Objeções filosóficos à doutrina da Transubstanciação e suas devidas respostas

A doutrina católica da transubstanciação, um mistério central da fé, afirma que, durante a consagração na Santa Missa, a substância do pão e do vinho se transforma no Corpo e Sangue de Cristo, enquanto os acidentes (como forma, cor e sabor) permanecem inalterados. Definida dogmaticamente no Concílio de Trento (Denzinger, 1642), essa doutrina tem sido objeto de debate, especialmente sob a lente da metafísica aristotélica, que considera os acidentes como propriedades inerentes de uma substância (Aristóteles, Metafísica, Livro VII).

Para compreender essa doutrina, é fundamental explorar a filosofia de Santo Tomás de Aquino, que oferece uma defesa robusta baseada em princípios metafísicos clássicos (Summa Theologiae, III, q.75, a.1-6). Este artigo busca aprofundar-se nessa defesa e responder às objeções mais comuns, explorando não apenas o conceito de acidentes e substância, mas também a relação entre causalidade e intervenção divina no contexto sacramental.

Objeção 1: “Acidentes são relações de uma substância com o mundo. Relações sem sujeito seriam absurdas.”

Essa objeção argumenta que os acidentes, como cor, sabor, textura e dimensão, são modos de manifestação de uma substância no mundo. Esses acidentes, segundo a metafísica aristotélica, são propriedades ou modos de ser que existem em uma substância, não de forma independente. Argumenta-se que, sem uma substância subjacente, a existência de acidentes isolados seria contraditória, pois sua definição mesma envolve a ideia de um suporte substancial.

A raiz dessa objeção está na teoria aristotélica, especialmente no Livro VII da Metafísica, onde Aristóteles define acidente como aquilo que existe em outro e não por si mesmo. Os acidentes não têm existência própria, mas apenas inerente à substância, como a cor branca existe em um objeto branco e não independentemente.

Portanto, afirmar que, na Eucaristia, os acidentes do pão e do vinho (aparências sensíveis como cor, forma, sabor) permanecem enquanto a substância foi convertida no Corpo e Sangue de Cristo parece, à primeira vista, violar esse princípio fundamental da metafísica.

Resposta:

Essa objeção, embora coerente no contexto da ordem natural, não se sustenta quando aplicada a um milagre sobrenatural como a transubstanciação, onde Deus age de forma direta e além das leis naturais ordinárias. A chave para entender a resposta tomista está na distinção entre o que podemos chamar de causalidade ordinária e causalidade divina.

1. Causalidade Ordinária vs. Causalidade Divina:

No contexto natural, os acidentes dependem da substância para existir. A cor branca, por exemplo, é uma qualidade que só pode existir em algo branco, como o leite. Isso ocorre porque a substância age como causa material e causa formaldos acidentes.

Entretanto, no contexto sobrenatural e no caso específico da transubstanciação, Deus age diretamente como causa primeira. Isso significa que Ele sustenta os acidentes do pão e do vinho imediatamente, sem a mediação de uma substância material.

Na Summa Theologiae, III, q.77, a.1, Santo Tomás afirma que a manutenção dos acidentes sem substância ocorre pela intervenção direta de Deus, que, sendo o Ser por essência, tem o poder de sustentar diretamente os efeitos de uma substância sem a própria substância.

Essa causalidade direta não contraria a lógica, pois a manutenção dos acidentes sem a substância não é uma contradição, mas uma suspensão da causalidade ordinária. Deus, como causa primeira, pode agir sem a intermediação das causas segundas, pois é o próprio Ser necessário (Ipsum Esse Subsistens).

2. Suspensão da Ordem Natural:

Milagres, como a transubstanciação, não representam uma violação das leis naturais, mas uma suspensão temporária da ordem natural. A ordem natural continua válida, mas, no caso da Eucaristia, Deus, por ser a causa primeira, intervém diretamente no plano da realidade.

Em De Potentia, q.6, a.1, Santo Tomás explica que a ordem natural está subordinada à vontade de Deus, e Ele pode suspendê-la quando desejar, sem que isso implique uma contradição formal.

