Não é raro ouvir dizer que os irmãos falecidos neste mundo estão adormecidos e inconscientes no além. Esta tese significa um retorno aos mais remotos livros do Antigo Testamento, nos quais é professada a doutrina do cheol ou da dormência dos falecidos num subterrâneo tenebroso chamado “cheol”. O próprio judaísmo superou esta crença admitindo a ressurreição dos mortos e a retribuição póstuma a cada um, a partir do século II a. C; tenham-se em vista os textos de Dn 12, 1-3; 2Mc 7, 9.11.14…; Sb. 2-5. No Novo Testamento é nítida a vida consciente e lúcida dos que se foram; basta considerar o Apocalipse, que apresenta os mártires e demais justos a cantar os louvores de Deus; além do quê vejam-se Fl 1,21-23 e Lc 23, 43.
Há quem julgue que os irmãos falecidos neste mundo estão adormecidos e inconscientes no além, incapazes de receber alguma sanção como também excluídos da comunhão com os que sobrevivem neste mundo, não podendo orar por nós. Esta sentença será analisada mais detidamente nas páginas subseqüentes.
O problema
A concepção escatológica mais antiga do povo judaico afirmava que, após a morte do ser humano neste mundo, o corpo é sepultado e um núcleo da personalidade – o refaím – que sobrevive adormecido e inconsciente num lugar subterrâneo tenebroso chamado “cheol”. Esta convicção era devida à necessidade de evitar que o povo de Israel passasse a cultuar indevidamente os antepassados como faziam povos pagãos; a preservação do estrito monoteísmo o exigia. Tenham-se em vista os textos seguintes:
SI 6, 6: “Na morte ninguém se lembra de Ti. Quem te louvará no cheol?”
SI 88, 5s: “Sou visto como aqueles que baixam à cova… despedido entre os mortos, como as vítimas que jazem no sepulcro, das quais já não te lembras, porque foram separados de tua mão… Realizas maravilhas entre os mortos? As sombras se levantam para te louvar? Falam do teu amor na sepultura, da tua fidelidade no lugar da perdição? Conhecem tuas maravilhas nas trevas e tua justiça na terra do esquecimento?”.
Esta concepção não podia deixar de afligir os justos, que após a morte sabiam que estariam entregues à mesma sorte que os ímpios, todos adormecidos no cheol, sem poder receber a sanção merecida. A premiação dos fiéis seria dada na vida presente, constando de bens materiais, como dinheiro, saúde, amigos, vida longa ou, ao contrário, para os maus, doença, miséria, inimigos…
A experiência mesma parecia desmentir tal tese, pois era evidente que nem todos os justos eram sadios e apoiados por amigos, como nem todos os pecadores eram punidos com enfermidade, miséria, inimigos… Daí a perplexidade de alguns personagens famosos.
Jó professa, em meio às suas tribulações, que nada de mau fez para merecer a moléstia que o afeta, ao passo que seus três amigos o acusam de prevaricador que será curado caso queira confessar seus pecados. O livro de Jó termina com um apelo a Deus para que julgue a perplexidade de Jó e seus amigos. O Senhor então intervém, mostrando a Jó que ele é incapaz de argüir Deus, já que é pequeno demais para compreender os desígnios do Todo-poderoso e sumamente sábio; o Senhor, porém, não explica a Jó porque ele, inocente, tanto sofre. – A explicação só seria dada mediante a revelação de uma vida póstuma consciente e lúcida, revelação que seria prematura na época de Jó (século IV a.C. aproximadamente).
– O Eclesiastes é outro personagem que se aflige por ver que tudo é como sopro de vento na vida presente; nada fica nas mãos de quem deseja apreender o vento; nem a corte de um rei, com todo o seu aparato, pode satisfazer aos anseios do homem. Daí o tom tristonho do livro do Eclesiastes. Faltava-lhe a noção de vida póstuma lúcida, como se depreende dos seguintes dizeres: “Os mortos não sabem nem terão recompensa, porque sua memória está no esquecimento… Nunca mais participarão de tudo o que se faz debaixo do sol (Ecl 9, 4-6).
Os Profetas ousaram pedir contas a Deus desse aparente paradoxo: Como pode o justo, amigo de Deus, ser tão maltratado pela sorte? E como pode acontecer que os pecadores, inimigos de Deus, sejam tão afagados pelos bens materiais? Assim, temos:
Jr 12,1s: “Tu és justo demais, Senhor, para que eu entre em processo contigo. Contudo falarei contigo sobre questões de direito. Por que prospera o caminho dos ímpios? Porque os apóstatas estão em paz? Tu os plantaste, eles criaram raízes, vão bem e produzem fruto. Tu estás perto de sua boca, mas longe de seus rins”.
