor Deus. Nada impede, porém, que roguemos aos Santos, intercedam por nó§ junto ao Senhor; são os amigos qualificados de Deus, que por si nada podem dar, mas pelas suas preces muito podem obter.
Contudo as procissões não têm apenas o papel de exprimir vitória, triunfo e, consequentemente, louvor ou agradecimento a Deus. Elas podem constituir também
b) uma afirmação mais intensa e sensível da comunidade cristã afetada por uma situação extraordinária de indigência ou de arrependimento. Realizam-se, pois, procissões que significam
— súplica mais ardente. Tais são as procissões ditas «das Rogações» ou «das Ladainhas maiores e menores», celebradas a 25 de abril e nos três dias anteriores à festa da Ascensão; tiveram origem em períodos calamitosos, nos quais o povo de Deus visava obter especial proteção da parte do Senhor, principalmente para os campos e as colheitas ; até hoje conservam tal significado. Outras procissões há que exprimem
— penitência. Na Idade Média, mormente em épocas de peste, viam-se imponentes cortejos de «Flagelantes», ou seja, de fiéis que, vestidos de capa e capuz especiais, desfilavam invocando a Misericórdia Divina e flagelando-se, cheios de compunção.
2. A idéia de procurar a Deus e suas graças mediante um deslocamento processional é antiquíssima na história do gênero humano. Corresponde ao que os historiadores chamam «a nostalgia do paraíso», isto é, ao ardente anelo de chegar a um estado de harmonia perfeita dos elementos dentro do homem e em torno do homem, anelo a que os povos sempre procuraram satisfazer demandando «o lugar ideal» aqui na terra, o paraíso outrora possuído, hoje em dia, porém, perdido. Aliás, não há quem não tenha consciência de ser um peregrino espiritual, isto é, alguém que ainda não possui a saciedade das aspirações de seu espírito; tal consciência tendeu muitas vezes, e ainda tende a se externar mediante peregrinações e procissões coletivas a um templo ou a um lugar sagrado.
Sobre o significado das peregrinações religiosas, cf. «P.R.» 24/1959, qu. 7.
O fato de tais tendências existirem e se afirmarem através de formas semelhantes no Cristianismo e fora deste está longe de significar que peregrinações e procissões no Cristianismo são expressões desvirtuadas ou «paganizantes»; ao contrário, significa que em toda alma humana, anteriormente à profissão de determinado credo religioso (cristão ou não cristão), existe a mesma sede de Deus. Acontece, porém, que o pagão deu, e dá, expressão a essa sede à luz de uma ideologia grosseira e errônea; o cristão, ao invés, exprime-a norteado pelo clarão da verdadeira teologia ou de autênticas noções referentes a Deus e seu plano salvífico.
À guisa de complemento das considerações até aqui propostas, serão apresentados abaixo alguns tipos de procissões pagãs, que revelam a ideologia característica de povos não-cristãos. O confronto concorrerá para remover a tese de que o ritual cristão se inspira do paganismo (no caso, ritual cristão e ritual pagão se inspiram ambos, em última análise, da religiosidade espontânea da alma humana).
3. Procissões pagãs
A tribo Arunta, da Austrália, pratica o rito chamado intieiuma, o qual, com nomes diferentes, é usual também em outros clãs. Consiste em realizar uma procissão ao lugar onde se crê tenha sede o antepassado totêmico (animal ou vegetal genitor) da tribo; chegados a esse lugar, que a população julga rico de poderes fertilizantes, os devotos se põem a espalhar fragmentos da pedra aí encontrada, a fim de favorecer a fecundidade da vida !
No Egito, o ritual permitia retirar do santuário onde geralmente ficava encerrada, a estátua da Divindade; os devotos colocavam-na sobre um préstito em forma de barco (o deus Rea do Egito era um deus navegante!) e transportavam-na pelas cidades ou faziam-na descer petos águas do Nilo, ficando o povo nas margens do rio a cantar e dançar.
Na Grécia, famosas eram as procissões das Panatenéias, por ocasião das quais todas as classes sociais de Atenas subiam ao templo do Parthenon a fim de oferecer suas homenagens à deusa Atenas. Também eram solenes as procissões que precediam os jogos olímpicos: magistrados, sacerdotes e representantes de várias cidades se reuniam sobre o monte Atlas para apresentar um sacrifício ao deus Júpiter.
Dentre os costumes da Roma pré-cristã, chamam a atenção as chamadas «pompas» (cortejos), das quais uma das mais exuberantes era a pompa «circense». À frente do cortejo achava-se um magistrado, vestido de toga, portador de coroa na cabeça e do cetro com a águia simbólica na mão. Seguiam-se-lhe jovens, cujos genitores deviam estar todos ainda em vida; vinham, depois, os que iam tomar parte nos jogos públicos, os ministros inferiores do culto, portadores de turíbulos fumegantes, os sacerdotes, as imagens dos deuses e símbolos religiosos arrumados em préstitos. Chegando ao Circo Máximo de Roma, a pompa dava um giro a fim de ser contemplada pelo povo estupefato. Finalmente celebrava-se um sacrifício e dava-se início aos jogos de circo.
Não será necessário acentuar o fato de que em todos esses ritos se afirmavam, ora com mais, ora com menos evidência, concepções politeístas e idólatras, das quais se distancia radicalmente o monoteísmo cristão.