Antes do mais, em nossa resposta convém elucidar o que sejam «dons paradisíacos» ou «estado paradisíaco». A seguir, verificaremos a que ficou reduzido o gênero humano em consequência do pecado de Adão.
1. O estado paradisíaco
O «estado paradisíaco» é o estado em que Deus quis colocar o primeiro casal humano (Adão e Eva) na fase inicial de sua história. Esse estado se achava associado a um local harmonioso (símbolo da harmonia que reinava dentro do próprio homem) chamado «paraíso terrestre»; donde o nome de «estado paradisíaco». Nessa situação o homem usufruía de dons sobrenaturais e preternaturais.
Vejamos . em que consistiam pròpriamente.
a) Os dons sobrenaturais
Sendo o homem uma criatura intelectiva, ele é naturalmente orientado para Deus ou destinado a encontrar em Deus sua perfeição e bem-aventurança. Sim; a criatura intelectiva foi feita para apreender a verdade e dela fruir amorosamente. Ora a verdade por excelência é Deus, o Supremo Ser (Verdade e Ser são conceitos que se recobrem, ensina a Filosofia; cf. «P. R.» 20/1959, qu. 1). Frisemos bem: o homem, por sua inteligência, é capaz de apreender o infinito, de sorte que ele não se realiza plenamente senão na posse do Ser Infinito, que é Deus.
Contudo podem-se conceber duas modalidades ou duas vias pelas quais a criatura humana entre na posse de Deus: a natural e a sobrenatural.
1) A primeira modalidade, natural, é a que decorre da capacidade da natureza humana como tal. Nessas condições o homem tende a conhecer, sim, a Deus, mas de maneira análoga. Com efeito, o conhecimento humano tem por objeto primário as criaturas, e as criaturas tais como elas se apresentam no mundo material que nos cerca ; é a estas que a inteligência humana apreende diretamente. Quanto a Deus, o Ser Infinito, só O apreendemos através das criaturas, por analogia com estas. Tal conhecimento análogo de Deus pode-se tornar cada vez mais puro e penetrante, proporcionando finalmente ao homem o deleite máximo de que ele seja capaz por sua própria natureza. Tal é a chamada bem-aventurança natural do homem, que já os filósofos Platão e Aristóteles preconizaram independentemente da Revelação cristã.
Observe-se agora o seguinte : Deus podia ter criado o homem, destinando-o a conseguir, no currículo de sua vida terrestre, a bem-aventurança natural como fim supremo. O homem se acharia então na ordem natural ou no estado de natureza pura. Em tal condição, ele seria, sem dúvida, afetado das vicissitudes ou enfermidades decorrentes da estrutura mesma da natureza humana. O que quer dizer :
– sofreria de ignorância (pois só aos poucos o homem adquire idéias, nunca chegando à plenitude do saber);
– sofreria as dores, doenças e misérias resultantes dos desgastes do organismo humano e da ação do ambiente sobre este;
– sofreria a morte ou a decomposição, pois todo ser composto (e o homem é um composto de corpo e alma) tende naturalmente a se decompor;
– sofreria também a luta da carne contra o espírito, pois a nossa natureza sensível tem suas tendências, que por vezes antecedem a deliberação da razão e não sempre se harmonizam com os ditames desta.
Apesar de todas essas vicissitudes, porém, o homem poderia, com o auxilio do Criador, chegar ao conhecimento cada vez mais exato da Verdade (de Deus), conformar-se cada vez mais fielmente as normas da moralidade e assim, terminada esta vida, ir gozar de Deus para todo o sempre.
Criando o homem no estado de natureza pura, está claro que o Senhor não faria obra indigna da sabedoria ou da bondade divinas, pois todo ser criado, por definição, significa sempre perfeição finita, falível, capaz de recair no abismo do nada donde procedeu ; não há, nem pode haver, criatura que por sua natureza mesma não traga a marca da limitação e da falibilidade. O Ser Ilimitado ou Infalível simplesmente dito só pode ser um. Criado, por conseguinte, em estado de natureza pura, o homem não teria motivo de se queixar do Criador; seria certamente um artefato belo e bom da Sabedoria Divina.