Os ímpios são felizes neste mundo; têm Deus nos lábios, mas não O têm em seu íntimo (em seus rins). Veja-se ainda:
Hab. 1,1s: “Até quando, Senhor, pedirei socorro e não ouvirás, gritarei a Ti Violência! e não me salvarás? Porque me fazes ver a iniqüidade e contemplar a opressão? Rapina e violência estão diante de mim; há disputas, levantam-se contendas! Por isto a lei se enfraquece e o direito não aparece mais. Sim, o ímpio cerca o justo; por isto o direito aparece torcido!”.
E qual a resposta do Senhor?
Hab. 2,1-4: “Então o Senhor respondeu-me dizendo: ‘Escreve a visão, grava-a claramente sobre tábuas para que a possas ver facilmente. Porque é ainda uma visão para um tempo determinado; ela aspira por seu termo e não engana; se ela tarda, espera-a porque certamente virá, não faltará! Eis que sucumbe aquele cuja alma não é reta, mas o justo viverá por sua fidelidade”‘.
Como se vê, o Senhor não responde ao Profeta, pois a resposta consistiria em dizer-lhe que há uma outra vida, na qual a justiça, violada pelo livre arbítrio dos homens (com a permissão de Deus, que respeita liberdade das suas criaturas) será restaurada plenamente.
A caminho da solução
A noção do cheol era como uma bofetada dada em quem quisesse ser fiel à lei de Deus; não podia ser duradoura. Por isto alguns escritores sagrados superaram-na por conta própria.
Tal foi o caso referente a Elias. Este era um Profeta popular, muito caro a Israel, cuja história é narrada com muita ênfase em ½ Rs. Segundo as concepções dos fiéis israelitas, não podia terminar seus dias no cheol; daí a imagem de um carro de fogo que o leva para o céu depois da morte; Elias morreu sim, e foi arrebatado à glória celeste conforme julgavam os israelitas. Ver 2Rs 2, 11s. – O mesmo se diga de Henoque, arrebatado ao céu depois da morte, porque foi um justo e amigo de Deus, segundo a estimativa dos judeus; ver Gn 5, 21 s.
Sejam registrados outrossim os salmos “místicos”, em que o autor professa sua certeza de que Deus não o deixará ficar no cheol, mas o levará para junto de si depois da morte da criatura. Tais são:
S116, 2s: “Não abandonarás minha vida no cheol nem deixarás que teu servo veja a cova. Ensinar-me-ás o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença e delícias à tua direita perpetuamente”.
SI 49. 16: “Deus resgatará a minha vida das garras do cheol e me tomará”.
SI 73. 23s: Quanto a mim, estou sempre contigo. Tu me agarraste pela mão direita. Tu me conduzes com teu conselho e com tua glória me atrairás”.
Como se vê, nestes três salmos é expressa a esperança de que o Senhor libertará do cheol o justo e o levará consigo para a verdadeira vida.
A solução definitiva
No Antigo Testamento
Vimos que os israelitas nos séculos mais antigos não concebiam retribuição póstuma, mas sim a inconsciência dos refaim após a morte. Como dito, tal doutrina era como que uma bofetada para aqueles que quisessem guardar fidelidade ao Senhor na vida presente. Tal fase provisória devia ceder à plena revelação da vida póstuma sem a qual a vida presente não se explica, pois a ordem é violada neste mundo muitas vezes em favor dos maus e para grande decepção dos bons.
No século I a.C. já se professava a crença na alma imortal por si mesma e capaz de receber a justa sanção na vida póstuma. Dá testemunho disto o livro da Sabedoria, escrito no Egito por um judeu lá residente em que afirma a retribuição de justos e pecadores nos textos seguintes:
“Os justos vivem para sempre, recebem do Senhor sua recompensa, cuida deles o Altíssimo. Receberão a magnífica coroa real, e, das mãos do Senhor, o diadema da beleza; com sua direita Ele os protegerá, com seu braço os escudará” (Sb. 5, 15s).
“A alma (psyché) dos justos está nas mãos de Deus: nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos parecem morrer… mas eles estão em paz. Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade; por um pequeno castigo receberão grandes favores. Julgarão as nações, dominarão os povos e o Senhor reinará sobre eles para sempre. Mas os ímpios serão castigados segundo os seus raciocínios; desprezaram o justo e se afastaram do Senhor” (Sb. 3,1-4. 10).
