Todo homem experimenta numerosas misérias físicas a acometê-lo: a morte com seus precursores (a doença, a fome, o frio…). Mais importantes ainda são os achaques espirituais: a concupiscência desregrada, a acentuada capacidade de errar na procura da verdade, a debilidade do querer, etc. E, fora do homem, que se verifica? A natureza não raro parece revoltada; em vez de servir ao seu senhor, esmaga-o pelos flagelos (secas e enchentes, terremotos, etc.)
1) Será que esta ordem de coisas é ordinária, obra do Autor mesmo da natureza? — Bem se poderia crer que não, dado o avultado número de males que afetam as criaturas (até certo grau, as falhas e os desequilíbrios não chamariam a atenção do filósofo, pois são por si inerentes à condição falível de qualquer criatura). Aliás, os povos primitivos ainda hoje existentes costumam, em suas narrativas tradicionais, atribuir a morte e as desgraças a uma violação do bem-estar inicial; os primeiros indivíduos teriam desobedecido a Deus, acarretando sobre si a triste sorte que o gênero humano padece (vejam-se tais narrativas no livro de E. Bettencourt, “Ciência e Fé na história dos Primórdios”, 3ª ed. AGIR, pág. 178-184).
Ora, a fé cristã elucida ulteriormente estas observações: ensina que o primeiro homem, Adão, de fato pecou e que a sua culpa repercutiu em seus descendentes, assim como em toda a natureza material, causando desordem.
O documento mais explícito a este propósito é o texto de São Paulo, Rom 5,12: o Apóstolo afirma que, por obra de um homem (o primeiro Adão), o pecado (o Pecado personificado, o Pecado enquanto é um estado que afeta o gênero humano inteiro) entrou no mundo. Como sanção do pecado, entrou a morte, a qual também é universal, acometendo a todos indistintamente, “pois que, diz São Paulo, todos pecaram”. Ora, já que todos morrem, mas nem todos cometem pecado pessoal (tenham-se em vista as criancinhas), a razão pela qual lhes é imposta tal sanção há de ser o pecado de Adão transmitido a seus descendentes juntamente com a natureza humana.
O Apóstolo reafirma seu pensamento no v. 19: “Como pela desobediência de um só homem (Adão), a multidão (do gênero humano) foi constituída pecadora, assim pela obediência de um só (Cristo) a multidão será justificada”.
A idéia de um pecado impregnado na natureza humana desde que esta seja concebida no seio materno, decorre outrossim de Ef 2,3: “Por natureza éramos filhos da ira”.
2) Mas como se há de entender que a Justiça Divina impute a todos os descendentes de Adão um pecado que não cometeram pessoalmente?
O Criador, em seus desígnios eternos, houve por bem conceber o gênero humano à semelhança de grande corpo, solidário de uma Cabeça, que era Adão: “Omnes homines unus homo“, dizia S. Agostinho; o primeiro pai devia desempenhar aos olhos de Deus o papel de compêndio, no qual estava compreendida toda a estirpe humana e a sua respectiva sorte. Ora Adão recebeu do Criador a sua natureza humana ornada de dons preternaturais e sobrenaturais, que, segundo o plano de Deus, ele devia transmitir aos pósteros por via de geração, caso se mostrasse obediente à Palavra do Senhor (os filhos de Adão seriam também filhos de Deus, portadores da graça desde o primeiro instante de sua existência). Eis, porém, que Adão prevaricou; consequentemente foi destituído dos privilégios paradisíacos; daí por diante só podia gerar a natureza de um pecador, natureza que, despojada dos dons de que o Criador a revestira, não podia (nem pode) deixar de aparecer disforme aos olhos do seu Autor. Assim todo indivíduo, pelo fato mesmo de herdar a natureza de Adão, traz em si uma nódoa, que se chama “o pecado de origem” ou “original”. Como se vê, este é um defeito que afeta primariamente a natureza humana como tal, mas não deixa de ser imputado a cada indivíduo em particular, visto que todos constituem com Adão um único corpo.
Exploremos um pouco mais esta figura, tirada dos escritos de S. Agostinho e S. Tomás, para compreendermos melhor a doutrina. Num organismo, diz-se que tal ato de tal membro (da mão, por exemplo) é voluntário, tendo-se em vista não a vontade da mão, mas a vontade da alma que comunica à mão a respectivo movimento. Caso se considere a mão separadamente do corpo a que pertence, não se lhe imputa como pecado um homicídio que cometa; far-se-á, porém, a incriminação, desde que se considere a mão qual parte do homem movida pela vontade deste. Pois bem; algo de semelhante se dá no corpo metafórico do gênero humano: a desordem, a hediondez que se encontram em tal filho de Adão, são voluntários e culpáveis não por vontade desse descendente de Adão, mas por vontade do primeiro pai, que por via de geração move a todos os que são da sua linhagem (cf. S. Tomás, Suma Teol. I/II 81, a.1). Está claro que toda comparação é, de certo modo, manca; contudo a metáfora utilizada por S. Tomás contribui para se ver que o pecado original em nós não pode ser qualificado de voluntário do mesmo modo que o pecado atual, o qual depende diretamente da nossa vontade (não é por vontade da mão que o homicídio é cometido); mas é voluntário de maneira mediata, mediante a vontade de Adão, do qual “o Criador nos quis fazer dependentes (a mão pertence a um organismo dotado de vontade, vontade que comunica seu influxo a qualquer dos órgãos do conjunto), Conceba-se, pois, uma noção de voluntário intermediário entre o voluntário pessoal e o não-voluntário. De passagem, seja lícito acrescentar que quem morre com o pecado original apenas, não é condenado como quem falece com o pecado atual (os teólogos costumam distinguir entre o limbo das crianças, em que se goza de bem-aventurança natural, e o inferno dos réprobos).
Como se vê, a transmissão da culpa de Adão a cada um de nós é verdade baseada na Revelação Divina mais do que em argumentos meramente racionais. Decorre, em última análise, da visão que Deus tem a respeito do gênero humano, visão que transcende (mas não contradiz) nosso bom senso: nenhum de nós foi concebido pelo Criador isoladamente, mas todos foram concebidos e amados como imagens do Filho de Deus ou membros do Cristo Jesus, solidários com Este. Ora a cópia mais próxima do Senhor Jesus foi o primeiro Adão (cf. Rom 5,14); por isto vínculos de solidariedade especial nos prendem ao primeiro pai segundo os sábios desígnios de Deus. Nossa união com Adão, portanto, deve ser, em última instância, entendida à luz da nossa união com Cristo e seu Corpo Místico.