1. A genuflexão como símbolo natural
1.1. Todo homem que perceba estar em presença de um ser maior (mais digno, mais possante…), tende não somente a conceber sentimentos interiores de respeito, mas é outrossim levado espontaneamente a exprimir esses sentimentos mediante uma atitude de corpo correspondente: a percepção de sua pequenez impeli-lo-á naturalmente a procurar diminuir a estatura do seu próprio corpo.
Tenha-se em vista o que está dito em «P.R.» 15/1959, qu. 3; 28/1960, qu. 8.: o corpo é naturalmente destinado a exprimir os sentimentos internos da alma.
Ora o «cair de joelhos» é, sem dúvida, uma maneira muito sensível de diminuir a própria estatura. Sendo assim, o «ajoelhar-se» vem a ser sinal, e sinal do respeito, da submissão e da indigência de alguém que tem a intuição de ser muito pequeno em relação a outrem.
R. Guardini expõe com sabedoria o significado da genuflexão, lembrando o seguinte : a estatura erguida é o sinal distintivo do homem entre os demais seres vivos deste mundo; ela simboliza, pois, o poder dominador, a capacidade de lutar e rivalizar, que fazem do ser humano um chefe. Ora ajoelhar-se equivale a renunciar à estatura erguida; significa, portanto, a renúncia do homem a si mesmo, à sua autossuficiência, ao poder de chefia, para se entregar a outrem, a outrem que realmente o mereça por ser mais digno ou mais sábio Cf. Welt und Person. Wuerzburg 1940, 31.42; Besinnung vor der Feier der hl. Messe. Mainz 48; Brieíe ueber Selbstbildung. Mainz 1930, 160.
Thurnwald, estudioso de história e pré-história, assevera: «O costume de dobrar os joelhos se deriva indubitavelmente do fato de que quem o pratica intenciona pelo seu próprio corpo mostrar que é menos digno do que aquele a quem ele saúda» (Reallexikon der Vorgeschichte. Berlin IV 574).
Alguns historiadores julgam que a genuflexão era originariamente a atitude que o guerreiro vencido tomava diante do vencedor (cf. «Die Religion in Geschichte und Gegenwart», por Gunkel-Zscharnock I 54).
No decurso dos tempos, como atestam os documentos da cultura e da história das religiões, a genuflexão se tornou usual em várias ocasiões da vida humana : praticada em presença da Divindade (o que é naturalmente o caso mais frequente) significava (e significa) adoração, reconhecimento da Suma Majestade e do Soberano Poder de Deus; praticado frente a autoridades humanas, exprimia (e exprime) reverência, homenagem respeitosa e pedido de auxilio. O simbolismo exato da genuflexão, portanto, depende da intenção de quem a realiza; somente tal pessoa está habilitada a dizer o que ela concebe em seu intimo e o que ela quer exprimir (adoração devida a Deus só, ou reverência devida a alguma criatura) quando dobra o joelho.
1.2. Não é necessário citar aqui textos que atestam o uso de genuflexão nos cultos pagãos; trata-se de praxe muito conhecida (basta lembrar apenas o «dobrar de joelhos diante de Baal» de que fala a S. Escritura em 3 Rs 19,18).
Mais importante é comprovar, na base de documentos históricos, que nem sempre a genuflexão foi (e é) praticada com a intenção de adorar a Deus; ela pode ser mero sinal de cortesia entre homens. É realmente o que testemunham certas tribos de negros da África Central, os quais saúdam o seu chefe mediante uma genuflexão; no reino de Siam (Tailândia), os membros da família real são cumprimentados da mesma forma, na China, tal tratamento é estendido às altas personalidades; na Rússia, os cidadãos se ajoelhavam diante do Czar para receber dele a bênção; entre os mongóis, o mesmo gesto é praticado frente aos nobres, de modo tal que as regiras de polidez mongólica ensinam o seguinte: quando um simples cidadão montado a cavalo se encontra com um nobre, deve descer da montadura, e dobrar o joelho até que o mais digno tenha passado (testemunhos colhidos na obra de Th. Ohm, Die Gebetsgebãrden der Võlker und das Christentum. Leiden 1948, 345).
Na China é costume antiquíssimo, ajoelharem-se os familiares diante dos cadáveres de seus familiares.
Por ocasião da controvérsia a respeito dos «ritos chineses» (séc. XVII/XVIII), não poucos missionários católicos tinham tal costume na conta de pagão. Outros julgavam-no independente de crença religiosa; seria mera expressão de reverência aos antepassados e de dedicação familiar; assim, por exemplo, pensava o Legado Pontifício na China, Card. Carlos Amhrósio Mezzabarba (tl741). Em 1742, o Papa Bento XIV condenou a praxe por motivos disciplinares e transitórios. Em 1924 um sínodo católico reunido em Shangai houve por bem autorizá-la de novo aos católicos chineses, considerando-a qual mera expressão de cortesia.