Note-se outrossim que, nas referidas condições, a criatura humana faria uso de seu livre arbítrio, podendo assim renegar a Deus, seu Fim Supremo, pelo pecado. Pecando, porém, o homem não decairia do seu estado natural, pois o pecado não destrói nem diminui o que é constitutivo da essência ou da natureza das criaturas.
2) Na verdade, porém, (e é pela Revelação Divina que o sabemos), Deus quis ser estupendamente liberal ao criar o homem, concedendo-lhe a dignidade máxima que Ele podia dar a uma criatura intelectual. Sim ; Deus comunicou aos primeiros pais o consórcio da vida divina, fazendo do homem o filho adotivo de Deus, mediante um conjunto de dons que são chamados sobrenaturais. … Sobrenaturais, porque, excedendo as exigências de qualquer natureza criada, habilitavam o homem a conhecer e amar o Criador não através do espelho das criaturas, mas como o próprio Deus conhece e ama a Si.
Os dons sobrenaturais de que gozavam os primeiros pais no paraíso eram
– a graça santificante: entidade criada que se poderia comparar a uma semente ou a um enxerto da vida divina dentro da alma.
A graça santificante é como uma nova natureza ou um novo principio de ação, o qual se manifesta mediante seus órgãos próprios, constituindo com estes de certo modo um «organismo espiritual». Os órgãos de ação da graça eram (e ainda são):
as virtudes infusas, a saber,
as virtudes teologais: a fé, a esperança, a caridade;
as virtudes cardeais: a justiça, a prudência, a fortaleza, a temperança;
– os dons do Espírito Santo (sabedoria, Inteligência, ciência, conselho, fortaleza, piedade, temor de Deus), os quais tornam a alma particularmente apta para receber moções do Espírito Santo.
Possuidor dos dons sobrenaturais, o primeiro homem era chamado a ver a Deus face a face logo ao terminar a sua peregrinação na terra.
Eis, porém, que novo elemento surge ante a nossa mente:
b) Os dons preternaturais
Para facilitar a consecução de tão elevado objetivo (sobrenatural), o Criador ainda quis corrigir os defeitos da natureza humana de Adão e Eva, mediante dons preternaturais, isto é, mediante prerrogativas que constituíam a natureza num estado de maravilhosa integridade, vigor e retidão, mas não a elevavam acima do alcance de suas próprias forças. Assim como a graça santificante e os dons sobrenaturais anexos corroboravam a adesão do espírito de Adão a Deus, assim os dons preternaturais corroboravam a submissão da carne de Adão ao seu espírito, dando origem a estupenda harmonia dentro do próprio homem.
E quais seriam esses dons preternaturais ? Os teólogos enumeram os cinco seguintes:
1) O dom da retidão ou da imunidade de concupiscência; era a prerrogativa mediante a qual os primeiros pais subordinavam todas as tendências da sensibilidade ou da carne ao perfeito domínio da razão, razão que, por sua vez, estava plenamente sujeita ao supremo império de Deus.
Esta prerrogativa é insinuada pelos textos do Gênesis (225 ; 3,7): afirmam que, antes do pecado, Adão e Eva estavam sem vestes e não sentiam rubor por isto (o que só se explica pelo fato de estarem isentos de paixão desregrada, à semelhança de crianças inocentes); depois do pecado, porém, experimentaram a necessidade de se vestir (o que só se pode entender por efeito da concupiscência desordenada que neles se despertara).
2) o dom da imortalidade: mediante este privilégio, o homem, embora tendesse naturalmente a se dissolver na morte, era destinado a passar da Terra à visão beatífica de Deus sem atravessar a morte. Já que a natureza por si repudia a morte, era muito conveniente que o Criador concedesse à alma do primeiro homem o dom de conservar a vida do corpo, enquanto ela mesma conservava sua verdadeira vida, que é a união com Deus.
A existência deste dom no paraíso é atestada pelo fato de que a morte foi infligida ao homem como castigo d acorrente do pecado; cf. Gên 2,17; 3,25s. O livro da Sabedoria ensina outrossim que Deus não fez a morte, mas que esta entrou no mundo por inveja do demônio (cf. 1,13; 2.23s); veja-se também São Paulo, Rom 5,12-17.