Essa suspensão é comparável a um pintor que, ao criar uma pintura, normalmente precisa de uma tela como suporte. No entanto, esse mesmo pintor, se onipotente, poderia fazer com que a imagem flutuasse no ar, sem a necessidade de uma tela. Assim, Deus mantém os acidentes do pão sem a substância subjacente.

3. Consistência Metafísica e a Definição de Acidente:

Santo Tomás aborda essa questão de forma cuidadosa, reformulando a definição de acidente no contexto do milagre eucarístico. Ele distingue entre:

  • O que um acidente é em sua essência: algo que normalmente inere em uma substância.
  • O modo de existência de um acidente: normalmente unido a uma substância, mas, em caso de milagre, pode existir sustentado diretamente por Deus.

Na Summa Contra Gentiles, IV, c.63, Santo Tomás afirma que, no contexto da Eucaristia, os acidentes não são sustentados pela substância do pão, mas diretamente pelo poder de Deus, que pode operar além das leis ordinárias.

4. O Fundamento Ontológico da Preservação dos Acidentes:

Deus, como causa primeira, é a fonte de todo o ser. Portanto, Ele pode conceder existência a um acidente sem a necessidade de um sujeito material, pois Ele mesmo é o fundamento do ser.

Essa preservação não implica que os acidentes existam de forma autônoma ou que tenham se tornado substâncias. Continuam sendo acidentes, mas sustentados por Deus, não por uma substância natural.

Por que a objeção falha?

A objeção de que “acidentes são relações de uma substância com o mundo e não podem existir sem ela” falha por não considerar a distinção entre:

  • Ordem natural: onde acidentes realmente dependem de uma substância.
  • Ordem sobrenatural: onde Deus pode, por milagre, sustentar acidentes diretamente.

Em resumo:

  • Não há contradição formal, pois não se afirma que os acidentes existem e não existem ao mesmo tempo.
  • Deus, como causa primeira, tem poder de sustentar os acidentes diretamente.
  • A suspensão da ordem natural não é uma violação da razão, mas uma exceção providenciada pelo próprio Autor do ser.

Objeção 2: “Acidentes são predicados de uma substância. Dizer que algo é branco sem um objeto branco é contraditório.”

Essa objeção baseia-se no princípio aristotélico de que os acidentes são necessariamente predicados de uma substância. Em outras palavras, os acidentes, como a cor branca, a forma ou o sabor, não possuem existência própria, mas são modos de ser de uma substância. Dizer que algo é branco sem um objeto branco pareceria contraditório, pois a brancura não possui uma existência independente, mas existe em algo, como o branco do leite ou da neve.

Este argumento se apoia na concepção aristotélica de substância e acidente encontrada no Livro VII da Metafísica, onde Aristóteles define os acidentes como “o que não existe em si mesmo, mas em outro”. De acordo com essa visão, afirmar que os acidentes podem existir sem uma substância parece violar a própria definição de acidente.

Resposta:

Santo Tomás de Aquino, ao responder a essa objeção, faz uma distinção crucial entre a essência de um acidente e o seu modo de existência, o que permite uma compreensão mais ampla da realidade em contextos sobrenaturais, como o milagre eucarístico. Essa distinção metafísica, juntamente com a noção de causalidade divina, é suficiente para refutar essa objeção.

1. Essência vs. Modo de Existência dos Acidentes:

A chave para entender a resposta tomista está em diferenciar dois aspectos fundamentais dos acidentes:

  • Essência do acidente: A essência de um acidente é a qualidade ou propriedade em si. Por exemplo, a cor branca é uma qualidade que pode ser identificada conceitualmente, independentemente de onde ela se manifesta. A brancura, enquanto conceito, pode ser pensada de forma abstrata.
  • Modo de Existência do acidente: Normalmente, um acidente existe em uma substância, pois esta é a causa material e o sujeito no qual o acidente se manifesta. Por exemplo, o branco do leite está no leite como suporte material.

Porém, em um contexto sobrenatural, Deus pode suspender esse modo de existência ordinário sem anular a própria essência do acidente. No milagre da Eucaristia, os acidentes do pão e do vinho (cor, forma, sabor, cheiro, textura) continuam a existir, mas de um modo não natural, sustentados diretamente pelo poder divino e não por uma substância da ordem natural.

