Para se poder delinear a posição da Igreja em relação às guerras, convirá, antes do mais, expor as principais sentenças de autores não católicos sobre a liceidade dos empreendimentos bélicos.
Breve resenha de sentenças
Em primeiro lugar, citemos o parecer dos que se opõem radicalmente a toda e qualquer guerra.
Há, sim, nos tempos modernos correntes de humanitarismo que, apregoando um culto vago e abstrato à humanidade, propugnam a extinção de todas as diferenças nacionais e religiosas, a fim de que os homens gozem de perpétua paz. Kant (+1804), por exemplo, propondo o seu ideal de paz perene, constitui um dos expoentes de tal tese.
Faz eco a esta a sentença de alguns pacifistas e de correntes católicas que lembram como o S. Evangelho parece condenar o uso da espada (cf. Mt 26,52), recomendando o amor aos inimigos e a brandura (cf. Mt 5,44); daí concluem que toda guerra se opõe à essência da mensagem cristã, sendo por isto imoral. Chegam alguns autores contemporâneos a afirmar a tese de que uma nação, no caso de ser injustamente agredida, tem o dever de se sacrificar em vista de um pretenso principio de caridade internacional, isto é, a fim de não dar lugar às terríveis desgraças que qualquer guerra nos tempos modernos não pode deixar de desencadear; o amor aos povos levaria o povo agredido a não empunhar as armas, nem mesmo para a defesa de seus legítimos direitos…
No extremo oposto, contam-se correntes filosóficas que, embora procedam de premissas diferentes, concordam entre si ao estimarem a guerra como algo de sempre lícito, até como fonte única de todo direito, ou — diriam outros — como algo de necessário, a que não se podem aplicar os critérios da Moral e do Direito.
Thomas Hobbes (+1679), por exemplo, asseverava que o estado de guerra é normal para a humanidade, governada, sim, pela lei do «bellum omnium contra omnes» (guerra de todos contra todos).
Algumas escolas de sociologia, enveredando pelo fatalismo, ensinaram que a história do gênero humano se desenrola segundo as leis do cosmos, entre as quais sobressai a da luta pela existência ou da guerra. O «darwinismo político» aplicou rigorosamente aos povos o principio de que só sobrevivem os seres mais fortes; consequentemente professa que as nações tendem naturalmente a se combater umas às outras, a fim de que as mais fortes possam afirmar seus direitos à vida mediante a vitória sobre as mais débeis.
A filosofia política de Maquiavel, Nietzsche, Treiltche, valorizando as chamadas «razões de Estado» ou as teorias do «Super-Homem», da «Super-Raça», da «Super-Nação», afirma que a forca armada é o fundamento das relações entre os Estados; toda aliança política visaria aumentar o domínio dos aliados, finalidade só atingível mediante o recurso à violência. — Hegel (+1831), filiando-se a estas idéias, afirmava que a guerra é necessária aos povos como o sopro dos ventos é necessário ao mar para que este não entre em putrefação…
Os militaristas, como von Bernhardi, Bismarck e os recentes regimes totalitários, glorificaram ou divinizaram a forca armada como fomentadora das qualidades viris e esteio da civilização entre os povos. A guerra seria para as nações o que a maternidade é para a mulher: afirmação de vida e de vigor natural.
Tais teorias favoráveis à guerra se inspiram em fatalismo cego sugerido por concepções mecanicistas e monistas do universo. — Bem diversas eram as premissas do pensador católico Joseph de Maistre (+1821), o qual, não obstante, também procurou justificar as guerras, concebendo-as como algo de divino !… Os seres vivos seriam, segundo tal autor, regidos pela lei da destruição até o silêncio da morte; De Maistre observava que os viventes superiores dominam os inferiores, tirando-lhes a vida em seu proveito próprio. O homem domina os demais seres materiais, matando a todos pelos mais diversos motivos: para comer, para se vestir, para se defender, para se instruir, para se divertir. Não estaria ele, por sua vez, sujeito a morticínio ? — Sim, responde o filósofo ; e o carrasco do homem é o próprio homem mediante as guerras; em furor entusiasta, sem saber o que faz, o homem nos campos de batalha estaria obedecendo à lei do assassínio universal. De Maistre admitia assim um «fatalismo providencial» (expressão pouco coerente), recusando por isto aplicar às guerras os critérios da Moral.
Seja mencionado outrossim o positivismo jurídico, o qual reconhece ao Estado o direito de recorrer à guerra por qualquer motivo que lhe pareça oportuno. O Direito internacional não visaria definir se ao Estado é lícito ou não promover campanhas bélicas, mas apenas procuraria regrar o andamento das hostilidades desde que estas tenham sido desencadeadas.
Após este rápido percurso introdutório, pergunta-se: em meio a tantas sentenças diversas, como se configura a concepção católica concernente à guerra ?
