Um dos focos mais frequentes de dificuldades neste setor é o errôneo conceito de mal.
Somos propensos a conceber o mal como um corpo ou uma entidade nociva a nós, assim como somos espontaneamente levados a crer que as trevas são um corpo compacto oposto à luz. Na verdade, as trevas não têm entidade, são mera ausência de luz; assim também o mal não é um ser, mas é justamente a ausência de ser onde este deveria existir. Assim a falta de olhos numa criatura humana é um mal. Outro exemplo: a febre ou o aumento de temperatura é um mal, não porque consiste em calor (entidade positiva), mas porque tal calor (entidade boa em si) está localizado num corpo humano e carece de proporção com as leis desse organismo; o mal da febre só ê mal porque tal grau de calor não está em harmonia com o conjunto de elementos do corpo humano; o mesmo calor posto num motor qualquer poderia ser ótimo elemento por estar dentro das proporções ou exigências desse motor.
Disto se deduz uma consequência importante: o mal não tem propriamente causa. Ele é ocasionado por um agente que produz o bem, mas o produz lacunosamente. Tal agente nunca pode ser Deus, O Qual por definição é infinitamente perfeito (um Deus capaz de imperfeição seria contradição, não seria Deus); só pode ser uma criatura.
— Na verdade, toda criatura, finita como é, é capaz de falhar na produção do bem; pode então dar origem ao mal (uma criatura por si mesma infalível seria um absurdo; deveria ser infinitamente perfeita ; ora não pode haver mais de um Ser infinitamente perfeito, Deus).
O Criador deixa que na realidade as criaturas deem origem ao mal.
— Como é isto possível, se Ele é todo-ciente, todo-poderoso e todo-bondoso ? Como conciliar entre si estes três atributos do Altíssimo?
— Deus é todo-ciente. Sabe o mal que os homens livremente estão para cometer. Sabe…, mas não obriga a cometê-lo; apenas permite.
— E por que permite, se é todo-poderoso e pode evitar?
— Deus não usa da sua onipotência para evitar o mal, porque fez livres as criaturas humanas (para que estas fossem mais dignas do que os autômatos) e não lhes retira o dom da liberdade que outorgou. Qualquer intervenção mutiladora seria indigna de Deus; o Senhor não quis fazer criaturas livres “teleguiadas”. Isto seria o mesmo que fabricar flores artificiais; sabemos que, para que a flor tenha a sua graça, o seu perfume e frescor, é preciso que seja natural… que nasça e morra.
— Mas então como se salva a bondade de Deus, se Ele prevê o mal das criaturas…, se Ele tem poder para o impedir e, não obstante, não o impede?
— A bondade de Deus se salva plenamente pelo fato de que Ele, embora deixe cada criatura enveredar pelo caminho que ela queira, faz que finalmente todas concorram para a vitória do bem. Nenhum ser criado, por mais que abuse dos dons do Senhor, escapa à finalidade suprema da criação, que é proclamar o Bem. “Deus escreve direito por linhas tortas”, diz a sabedoria popular… Este adágio encerra profunda verdade: as linhas são tortas não por causa do Senhor, mas porque as criaturas livres não recebem devidamente o impulso reto de Deus ; contudo a bondade e a onipotência do Altíssimo se manifestam no fato de que, sem violentar ou mutilar algum ser criado, o Senhor faz que tudo convirja para um único objetivo: servir finalmente à causa do Bem.
S. Agostinho e, depois dele, S. Tomás formularam famoso axioma : “Deus jamais permitiria que algum mal existisse em suas obras, se Ele não fosse bastante poderoso e bom para tirar do próprio mal o bem” (Enchiridion 11 ; S. Teol. I qu. 2. a. 3 ad 1).
O poeta Goethe, por sua vez, embora nada tivesse de católico, atribuía a Satanás o seguinte dístico:
“Sou o espírito que sempre nega… Pertenço a essa Força que sempre comete o mal, Mas que só consegue servir ao Bem.” (cf. pág. 18 deste volume)
Veremos plenamente o triunfo do Bem sobre o mal quando tiver terminado a história deste mundo; por enquanto, estando nós debaixo da tempestade, não podemos pretender. contemplar o céu azul que na realidade cerca as nuvens, antecedendo-as, acompanhando-as e sucedendo-lhes.
Outro foco de mal-entendidos é o conceito de castigo infligido por Deus.
Facilmente se pensa que o Todo-Poderoso inventa e cria punições para os homens (“como pôde Deus criar o inferno?”, pergunta-se). Em consequência, julga-se que Deus poderia ser mais brando ou condescendente ao “imaginar” os castigos das suas criaturas; poderia fazer um “abatimentozinho”…
Na verdade, Deus não imagina castigos especiais para as criaturas. Com efeito, não é preciso que Ele delibere sobre a sanção que merecem os infiéis: esta se desencadeia normalmente, como simples consequência da desordem acarretada pelo pecador na natureza. Sim; o homem, alheando-se a Deus, coloca-se, pelo seu ato mesmo de se alhear, na mais dolorosa situação possível. — Por que ? — Porque contradiz à lei fundamental do seu ser; feito para Deus, ele se constitui num estado de retorsão e dilaceração subsistentes. Ora o inferno consiste primariamente nesse tormento, o chamado “fogo do inferno” sobrevém; é pena infligida por um agente físico cuja natureza não se pode precisar exatamente. Assim o pecado traz em si a sua própria sanção; quem come demais, contradizendo às leis da sua natureza, sofre a represália da natureza, sem que haja necessidade da intervenção especial de Deus ou de algum juiz para determinar a pena.
A retorsão (repulsa) no inferno não tem fim, porque o réprobo se endurece na sua aversão a Deus, e em absoluto não quer reconciliação com o Senhor. Na verdade, a natureza humana é tal que ela só muda de disposições enquanto a alma está unida ao corpo e pode captar novas impressões por meio dos sentidos. Se o réprobo mostrasse no inferno o mais leve desejo de voltar a Deus, seria imediatamente recebido pelo Pai do Céu. Em última análise, estejamos certos de que, se nós, pobres homens, temos o senso da justiça, muito mais Deus o tem; o Senhor não comete injustiça para com criatura alguma.
Mais um ponto frequentemente focalizado é a aparente desordem na distribuição das sortes: as pessoas virtuosas são muitas vezes atribuladas, ao passo que os maus parecem prosperar tranquilamente
Em resposta, note-se que não se pode avaliar o grau de felicidade de alguém pelo afluxo de bens temporais que lhe ocorram. Mesmo os que parecem afagados pelo curso visível da vida, sofrem ou sofrerão. Ademais, no estado atual da humanidade, o padecimento vem a ser o verdadeiro valor: burila a personalidade, desprende o potencial de heroísmo e nobreza que cada um traz dentro de si e que fica sufocado quando os bens temporais acariciam; é o sofrimento que quebra a crosta de egoísmo de cada um. Por isto o Pai do céu não dispensa as suas criaturas de sofrer; ao contrário, tanto mais as visita com a cruz quanto mais as deseja elevar na escala da grandeza e da santidade.
Daí se compreende que o justo, longe de se inquietar por ter que sofrer, abraça a sua cruz com generosidade; ele, ao contrário, se perturbaria se tudo lhe corresse a gosto (pois então temeria ser sufocado pelo polvo do egoísmo).
Eis o que, em resumo, se pode dizer sobre os aspectos do problema do mal mais comumente visados.