Diz Santo Tomás na Summa Theologiae, III, q.77, a.1: “É possível, por poder divino, que o acidente exista sem o sujeito, pois a essência do acidente não exige absolutamente o sujeito, mas sim seu modo ordinário de existir.”

2. Causalidade Divina Direta:

No milagre eucarístico, ocorre uma suspensão da causalidade ordinária. No mundo natural, a substância sustenta os acidentes como causa material e formal. Contudo, em um milagre, Deus age diretamente como causa primeira, sustentando os acidentes de forma imediata, sem a mediação de uma substância criada.

Isso não é uma contradição, pois o que é modificado não é a natureza do acidente, mas o modo pelo qual ele continua a existir. Deus, sendo o Ser absoluto, é a fonte de toda realidade e, portanto, pode manter os acidentes existindo diretamente pelo Seu poder.

Na sua Summa Contra Gentiles, IV, c.63, Santo Tomás afirma que, na Eucaristia, os acidentes permanecem sustentados pela causalidade divina, pois Deus pode agir além das leis ordinárias, sem violar a razão.

3. Não há contradição lógica:

A objeção de que “dizer que algo é branco sem um objeto branco é contraditório” se baseia em uma confusão entre contradição lógica e milagre sobrenatural.

  • Contradição lógica: É afirmar algo impossível em si mesmo, como “um círculo quadrado” ou “uma montanha sem vale”.
  • Milagre sobrenatural: Não é uma violação da razão, mas uma suspensão de uma relação natural, sem negar a essência das coisas.

O erro da objeção está em assumir que o modo natural de ser dos acidentes (sustentados por uma substância) é o único possível. No entanto, o tomismo afirma que, no contexto sobrenatural da Eucaristia, Deus pode sustentar os acidentes diretamente, pois Ele é o fundamento último do ser.

Assim como uma chama ilumina um ambiente e a luz continua miraculosamente presente mesmo que a chama desapareça enquanto sustentada por uma fonte externa, os acidentes do pão e do vinho continuam presentes, miraculosamente sustentados diretamente por Deus.

4. Deus Como Ato Puro do Ser:

Santo Tomás ensina que Deus é o Ipsum Esse Subsistens, ou seja, o próprio ato puro de ser (Summa Theologiae, I, q.4, a.2). Sendo a própria fonte do ser, Deus pode conceder existência a qualquer ente, inclusive acidentes, sem a mediação de uma substância criada.

Deus não apenas criou o mundo, mas sustenta continuamente todas as coisas no ser. Se Ele retira seu ato de sustentação, a criação deixaria de existir. Assim, se Ele pode manter uma substância existindo sem outra, não há contradição em afirmar que Ele sustenta acidentes sem substância de um modo extraordinário.

Por que a objeção falha?

A objeção de que “acidentes são predicados de uma substância e não podem existir independentemente” falha porque:

  • Confunde o conceito de contradição lógica com uma exceção sobrenatural: A existência de acidentes sem substância não é uma contradição, mas uma suspensão da ordem natural.
  • Desconsidera a causalidade divina: Deus, como causa primeira, pode sustentar os acidentes diretamente, pois Ele é o fundamento de todo ser.
  • Não reconhece a distinção entre essência e modo de existência: Um acidente pode ter sua essência preservada enquanto seu modo de existência é alterado pelo poder divino.
  • O milagre não contradiz a razão, mas a transcende: A Eucaristia, como sacramento, é um mistério que supera, mas não contradiz, a razão filosófica.

Objeção 3: “Acidentes expressam a substância. Um acidente sem substância elimina o fundamento do acidente.”

Essa objeção se baseia no princípio aristotélico de que os acidentes existem para manifestar a substância à qual pertencem. Em termos simples, um acidente, como a cor, o sabor ou a textura, não apenas subsiste em uma substância, mas tem como função torná-la perceptível aos sentidos.

Por exemplo, a brancura de um pedaço de mármore ou o sabor doce de uma maçã não existem como entidades independentes, mas são formas pelas quais as substâncias desses objetos se tornam perceptíveis. Segundo essa visão, remover a substância, mas manter os acidentes, eliminaria o próprio fundamento ontológico dos acidentes, já que eles deixariam de ter uma substância para manifestar.