A posição católica
Em matéria tão delicada procedamos por etapas.
Para a consciência católica, não resta dúvida de que um conflito armado entre povos é flagelo lamentável, decorrente do primeiro de todos os males da história, ou seja, do pecado de Adão. Este, revoltando-se contra Deus em seu espírito, começou a experimentar imediatamente o combate da carne contra o espírito, assim como a revolta da natureza inanimada contra o próprio homem. Além do mais, Adão, tendo-se alheado do Criador pela desobediência, os seus descendentes se alhearam também uns dos outros; é o egoísmo, e não mais o altruísmo ou a caridade, que tende a imperar na sociedade. Disto resulta o choque de aspirações humanas antagônicas, desencadeando lutas armadas entre os povos. A guerra, portanto, entrou no mundo em consequência da primeira culpa e é sempre em função desta que o cristão a considera e deplora.
Tal concepção leva frequentemente a Igreja a exprimir na oração sua repulsa pelos conflitos bélicos, rogando a Deus que os faça cessar sobre a terra: «Da peste, da fome e da guerra, livrai-nos, Senhor», diz famosa fórmula da Ladainha de todos os Santos, visando três consequências do pecado original que costumam estar associadas entre si; o formulário da S. Missa a ser celebrada «em tempo de guerra» pede, por sua vez, «sejamos isentos de toda a maldade das guerras» (Secreta).
Toda guerra existe, pois, no mundo em função do primeiro pecado. Isto ainda não quer dizer que toda guerra seja necessariamente inspirada por intenção pecaminosa. Com efeito, pode acontecer que um pecado ou muitos pecados cometidos cá e lá no mundo se tornem ocasião para que uma nação tenha de empunhar as armas a fim de combater o alastramento e os efeitos moralmente daninhos de tais faltas. A guerra torna-se então o antídoto do pecado ou o único meio de coibir o pecado. Esta afirmação, por muito estranha que possa parecer, se justifica plenamente mediante a seguinte consideração: todo homem possui, por instituição natural, o direito de legitima defesa; o que quer dizer: a todo indivíduo é lícito usar de violência, desde que isto seja absolutamente necessário para salvar sua vida ou algum bem proporcional injustamente ameaçado ou lesado. Pois bem, o mesmo direito natural assiste a cada povo como tal. A cada povo, por conseguinte, é lícito (por vezes mesmo, obrigatório) recorrer à guerra a fim de repelir uma agressão injusta ou também a fim de obter a restauração de sua legitima liberdade violada. Se tal direito não existisse, tornar-se-ia impossível a vida social internacional; esta impõe, sem dúvida, como exigência suprema, que a injustiça seja coibida e que a devida ordem iniquamente violada seja restituída. É este raciocínio que leva a admitir haja guerras justas, isto é, ocasionadas, mas não causadas, pelo pecado (trata-se de campanhas deflagradas à margem do pecado, mas não movidas por intenção pecaminosa). Nas circunstâncias apontadas, a guerra dita justa vem a ser uma necessidade dura e cruel, um ato de violência legítima oposta à violência ilegítima.
S. Agostinho ilustra a atitude do cristão diante da guerra que se lhe apresente como justa:
O sábio, dirão, só toma parte em guerras justas. Mas, se ele tem consciência de que é homem, como não há de sofrer muito mais ainda por causa da necessidade que o constrange a tais guerras justas? Se não fossem justas, não tomaria parte nelas… É a injustiça do adversário que obriga o sábio a participar das guerras justas. A injustiça dos homens, poderia alguém deixar de a deplorar, mesmo que dela não se seguisse a necessidade de combater? Quem, portanto, considerando com pesar males tão grandes, tão hediondos, tão cruéis, não confessará que são uma miséria? Quem os experimenta ou simplesmente os considera sem dilaceração de ânimo, julgando-se ainda feliz, é ainda mais miserável, pois perdeu todo sentimento humano
(De civ. Dei XIX 7).
Frisemos agora explicitamente três condições que devem ser necessariamente preenchidas, para que uma guerra possa ser considerada justa:
O conflito armado há de ter como motivo e finalidade a defesa de direito gravemente violado ou a reparação da justa ordem de coisas burlada. Qualquer outro motivo seria incapaz de legitimar o recurso à violência militar; removam-se, pois, as razões de orgulho pátrio, expansão do poder nacional, ambição de domínio, interesse político, coibição da prosperidade alheia, etc. A toda campanha armada empreendida por tais motivos S. Agostinho atribui o título de «grande latrocínio» (De civ. Dei IV- 6).
É preciso não se possa salvar a justiça de outro modo que não pelas armas. Em outros termos: a guerra deve ser recurso extremo, só utilizado após haverem falhado por completo os meios pacíficos de solução.