Este caso é particularmente interessante, porque bem ilustra como o simbolismo da genuflexão é ambíguo; há de ser interpretado estritamente segundo as intenções de quem o pratica.
Analisemos agora qual o significado preciso que a genuflexão tem no culto cristão.
2. A genuflexão no Cristianismo
2.1. Já entre os judeus os orantes costumavam praticar a genuflexão na presença de Deus, como se depreende de textos como 3 Rs 8,54: «Quando Salomão acabou de fazer ao Senhor esta prece e esta súplica, levantou-se diante do altar do Senhor, onde estava ajoelhado com as mãos levantadas para o céu».
Ou Is 45,23: «A verdade procede da minha boca, minha palavra jamais será revogada: Todo joelho deverá dobrar-se diante de Mim, toda língua deverá jurar por Mim».
Cristo seguiu a praxe de seu povo, orando de joelhos, por exemplo, no horto das Oliveiras; cf. Lc 22,41s.
Os cristãos herdaram naturalmente tal costume, como se percebe dos seguintes testemunhos bíblicos:
«Tendo dobrado os joelhos», S. Estêvão» exclamou : «Senhor, não lhes imputes este pecado» (At 7,60).
«Pedro ajoelhou-se e orou; a seguir, voltou-se para a defunta e disse: ‘Tabita, levanta-te’» (At 9,40).
Paulo em Mileto «ajoelhou-se e orou com eles (os presbíteros de Éfeso)» (At 20,36; cf. 21,5).
Na epistola aos Efésios atesta o mesmo Apóstolo: «Dobro os joelhos diante do Pai… para que vos conceda, sejais poderosamente robustecidos pelo seu Espírito» (3,14-16).
No Apocalipse lê-se algo de semelhante: «Ao ver o Filho do Homem, eu (João) caí como morto aos seus pés. Ele, porém, pôs sobre mim sua mão direita, e disse: ‘Não temas; sou o Primeiro e o último, e O que vive’» (1,17).
Principalmente na piedade dos monges e ascetas, a praxe das genuflexões alcançou grande voga: referem os biógrafos que São Patrício (+461), monge irlandês, tinha a costume de realizar duzentas genuflexões na primeira vigília da noite (ou seja, no espaço de três horas no máximo). No Oriente narra-se que o monge Dionísio, discípulo do Abade Stkorsky (+1508), fazia 3000 genuflexões diárias (cf. v. Frank, Russisches Christentum 205).O confessor Jossip Walakalamski impunha a seus penitentes, mesmo que fossem autoridades de alta categoria, a penitência de realizarem 300 genuflexões por dia (ob. cit. 232).
De modo especial, a genuflexão exprime a contrição devida ao pecado; sim, ela dá forma concreta à trituração ou à compressão que em seu ânimo todo pecador arrependido experimenta.
2.2. A Sagrada Escritura só reprova a genuflexão guando aquele que a pratica visa adorar uma criatura, transferindo para os homens aquilo que só a Deus se deve. Foi o que, conforme alguns, se deu com o centurião Cornélio frente a São Pedro:
«Quando Pedro estava para entrar, Cornélio saiu a recebê-lo e, caindo aos seus pés, prostrou-se. Pedro, porém, o ergueu, dizendo-lhe: ‘Levanta-te! Também eu sou um homem1» (At 10,25s).
São João, maravilhado pelas visões que sob a guia de um anjo havia contemplado, prostrou-se diante do mesmo:
«Fui eu, João, que ouvi e vi essas coisas. Depois de as ter ouvido e visto, prostrei-me aos pés do anjo que as mostrava, para o adorar. Ele, porém, me disse; “Não faças isso! Sou um servo como tu e teus irmãos, os profetas, e aqueles que guardam as palavras deste livro’» (Apc 22,8s).
Cf. Apc 19,10: «Cai aos pés do anjo para o adorar. Ele, porém, me disse: ‘Não faças isso! Eu sou um servo como tu e teus irmãos que guardam o testemunho de Jesus. Adora a Deus!’».
Principalmente neste último texto aparece bem clara a intenção da Escritura Sagrada: visa remover qualquer! tentativa de transferir para as criaturas a atitude de adoração (ou de reconhecimento da Majestade absoluta) que se deve tributar a Deus só (não entendemos aqui sondar a mente de S. João ao se prostrar diante do anjo). Adorar um santo ou um anjo é evidentemente contrário ao espírito cristão.
Diante dos anjos e dos santos, porém, os cristãos não hesitaram em dobrar os joelhos a fim de testemunhar mera reverência; este gesto simbólico é tão espontâneo à psicologia humana (como atestam os dados de história citados atrás) que os fiéis não conceberam escrúpulo em adotá-lo. Praticada perante uma criatura, a genuflexão do cristão (seja licito repeti-lo) não significa adoração, mas apenas reconhecimento da grandeza da pessoa homenageada e confissão da pequenez de quem se prostra; ora tal manifestação é perfeitamente condizente com o espírito do Evangelho.