A objeção argumenta, portanto, que os acidentes do pão e do vinho na Eucaristia deveriam expressar a substância do pão e do vinho. Como a substância é convertida no Corpo e Sangue de Cristo, os acidentes não teriam mais razão de existir, o que pareceria uma contradição filosófica.

Resposta:

A crítica, embora coerente quando aplicada à ordem natural, não se sustenta quando examinada no contexto do milagre eucarístico, onde a causalidade divina intervém de forma direta e excepcional.

A resposta tomista se baseia em quatro pilares fundamentais: a distinção entre ordem natural e ordem sobrenatural, a função sacramental dos acidentes na Eucaristia, a sustentação divina direta dos acidentes, e o propósito final e misterioso do sacramento.

1. Ordem Natural vs. Ordem Sobrenatural:

No âmbito natural, os acidentes realmente têm como propósito expressar e manifestar a substância à qual pertencem. A textura do pão, seu sabor, seu odor e sua forma são modos pelos quais o intelecto humano reconhece a substância do pão.

Contudo, na Eucaristia, ocorre uma intervenção sobrenatural e miraculosa: a substância do pão e do vinho são convertidas no Corpo e Sangue de Cristo, enquanto os acidentes permanecem sem um sujeito material subjacente.

Por que isso não contradiz a filosofia aristotélica? Porque o que está sendo alterado não é a natureza do acidente em si, mas seu modo de existência. O acidente continua sendo um acidente, mas sustentado diretamente por Deus, e não mais pela substância criada.

Vejamos o que diz Santo Tomás na Summa Theologiae, III, q.77, a.2: “Pelo poder divino, os acidentes podem permanecer sem a substância, pois não é da essência do acidente estar em um sujeito, mas ser uma qualidade de algo. Deus pode sustentar diretamente esse modo de ser.”

2. Função Sacramental e Sinais Sensíveis:

Os acidentes do pão e do vinho na Eucaristia não existem por acaso. Eles possuem uma função sacramental e catequética fundamental: servir como sinais visíveis da realidade invisível.

A Igreja ensina que os sacramentos são sinais visíveis da graça invisível. Na Eucaristia, os acidentes do pão e do vinho permitem que o fiel perceba externamente a realidade espiritual oculta da presença de Cristo.

Por que manter os acidentes?

  • Os acidentes tornam o mistério acessível aos sentidos humanos.
  • Eles preservam a continuidade sensível entre o pão comum e o Corpo de Cristo, para que a fé não se baseie em evidências físicas, mas espirituais.
  • E ainda servem como meios pedagógicos e espirituais, facilitando a adoração e a recepção digna do sacramento.

Catecismo da Igreja Católica, §1376: “O pão e o vinho tornam-se, pelo poder das palavras de Cristo e pela ação do Espírito Santo, o Corpo e o Sangue de Cristo, embora as espécies sensíveis de pão e vinho permaneçam.”

3. Sustentação pela Causa Primeira:

Outro fundamento essencial da resposta tomista está na distinção entre causas segundas e causa primeira.

  • Ordem Natural: Normalmente, a substância é a causa material dos acidentes. Ela sustenta e dá ser aos acidentes.
  • Ordem Sobrenatural: No caso da Eucaristia, Deus, como causa primeira, sustenta os acidentes diretamente.

Deus não precisa de causas intermediárias para manter os acidentes, pois Ele é a fonte de todo ser e pode agir diretamente, preservando os acidentes enquanto tais, sem a substância.

Assim como um pintor pode sustentar a imagem de um quadro em sua mente mesmo após apagar a tela, Deus pode sustentar os acidentes diretamente, sem a substância.

Diz o Aquinte na Summa Contra Gentiles, IV, c.63: “A mesma potência divina que dá ser à substância pode manter os acidentes no ser, pois o poder de Deus não está limitado às causas ordinárias.”

4. Mistério e Finalidade Teológica:

A manutenção dos acidentes sem a substância também está relacionada à finalidade do sacramento. Na Eucaristia, os acidentes são preservados para favorecer a fé, a devoção e o respeito ao mistério eucarístico.