São palavras de S.S. o Papa Pio XI a peregrinos espanhóis, proferidas aos 14 de setembro de 1937:
Meu Deus, a guerra é sempre, mesmo na menos triste das hipóteses, coisa tão terrível e desumana! É o homem que procura o homem para o matar, para matar o maior número de seus semelhantes, para prejudicar a eles e ao que a eles pertence, com meios cada vez mais possantes e mortíferos!
Papa Pio X
Ainda se poderia dizer: a guerra justa é a guerra moralmente inevitável por resultar do dilema: «ou guerra ou renegação da dignidade humana».
Requer-se, por fim, proporção entre os males (materiais e principalmente morais) que a guerra costuma acarretar, e a importância dos direitos que o conflito armado visa defender ou restaurar. Caso se preveja que a guerra será nociva às nações, sem que, mediante a obtenção de bens maiores, se compensem as respectivas desgraças, a prudência e a justiça mandam evitar tal guerra. Dados os enormes prejuízos, materiais e morais, que os conflitos armados nas circunstâncias da vida moderna provocam, requer-se, para empreendê-los legitimamente, ainda mais reflexão e contemporização do que outrora isto era necessário (equivalentemente: muito mais graves devem ser os direitos a ser defendidos pelos processos de guerra contemporâneos do que os direitos que em tempos passados eram defendidos pelas armas).
A observância dos três pré-requisitos acima não é fácil. Particularmente árduo é dizer-se até que ponto, em determinado litígio, algum legítimo direito está sendo violado;… até que ponto o amor à reta ordem das coisas, e não a paixão desregrada, move os contendentes. Um direito duvidoso ou moralmente incerto não poderá ser, em hipótese alguma, evocado para legitimar o apelo às armas; os direitos duvidosos poderão ser defendidos ou propugnados mediante o recurso à arbitragem.
Destas considerações se depreende quão difícil é, em casos concretos, definir se tal ou tal guerra é em si ou objetivamente justa. Subjetivamente, ou seja, para a consciência dos indivíduos, a guerra (que objetivamente só seria justa para uma das partes beligerantes) pode ser justa para os indivíduos de ambas as frentes, pois pode acontecer que o conflito seja apresentado a uns e outros de tal maneira que a todos pareçam cumprir-se os três pré-requisitos enunciados (suponha-se que os soldados e os cidadãos de cada uma das duas partes beligerantes sejam mal ou tendenciosamente informados sobre a situação política e internacional, de sorte a não poderem abarcar todos os motivos postos em jogo pelos homens que declararam a guerra). Uma vez entrando na campanha armada tida como justa, o cristão deverá sempre acautelar-se para que a sua reta intenção inicial não se desvirtue, cedendo aos impulsos do ódio e da vingança apaixonada.
De quanto acaba de ser dito também se percebe que a guerra legítima sempre visa restaurar a paz e o amor dentro da justiça; ela nada mais é do que a luta da ordem e da caridade contra aqueles que perturbam tais valores. À vista disto, entende-se que a Igreja possa benzer armas bélicas; certamente Ela não as abençoa, caso sejam declaradamente instrumentos do ódio e do morticínio apaixonado; visto, porém, que as armas podem ser promotoras e sustentáculo da ordem contra a prepotência da injustiça no mundo (e é somente neste sentido que o cristão as empunha), a Igreja roga a Deus queira realmente fazer dos instrumentos bélicos os órgãos da justiça e dos verdadeiros valores morais (infelizmente, sem a ameaça das armas seria por vezes vão esperar que os homens refreassem as suas paixões).
O pensamento da Igreja neste setor acha-se muito bem retratado na seguinte noticia publicada pela imprensa internacional:
Diante dos parentes dos que morreram na guerra, Sua Santidade o Papa João XXIII recordou a palavra do seu antecessor São Pio X, quando às vésperas da primeira guerra mundial lhe pediram abençoasse armas: ‘Bendigo a paz, não a guerra’, respondeu aquele Santo Pontífice. ‘Agora como então, disse João XXIII, continua em vigor esse lema de São Pio X e é necessário servir à causa da paz’.
Notícias Católicas, junho de 1959).
Pergunta-se agora se o reconhecimento da legitimidade de guerras dentro das cláusulas acima não representa traição à S. Escritura e, em particular, ao S. Evangelho.
Em resposta, dir-se-á que não: sem nos demorarmos na enumeração das múltiplas campanhas bélicas empreendidas pelo povo de Israel, em consequência de uma ordem do próprio Deus no Antigo Testamento (cf. Êx 17,11-16; Núm 21,3; 25,16s ; Dt 7,ls ; Jz 4,6-13), mencionaremos explicitamente a resistência armada que os irmãos Macabeus opuseram aos invasores sírios, quando estes quiseram reduzir o povo de Israel às condições de corrupção moral e degradação religiosa dos pagãos; a campanha dos Macabeus, inspirada pelo amor à verdadeira fé, mereceu os mais calorosos encômios dos autores sagrados que a descrevem no 1º e no 2º livros dos Macabeus.