2.3. Embora os católicos defendam a liceidade da genuflexão, estão longe de a apresentar como elemento essencial no culto. Não raro acontece que se prefira externar reverência e humildade mediante uma inclinação profunda antes que por meio de genuflexão; o caso se verifica principalmente entre os fiéis orientais, para os quais a genuflexão é menos familiar do que para os latinos.
No Japão, por exemplo, tendo em vista os costumes tradicionais do pais, os bispos preconizam a prática das inclinações profundas em vez da das genuflexões; assim se exprime um Código de Instruções para o clero japonês editado em Tóquio no ano de 1937:
«Non conveniet fideles instruere ut se gerant in omnibus iuxta mores Occidentalium, praesertim quando isti mores fidelibus Japo- nensibus minus convenienter aptari iudicentur. Proinde in ecclesia non tantum prohiberi non debet, sed promovendus est modus speci- £ice japonicus per profundam inclinationem exhibendo magnam re- verentiam erga SS. Sacramentum in elevatione sacrae Hostiae et in be- nedictione Sanctissimi, etiam adorationem faciendo post ingressum et ante egressum ecclesiae.»
O que quer dizer:
«Não será conveniente instruir os fiéis de modo a se comportarem em tudo consoante os costumes dos ocidentais, mormente quando tais costumes são tidos como pouco condizentes com as tradições dos fiéis japoneses. Por conseguinte, nas igrejas não sòmente não se deve proibir, mas, antes, há de se promover o costume típico dos japoneses de manifestar sua grande reverência mediante inclinação profunda, inclinação profunda que deverá! ser feita diante do SSmo. Sacramento, na elevação da hóstia consagrada, na bênção do SSmo., assim como no ato de adorar após a entrada e antes da saída de uma igreja» (Directorium Commune ad usum cler! Japonensis iussu et auctoritate RR. Ordinariarum editum. Tokio 1937, no 246, pág. 70).
Sabe-se outrossim que na Liturgia oriental (bizantina, armênia, copta, siria…) a adoração costuma ser expressa não por genuflexão, mas mediante inclinação profunda acompanhada do sinal da cruz; na oração particular, porém, o dobrai« de joelhos é frequente. As autoridades eclesiásticas de Roma reconhecem a legitimidade de tal procedimento.
Estas atitudes dos supremos membros da hierarquia se explicam pelo fato de que os gestos simbólicos no culto divino derivam todo o seu valor, como dizíamos, da intenção ou da mentalidade de quem os pratica; ora, já que os costumes da sociedade diferem de uma região para outra do globo, compreende-se que não se possam nem devam impor a todos os cristãos as mesmas formas de expressão simbólica. O que se requer, é que nenhum gesto simbólico, no povo de Deus, exprima idolatria ou superstição.
2.4. A guisa de complemento, segue-se ainda uma breve exposição da maneira como os Protestantes consideram a genuflexão.
Os primeiros Reformadores se mostraram contrários a essa praxe; usaram, porém, de certa tolerância parai com ela. Assim a Faculdade Teológica (luterana) de Leipzig apontava a genuflexão diante do altar como algo de indiferente; preconizava, porém, fosse abolida em ritmo lento e prudente «por causa do perigo de falsa crença, moldada segundo o Catolicismo». O historiador Christian Gerber tinha esse uso na conta de «fermento papista» ou de prática supersticiosa e alheia a Deus; apenas reconhecia a liceidade da genuflexão ao se proferir o nome de Jesus, de acordo com Flp 2,10.
Não obstante, no decorrer dos séc. XVI/XVII os protestantes continuaram a dobrar os joelhos em certas ocasiões do seu culto, principalmente ao receberem o alimento da Ceia Sagrada.
Sobreveio o séc. XVIII, época do Iluminismo e do Racionalismo, em que, ao lado de uma minoria que considerava a genuflexão como algo de indiferente, grande número de vozes a condenou; a genuflexão de então por diante caiu em desuso quase total entre os Protestantes.
Em nossos dias, já se ouvem eruditos evangélicos a apregoar a restauração da praxe nos seus templos. Sejam aqui citados os dois depoimentos seguintes:
«O fato de termos perdido a consciência do significado da oração de joelhos, por exemplo, ao confessarmos as nossas faltas, implica notável depauperamento de nossa linguagem figurada» (R. Hupfeld, Gottesdienstllche Fragen. Gutersloh 1927, 53).
Segundo um compêndio de instruções litúrgicas evangélicas («Handbuch fur das kirchliche Amt»), «a tendência a restaurar a genuflexão … é por vezes associada a simpatias para com o Catolicismo»; faz-se, porém, mister denunciar como preconceito a ideia de que ajoelhar-se é algo de tipicamente católico (ed. Buntzel-Schian. Leipzig 1928, 331).
Completando: ajoelhar-se é algo de espontâneo a todo homem que reconheça a verdade, ou seja, a sua exiguidade. Que o cristão, por conseguinte, pratique tal gesto para adorar a Deus só, e para reverenciar os amigos de Deus!