O homem, no paraíso, deveria sustentar a sua existência com alimentos (cf. Gên 2,16); estes impediriam o natural desgaste dos órgãos e da energia vital do homem, coisa que atualmente não se dá. Após a ressurreição do corpo, no fim dos tempos, o homem não precisará em absoluto de alimentação corporal.
3) O dom da impassibilidade ou da imunidade de sofrimento. O sofrimento, entendido como doença e achaque do corpo, é um dos elementos precursores e concomitantes da morte. Visto, porém, que o homem no paraíso estava isento de morrer, entende-se que estivesse também imune de sofrer as moléstias portadoras da morte. É o que o texto sagrado dá a entender quando apresenta o sofrimento e a dor como consequências do pecado de Adão (cf. Gên 3,19).
4) O dom da ciência infusa ou da Imunidade de ignorância.
Por «ignorância» entende-se aqui não qualquer falta de conhecimentos, mas a carência das noções que determinado homem, em determinadas circunstâncias da vida, deve possuir (vista a debilidade da natureza humana, verifica-se que é muito fácil ocorrer tal carência). Adão no paraíso, juntamente com a fé infusa (dom sobrenatural), possuía os conhecimentos necessários ao bom desempenho de sua missão de pai do gênero humano; em outros termos: conhecia as verdades de ordem religiosa e filosófica pressupostas para que orientasse a sua conduta e educasse devidamente os seus filhos (cf. Eclo 17,1-8). Isto não significa que fosse conhecedor também das ciências profanas e dos esmerados procederes da técnica. Não se creia tampouco que contemplasse a Deus face a face ou conhecesse acontecimentos futuros contingentes ou ainda as segredos dos corações. Os primeiros pais viviam estritamente do regime da fé.
S. Agostinho e S. Tomás julgaram que ao dom da ciência infusa de Adão estava associado o dom da imunidade de erro (cf. S. Tomás, S. Teol. 194,4; De verit. 18,6); e erro é, sim, o mal da inteligência. Quanto ao erro de Eva, que se deixou seduzir pelas palavras do tentador, dizem os teólogos que ele se explica muito bem na hipótese de que Eva, ao atender ao Maligno, já havia pecado interiormente por orgulho.
A ciência infusa de Adão é insinuada pelo texto bíblico quando refere que o primeiro homem viu desfilar em sua presença todos os animais do paraíso e a cada um impôs o respectivo nome (cf. Gên 2,19). Esta cena não há de ser necessàriamente tomada ao pé da letra; ela provàvelmente significa em termos figurados que Adão teve o conhecimento exato do valor ou do significado dos animais irracionais que o cercavam ou, mais amplamente, do mundo material em que estava colocado. «Impor o nome», na linguagem dos antigos, significa «exprimir a essência ou as notas características» da pessoa ou do objeto nomeado.
5) O dom do perfeito domínio sobre as criaturas inferiores.
É natural que o homem, como criatura intelectiva, ocupe o primado entre as criaturas visíveis deste mundo. Este primado, porém, só se exerce mediante luta e fadiga, vistas as diversas tendências que movem os seres sobre a Terra. Ora, justamente para tornar fácil e perfeito o domínio do homem sobre as criaturas inferiores, o Senhor quis munir de um dom especial os primeiros pais: haveriam de lavrar o solo e dominar os animais (cf. Gên 2,8.15), sem daí ressentir incomodo ou preocupação (cf. Gên 3,17s).
Alguns teólogos incluem o dom do perfeito domínio no da impassibilidade, pois inegàvelmente também esta prerrogativa significa isenção de sofrimento ou de luta.
Os privilégios preternaturais e sobrenaturais que acabamos de assinalar, constituíam o que se chama «a justiça original». Esta, segundo o desígnio de Deus, estava destinada a ser o apanágio de todo o gênero humano ; era como que um patrimônio de família, confiado ao primeiro pai, devendo-se transmitir por geração, de sorte que todo filho de Adão seria, ao mesmo tempo, filho adotivo de Deus.
Os teólogos julgam que apenas o dom da ciência infusa não se comunicaria aos demais homens nas proporções em que Adão o possuía, pois o papel do primeiro homem, criado em idade adulta e destinado a ser pai de todo o gênero humano, exigia conhecimento mais profundo do plano de Deus.
Contudo, para que a transmissão da justiça original se fizesse, era preciso que o primeiro pai perseverasse na sua integridade inicial, obedecendo ao preceito divino.