No Novo Testamento, São João Batista, ao pregar penitência aos soldados romanos, não lhes mandava abandonassem a carreira militar, mas apenas recomendava não cometessem injustiça e se contentassem com o seu salário (cf. Lc 3,14). O próprio Jesus louvou a fé do centurião, oficial romano, sem exigir que mudasse de profissão (cf. Mt 8,8-13). Também o centurião Cornélio, no livro dos Atos, foi elogiado por S. Lucas, sem que a sua condição militar criasse obstáculo a isto (cf. At 10,2). Por fim, note-se como a epístola aos Hebreus apresenta as vitórias que os guerreiros de Israel obtiveram, qual recompensa outorgada pelo próprio Deus à fé desses justos (cf. Hebr 11,32-34).
Não obstante, há quem ainda hesite, tendo em vista outros textos da S. Escritura, como
as palavras de Jesus em Mt 5,39: «Eu vos digo : não resistais ao malvado; ao contrário, se alguém te bater na face direita. apresenta-lhe a outra».
Observe-se que, em se tratando de guerra, este texto vem fora de propósito, pois visa o caso da defesa pessoal, individual, e não o da defesa dos direitos de um povo ameaçados pelos iníquos propósitos de outro. A exegese da passagem acima é explanada em «P. R.» 3/1958, qu. 10.
Algo de semelhante se deverá dizer das admoestações de São Paulo:
«Não pagueis o mal com o mal… Está escrito: ‘A Mim compete a vingança ; hei de retribuir, diz o Senhor’» (Rom 12,17.19).
A proibição visa a vingança empreendida por um indivíduo contra os seus adversários; o contexto mostra que não tem em vista o caso da autoridade pública e legitima, à qual, como reconhece o próprio S. Paulo em Rom 13,4, toca a incumbência (atribuída pelo próprio Deus) de reprimir os inimigos da sociedade e do bem comum. Ensina o Apóstolo: “Não é sem motivo que (a autoridade) traz a espada; é ministro de Deus para impor sanção aos que praticam o mal e para os punir” (Rom 13,4). Ora, essa sua atribuição de defender os direitos dos súditos, os Chefes de Estado a devem preencher coibindo não somente os inimigos de dentro da pátria, mas também os de fora ou as nações estrangeiras.
Jesus, na véspera de sua morte, não permitiu que Pedro usasse da espada para defender o Divino Mestre, porque «todo aquele que se serve da espada perecerá pela espada» (Mt 26,52; cf. Jo 18,11).
Estas palavras de Cristo são claramente norteadas pelas circunstâncias em que foram proferidas: Jesus, que queria oferecer-se como vitima pelos pecados do mundo (cf. Is 53,7), não podia deixar que os Apóstolos recorressem a algum meio de resistência no momento da entrega aos adversários; daí a proibição feita a Pedro. O princípio geral acrescentado pelo Senhor («todo aquele que se serve…») visa os homens que, sem autoridade própria nem encargo superior, ousem recorrer às armas para propugnar seus interesses (cf. S. Tomaz, S. Teol. II/II 40, 1 ad 1).
Citam-se outrossim textos dos Profetas como:
Os homens transformarão suas espadas em relhas de arado e as suas lanças em foices. Uma nação não levantará mais a espada contra outra, e ninguém aprenderá mais a guerra.
Is 2,4 ; cf. 11, 13s ; Miq 4,3
Tais oráculos não fazem senão exprimir a realidade das coisas no reino messiânico consumado. A guerra, como foi dito atrás, supõe o pecado, a tal ponto que, enquanto houver pecado no mundo, também haverá guerras. É claro, porém, que tal estado de coisas desaparecerá quando a Redenção tiver atingido o seu termo derradeiro no fim dos tempos; então os corpos humanos ressuscitarão e a morte, consequência do pecado, será definitivamente cancelada… É o que o profeta descreve em linguagem metafórica, afirmando que as armas de guerra e morte (espada e lança) serão transformadas em instrumentos de paz e vida (arados e foices).
Tais são as concepções da Igreja a respeito da guerra. Esta, para um católico, é sem dúvida um mal tremendo, mal que os homens acarretaram sobre si em consequência do primeiro pecado, e que Deus se digna permitir atualmente, como permite as outras consequências do pecado, em vista da emenda das suas criaturas. A guerra não é somente obra da justiça, mas ainda foi englobada dentro do plano da Misericórdia Divina, pois ela pode ter em alguns casos (casos extremos) um valor de redenção!