  • Finalidade espiritual: Os acidentes permitem que o fiel participe da realidade espiritual de forma acessível aos sentidos.
  • Finalidade de fé: Se os acidentes fossem eliminados, o mistério seria invisível e poderia dificultar a compreensão do sacramento pelos fiéis.
  • Finalidade litúrgica: A presença dos acidentes sustenta a adoração e o culto visível a Cristo presente na Eucaristia. A Eucaristia é um mistério de fé por excelência. Na celebração eucarística, o fiel é convidado a adorar o Cristo presente não pelo que vê, mas pelo que crê.

Summa Theologiae, III, q.75, a.1: “Os sentidos percebem os acidentes do pão e do vinho, mas o intelecto, iluminado pela fé, reconhece a presença real de Cristo.”

Por que a objeção falha?

A objeção de que “os acidentes expressam a substância e, sem substância, perdem seu fundamento” falha ao ignorar o seguinte:

  • Diferença entre essência e modo de existência: O acidente permanece sendo um acidente; apenas seu modo de sustentação foi modificado por um milagre.
  • Causalidade Divina Direta: Deus sustenta os acidentes diretamente, sem a necessidade de um sujeito material.
  • Função Sacramental: Os acidentes não estão presentes para expressar a substância anterior (pão), mas para servir como sinais sacramentais da presença real de Cristo.
  • Finalidade Espiritual: A permanência dos acidentes facilita a participação sensorial e espiritual dos fiéis.

Assim, fica claro que a objeção não se sustenta quando examinada à luz da filosofia tomista e da teologia sacramental.

  • Não há contradição, pois os acidentes são sustentados diretamente por Deus.
  • A distinção entre ordem natural e sobrenatural resolve a questão metafísica.
  • Os acidentes possuem uma função sacramental essencial, que justifica sua permanência.

Assim, Santo Tomás demonstra de forma clara e coerente que a permanência dos acidentes na Eucaristia, mesmo sem a substância do pão e do vinho, é perfeitamente consistente com a metafísica clássica e a doutrina católica.

Objeção 4: Seria Impossível para Deus Sustentar Acidentes sem Substância.

Essa objeção levanta a questão de uma possível contradição lógica na doutrina da transubstanciação. Argumenta-se que os acidentes, por definição, são propriedades que inerecem em uma substância. Portanto, afirmar que acidentes possam existir sem substância pareceria contradizer o próprio conceito de acidente, pois sua natureza seria inseparável de um sujeito material.

A crítica central é que, se um acidente é, por definição, algo que existe em outro (como a cor branca existe em um objeto branco e não por si mesma), então seria impossível, mesmo para Deus, manter um acidente sem um sujeito. Essa objeção sugere que a doutrina da transubstanciação viola o princípio da não-contradição.

Resposta:

A doutrina tomista oferece uma resposta a essa objeção, esclarecendo a diferença entre o que constitui uma contradição lógica e o que é simplesmente uma limitação física ou uma ordem natural que pode ser suspensa por Deus.

A chave da resposta está em três pontos principais: a distinção entre impossibilidades lógicas e físicas, a onipotência divina como causa primeira, e a natureza do milagre e a ordem metafísica.

1. Distinção entre Impossibilidade Lógica e Impossibilidade Física:

Santo Tomás diferencia duas categorias de impossibilidades:

  • Impossibilidade Lógica: Envolve contradições internas ao próprio conceito, como um círculo quadrado ou afirmar que “algo é e não é ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto”.
  • Impossibilidade Física ou Natural: É a limitação das leis físicas ou das relações naturais, como um homem andar sobre as águas ou acidentes existirem sem substância.

O que a objeção falha em reconhecer é que acidentes sem substância não constituem uma contradição lógica intrínseca, mas uma suspensão sobrenatural da ordem natural.

Dizer que um círculo é quadrado é lógico e metafisicamente impossível, pois a própria definição de círculo exclui a de quadrado.

Porém, dizer que os acidentes podem existir sem uma substância não é contraditório em si mesmo, mas apenas algo que não ocorre na ordem natural ordinária.

Por isso Santo Tomás afirma na Summa Theologiae, III, q.77, a.1: “Não é impossível que Deus sustente os acidentes sem a substância, pois Ele pode fazer o que é possível em si, ainda que fora da ordem natural.”