O texto não fala de ressurreição dos corpos, mas apenas de sobrevivência da alma lúcida no além. A razão pela qual a ressurreição não é mencionada, é que o autor escrevia no Egito, terra de cultura helenística para a qual a volta da alma ao corpo seria punição e desgraça. Todavia na mesma época os judeus residentes na terra de Israel professaram nitidamente a ressurreição dos corpos. Tenham-se em vista os seguintes dizeres:
Dn 12,2s: “Muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna, e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento, e os que ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas por toda a eternidade”.
2Mc 7 registra as últimas palavras dos irmãos macabeus condenados a morrer por causa da sua fé:
“Tu, celerado, nos tiras da vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressurgir para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis!” (y. 9).
“Do céu recebi estes membros, e é por causa de suas leis que os desprezo, pois espero dele recebê-los novamente” (y. 11).
“É desejável passar para a outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as esperanças de ser um dia ressuscitado por Ele” (v. 14).
“Nossos irmãos, após ter suportado uma aflição momentânea por uma vida eterna já estão na Aliança de Deus, Tu, porém, pelo julgamento de Deus, hás de receber os justos castigos da tua soberba” (v. 36).
É também 2 Mc que, testemunhando indiretamente a existência do purgatório, alude explicitamente à ressurreição dos mortos.
“Tendo feito entre os seus homens uma coleta de duas mil dracmas, (Judas Macabeu) enviou-a a Jerusalém para ser convertida num sacrifício expiatório do pecado. Bela e nobre ação, inspirada pela idéia da ressurreição! Com efeito, se ele não esperasse que esses soldados mortos houvessem de ressuscitar, fora coisa supérflua e vã orar pelos defuntos” (12,43s).
Com o decorrer dos tempos, a fé na ressurreição se firmou cada vez mais em Israel. Para o judeu em particular, esta fé era corolário lógico da crença numa justa sanção póstuma; com efeito, a mentalidade israelita, sempre propensa a afirmar o concreto, dificilmente podia conceber sorte feliz para as almas que estivessem separadas do corpo; estariam condenadas a viver uma vida mutilada.
Seja citada ainda a visão de Judas Macabeu, que no século II a.C. vê o Profeta Jeremias no além orando pelo povo de Deus que lutava na terra:
“Apareceu um homem notável pelos cabelos brancos e pela dignidade, sendo maravilhosa e majestosíssima a superioridade que o circundava.
Tomando então a palavra, disse Onias: Este é o amigo dos seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo e pela cidade santa’, Jeremias, o Profeta de Deus. Estendendo então a sua mão direita, Jeremias entregou a Judas uma espada de ouro pronunciando estas palavras… Recebe esta espada santa, presente de Deus, por meio da qual esmagarás teus adversários” (2Mc 15, 13-16).
Este texto bem demonstra que os justos não estão adormecidos no além.
No Novo Testamento
Nos escritos do Novo Testamento aparece nitidamente a sobrevivência lúcida dos que deixaram este mundo. Basta lembrar o Apocalipse, livro que mostra os justos junto a Deus a cantar os louvores do Senhor:
“Vi uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro trajados com vestes brancas e palmas na mão. E em alta voz proclamavam: ‘A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro..’.
Estes são os que vêm da grande tribulação, lavaram suas vestes e alvejaram-nas no sangue do Cordeiro. É por isto que estão diante do trono de Deus, servindo-lhe dia e noite em seu templo” (Ap 7, 9s. 14s).
Ainda os mártires, diante do altar simbólico existente na corte celeste, clamam em alta voz: “Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?” (6, 9).
Por sua vez, escreve São Paulo:
“Para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro… Sinto-me num dilema: o meu desejo é partir e estar com Cristo, pois isto me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa” (Fl 1, 21 s).
É Jesus quem diz ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).
Não resta dúvida, o conceito de dormência dos que deixam este mundo e passam para o além está superado desde o século II a.C, na tradição judeu-cristã. Professá-lo em nossos dias significa menosprezar a Revelação neotestamentária para regredir aos termos iniciais do pensamento judaico muito anterior a Cristo, conceito que era um evidente provisório e que tornava incompreensível a vida presente.
Este artigo afima que Elias foi arrebatado, mas que também morreu. Eu não entendi.
Podem explicar como o profeta Elias morreu?