A condição, porém, não foi preenchida : Adão pecou…
E quais as consequências dessa falta ?
Costumam ser resumidas na fórmula seguinte :
2. “Despojado dos dons gratuitos, ferido em sua natureza“
É com as palavras acima (inspiradas da parábola do bom samaritano em Lc 10,30) que os teólogos exprimem os males de que vem sofrendo o gênero humano por efeito do pecado de Adão. Velamos o seu significado, considerando separadamente cada um dos dois membros da fórmula.
2.1 «Despojado dos dons gratuitos». Tendo-se revoltado contra o Senhor, compreende-se tenha Adão perdido imediatamente os privilégios que o elevavam acima de si mesmo, tornando-o filho adotivo de Deus (privilégios sobrenaturais) Compreende -se também que haja perdido as prerrogativas preternaturais, que corroboravam sua natureza como tal, fazendo-a mais seguro suporte da graça. O Criador não força a liberdade do homem ; desde que êste diga «Não», Deus lhe retira todas as dádivas acessórias ou gratuitas que caracterizam o «Sim» ou o estado de adesão ao Senhor. Esta proposição é clara ; a que mais atenção requer, é a que concerne à natureza humana.
2.2 «…Ferido em sua natureza». É doutrina comum entre os teólogos (já atrás mencionada) que o pecado não deteriora nem destrói a estrutura ou a essência dos seres. Não se pode, por conseguinte, dizer que a natureza humana haja sido diretamente afetada pela culpa dos primeiros pais. O termo «ferido» ou «chagado», na expressão acima, significa antes o seguinte:
A natureza humana está hoje reduzida à sua condição meramente natural e às suas misérias congênitas, depois de ter sido uma vez elevada a condição superior ou sobrenatural; em consequência, o aparecimento, no homem, dos defeitos da natureza já não é simplesmente um fenômeno natural, mas é o produto concreto e perene de uma revolta contra Deus verificada no início da nossa história. Sem dúvida, o homem, após o pecado, pode ainda apreender a verdade e amar o bem ; a culpa dos primeiros pais não colocou alguma energia má no interior da natureza humana, mas retirou a esta os dons que .remediavam às suas misérias congênitas, deixando-a a braços com dificuldades das quais Deus a queria preservar. Donde se segue que a lentidão natural com que o homem apreende a verdade, a concupiscência desregrada que êle padece ao procurar o bem, significam, em última análise, um estado de coisas hediondo, porque destoante do exemplar concebido nos desígnios divinos.
Note-se mais: o homem, hoje reduzido ao seu estado natural, continua, não obstante, destinado a um fim sobrenatural, único fim, aliás, a que Deus chama suas criaturas; Deus ainda quer dar-lhe a visão de Si face a face. É o que faz que o estado atual, embora pareça natural, seja, ainda a novo titulo, um estado de desequilíbrio e desordem.
Em outros termos, diríamos: no estado de natureza pura a ausência dos dons preternaturais e sobrenaturais seria mera ausência, mera falta de um aparato não devido à natureza humana. No estado presente, porém, tal ausência representa depauperamento e decadência em relação a um estado anterior muito nobre. O homem, hoje em dia, é, do ponto de vista religioso, um pobre que já foi muito rico, mas perdeu sua riqueza por imprudência ou loucura sua e, não obstante, continua a ser estimado como rico — o que é muito diferente de um.- pobre que sempre foi pobre e sempre se comportou prudentemente em sua pobreza. O estado atual da natureza humana significa desarmonia e culpa, ao passo que o estado de natureza pura, nunca elevada à ordem sobrenatural, não implicaria tal nota pejorativa.
E quatro são as chagas que os teólogos costumam apontar no estado atual da natureza humana (cf. S. Tomás, Suma Teológica I/n 85, 3) :
1) no paraíso, a inteligência apreendia a Verdade de maneira fácil e certeira — o que hoje não se dá. Donde a chaga da Ignorância;
2) a vontade tendia, de modo espontâneo e eficaz, ao bem, contràriamente ao que hoje se verifica. Donde a chaga da malicia;
3) o apetite irascível se entregava enèrgicamente à árdua pugna; hoje não. Donde a chaga da fraqueza;
4) o apetite concupiscível aderia harmoniosamente aos prazeres moderados pela razão, diversamente do que hoje se dá. Donde a chaga da concupiscência.