2. Onipotência Divina: Deus Como Ato Puro de Ser:

O fundamento metafísico central da resposta tomista é o conceito de Deus como o ato puro de ser (Ipsum Esse Subsistens).

  • Deus é o próprio ser subsistente, a fonte de toda existência.
  • Sendo o fundamento do ser, Ele tem poder absoluto para sustentar qualquer realidade diretamente, sem depender de causas segundas.
  • A criação e a conservação do ser são continuamente sustentadas por Ele, de modo que manter acidentes sem substância é perfeitamente possível, pois tudo que existe já depende Dele.

Na ordem criada, os acidentes dependem de uma substância porque a substância atua como causa material e sujeito do ser acidental.

No entanto, Deus pode, por Sua onipotência e de um modo extraordinário, sustentar os acidentes diretamente, já que Ele é a causa do ser de todas as coisas, inclusive das relações acidentais.

Summa Theologiae, I, q.25, a.3: “Deus pode todas as coisas que não envolvem contradição, pois Ele é o próprio Ser, e tudo o que é, é sustentado por Ele.”

3. A Natureza do Milagre e a Ordem Metafísica:

O conceito de milagre na teologia tomista não é uma violação das leis da natureza, mas uma suspensão ou exceçãooperada pelo poder divino.

  • Um milagre não nega a lógica ou a razão, mas suspende a forma como as causas ordinárias operam.
  • No caso da transubstanciação, Deus suspende a relação natural entre substância e acidentes, mantendo os acidentes diretamente como sinais sensíveis.

Exemplos Bíblicos:

  • A multiplicação dos pães (Mt 14,13-21) envolveu a criação de matéria sem um processo natural.
  • Jesus caminhando sobre as águas (Mt 14,22-33) foi uma suspensão das propriedades físicas da água.

Assim também na Eucaristia, os acidentes permanecem sem a substância, não por contradição, mas por uma ação divina extraordinária.

Por isso afirma Santo Tomás em De Potentia Dei, q.6, a.1, que “A natureza obedece ao poder de Deus; e Ele pode agir fora das causas secundárias quando assim o deseja.”

4. O Milagre na Eucaristia e sua Finalidade Sacramental:

A permanência dos acidentes sem substância na Eucaristia não é arbitrária, mas possui um propósito teológico e litúrgico:

  • Sinal Sacramental: Os acidentes visíveis de pão e vinho servem como sinais visíveis da realidade invisível do Corpo e Sangue de Cristo.
  • Fé e Adoração: Manter os acidentes torna o mistério acessível aos sentidos humanos, convidando à fé.
  • Continuidade Sensível: Os acidentes preservam a continuidade entre o pão e o Corpo de Cristo, facilitando a compreensão do mistério pelos fiéis.

Catecismo da Igreja Católica, §1376: “Sob as espécies sacramentais de pão e vinho, está contido o Corpo e o Sangue de Cristo, verdadeira, real e substancialmente.”

5. Por que essa objeção falha?

A objeção de que seria impossível para Deus sustentar acidentes sem substância falha por três razões principais:

  1. Confusão entre Contradição Lógica e Suspensão Física: Acidentes sem substância não são logicamente impossíveis, mas uma exceção à ordem natural.
  2. O Poder Divino sobre o Ser: Deus, sendo a fonte de todo ser, pode sustentar diretamente os acidentes sem uma substância criada.
  3. Propósito Litúrgico e Sacramental: A permanência dos acidentes tem um propósito na economia sacramental: servir como sinais visíveis do Corpo de Cristo.

Conclusão: A Coerência Filosófica e Teológica da Transubstanciação

A doutrina da transubstanciação, embora à primeira vista possa parecer paradoxal ou até mesmo contraditória, revela-se profundamente coerente e filosoficamente defensável quando compreendida à luz da metafísica tomista e do ensinamento católico tradicional. As objeções analisadas, embora compreensíveis no contexto de uma análise puramente natural, falham ao ignorar distinções fundamentais na ordem do ser, especialmente a relação entre ordem natural e sobrenaturale o papel da causalidade divina.