Eis as notas que caracterizam o estado religioso e moral do gênero humano após o pecado. Poder-se-iam compendiar todos esses traços numa só palavra : insuficiência. Sim; o homem sofre, hoje em dia, de insuficiência absoluta para conseguir por si o fim último sobrenatural ao qual ele está destinado; insuficiência relativa para chegar ao seu pleno desenvolvimento, mesmo na linha meramente humana.
3. Natureza caída, mas resgatada
Deus em sua misericórdia não quis deixar nem Adão nem algum de seus descendentes no estado de desequilíbrio em que o primeiro pecado projetou o gênero humano. O Pai Celeste, de um lado, houve por bem manter, como dissemos, o destino sobrenatural do homem, não permitindo que este, apesar de toda a ingratidão, vise bem menor do que a filiação divina e a contemplação de Deus face a face ; de outro lado, porém, o Pai decretou dar remédio à incapacidade da natureza humana frente a .tão elevado fim.
Esse remédio consistiu no envio à Terra, de um segundo Adão, Jesus Cristo, que é o próprio Filho de Deus feito homem. Este mereceu para todo o gênero humano, desde Adão até a última geração, novo acesso à graça santificante, às virtudes e aos dons sobrenaturais anexos, restituindo assim ao homem pecador a possibilidade de conseguir o seu fim sobrenatural. Por Cristo e pela aplicação dos méritos de Cristo no Antigo e no Novo Testamento, os homens estão de novo adaptados ao seu fim sobrenatural e positivamente integrados na ordem sobrenatural.
Quanto aos dons preternaturais, cuja função era conferir um subsídio à natureza humana, isentando-a de suas misérias congênitas, eles não nos foram restituídos. Não; o caminho de volta para Deus após o pecado é árduo. Pode-se dizer que Deus mesmo quis que fosse tal.
E porque o quis?
Para que o sofrimento mesmo e a morte, que assinalaram o nosso caminho de afastamento do Pai Celeste, marquem atualmente, por efeito da Redenção de Cristo, nossa senda de regresso à casa do Pai; padecendo e morrendo, pagamos, de um lado, nosso tributo à Justiça e, de outro lado, desembocamos estupendamente na vida eterna. As próprias misérias da natureza, aceitas em união com a Cruz de Cristo, tornam-se os instrumentos concretos de nossa purificação e santificação. O Criador quis que a marca do mal se tornasse destarte também marca do bem; por isto Ele não extinguiu «a marca» (o sofrimento e a morte), ó Sabedoria Divina, que sabe envolver todas as coisas (até o que é mau) num plano benéfico!
Não restituindo os dons preternaturais ao homem, Deus não comete a mínima injustiça, pois o Senhor nada deve à criatura (injustiça em Deus suporia direito da parte do homem). Ao contrário, o desígnio divino manifesta maravilhosa arte do Criador, que, sem derrogar às exigências da justiça, faz que a própria e justa sanção sirva de resgate ao homem!
Pode acontecer, porém, que Deus conceda a uma ou outra alma justa aqui na Terra uma certa assemelharão ao estado paradisíaco; houve, por exemplo, santos que dominaram a natureza, acalmando tempestades, convivendo harmoniosamente com feras, ou curaram doenças, ressuscitaram mortos, falaram línguas novas, predisseram o futuro, etc. Trata-se de dons que o Senhor outorga esporadicamente, sem que isto possa ser previsto nem provocado; em geral, os santos não os pedem nem estão predispostos a crer que o Senhor os esteja agraciando desse modo. Nenhum desses fenômenos maravilhosos ou «paradisíacos» é característico necessário da graça santificante concedida aos filhos de Deus.
Acontece também que, por meio de processos hipnóticos e letárgicos, se deem casos de clarividência, impassibilidade, etc.; tais resultados, porém, obtidos por tal via nada têm de religioso; não podem ser relacionados com os dons paradisíacos nem com os milagres efetuados pelos santos, pois dons paradisíacos e milagres dos santos são essencialmente sinais religiosos ou sinais da presença de Deus que se digna .responder à fé e às orações dos homens (cf. «P. R. 11/1958, qu. 1).