A teologia eucarística, conforme articulada por Santo Tomás de Aquino e pela Tradição da Igreja, é sustentada por uma sólida base metafísica e teológica, que pode ser resumida em três princípios fundamentais:

1. Distinção entre Essência e Modo de Existência:

Um dos pilares mais importantes na defesa da transubstanciação é a distinção entre:

  • Essência do acidente: A natureza do acidente, como cor, sabor ou dimensão, permanece a mesma, independentemente de seu modo de existir.
  • Modo de existência do acidente: Normalmente, os acidentes dependem de uma substância para existir, mas esse modo de sustentação pode ser excepcionalmente modificado por Deus.

Essa distinção responde a todas as objeções que alegam que a separação entre acidentes e substância seria contraditória. Não há contradição, pois o acidente não perde sua essência. Ele continua sendo um acidente, mas seu modo de existir é mantido por Deus de forma milagrosa.

2. A Causalidade Divina e o Poder Sobre a Ordem Natural:

Outro aspecto central na defesa da transubstanciação é a distinção entre causas segundas (leis naturais) e a Causa Primeira (Deus).

  • Causas segundas: Na ordem natural, os acidentes dependem de uma substância como causa material e formal.
  • Causa Primeira: Deus, como fundamento do ser, pode sustentar diretamente os acidentes, sem necessidade de uma substância criada.

Essa distinção é fundamental para explicar por que Deus pode, de forma não contraditória, sustentar os acidentes do pão e do vinho após a consagração. A relação entre substância e acidente não é uma lei metafísica absoluta, mas uma relação contingente, mantida por Deus de acordo com a ordem natural criada por Ele mesmo.

3. A Função Sacramental dos Acidentes:

A presença contínua dos acidentes após a consagração não é um detalhe secundário, mas possui um propósito sacramental profundo. Os acidentes servem como sinais visíveis de uma realidade invisível, que é a presença real de Cristo.

Essa função sacramental está ligada à natureza dos sacramentos enquanto sinais eficazes da graça:

  • Sinal visível: Os acidentes permitem que o fiel perceba sensivelmente a realidade sacramental.
  • Catequese e Mistério: A permanência dos acidentes ajuda a preservar o mistério, conduzindo o fiel à fé no que não se vê.
  • Adoração e Reverência: A continuidade dos acidentes facilita o culto eucarístico, pois os fiéis veem o mesmo pão e vinho, mas adoram o Cristo presente. A permanência dos acidentes provoca o exercício da obediência da fé, ensinando que a realidade espiritual vai além do que é perceptível pelos sentidos.

Essa abordagem sacramental mostra que a permanência dos acidentes não é arbitrária, mas parte essencial do mistério e do propósito do sacramento eucarístico.

4. Consistência Teológica e Conformidade com o Ensino da Igreja:

A doutrina da transubstanciação, conforme definida pelo Concílio de Trento, não apenas é coerente com a razão, mas também se fundamenta firmemente na tradição bíblica e patrística:

  • João 6,51: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu… o pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo.”
  • São Cirilo de Jerusalém: “Não consideres o pão e o vinho como meros elementos; são, segundo a palavra do Senhor, o Corpo e Sangue de Cristo.” (Catequeses Mistagógicas)

Essa doutrina é confirmada pelo Magistério da Igreja, especialmente no Catecismo da Igreja Católica (§1374-1376), e permanece como uma verdade de fé, protegida pela infalibilidade da Igreja.

Conclusão Final

A análise tomista da transubstanciação demonstra que a doutrina:

  • Não é contraditória: A separação entre substância e acidentes não viola o princípio da não-contradição.
  • Está enraizada em uma metafísica sólida: A distinção entre essência e modo de existência, e a causalidade divina, são chaves para a compreensão do mistério.
  • Possui um fundamento sacramental: Os acidentes persistem para servir como sinais visíveis da presença real de Cristo.
  • É consistentemente ensinada pela Igreja: Em continuidade com a Tradição e o Magistério infalível.

Assim, a doutrina da transubstanciação, longe de ser uma imposição irracional, revela-se um mistério profundo, mas coerente, que respeita tanto a metafísica quanto a revelação divina. Ela convida os fiéis a uma experiência de fé e adoração ao Cristo realmente presente, reafirmando a verdade central da fé católica.

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