Circunstâncias de origem do Apocalipse
No fim do séc. I tornava-se cada vez mais penosa a situação dos cristãos disseminados no Império Romano.
Em verdade, o Senhor Jesus deixou este mundo, intimando aos discípulos aguardassem a sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite (cf. Mt 24,43; 1 Tes 5,2s); vigiassem, pois, e orassem em santa expectativa. Todavia, apesar da sobriedade das palavras de Jesus, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos Apóstolos mesmos. À medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que Cristo havia esquecido a sua Igreja e que vão era crer no Evangelho.
A situação se tornara ainda mais angustiosa desde que Nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os cristãos. «Ser discípulo de Cristo» equivalia, daquela ocasião em diante, a ser tido como «inimigo do gênero humano»; manifestava-se cada vez mais a oposição entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, de modo que, vivendo em plena sociedade pagã, os cristãos tinham não raro que se abster das festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, até mesmo de certas profissões e ramos de negócio (pois através de todos esses meios se exprimia a mentalidade politeísta e supersticiosa reinante).
Em particular, na Ásia Menor o ambiente era carregado de maus presságios: lá ia tomando proporções cada vez mais avultadas o culto dos Imperadores, a ponto de se tornar a pedra de toque da fidelidade de um cidadão romano á pátria.
Desde 195 a. C. a cidade de Esmirna possuía um templo consagrado à deusa Roma; em 26 d. C. os esmirnenses ergueram outro santuário em honra de Tibério, Livio e do Senado.
Em Pérgamo, desde 29 a. C. fora instituído o culto do Imperador.
A cidade de Éfeso, nos inícios do reinado de Augusto, construíra um altar dedicado a este soberano no recinto do «Artemision» ou templo de Diana.
Os habitantes da Ásia Menor eram especialmente inclinados a tal forma de culto, pois se sentiam altamente beneficiados pelos governantes de Roma que haviam posto termo às guerras civis na região, assegurando à população prosperidade na indústria, no comércio e na cultura em geral.
Ademais, outro perigo para o Cristianismo se fazia notar na Ásia Menor em fins do séc. I. A gente dessa região era dotada de exuberante alma religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do Império e ao Cristianismo, mas também a formas de culto ditas «dos mistérios» (de Mitra, Cibele, Apolo…), recém trazidas do Oriente. Tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por suas promessas de divinização.
Esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: na Ásia Menor uma religião que, como o Cristianismo, professasse rigorosamente um Deus único e transcendente manifestado por um só Salvador, Jesus, devia necessàriamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo de Cristo, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não cristãos de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé.
A situação sugeria a não poucos discípulos de Jesus ou a apostasia em relação ao Divino Mestre ou uma espécie de pacto com as ideias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava).
Foi em tais circunstâncias sombrias que São João quis escrever o Apocalipse.
A finalidade do livro torna-se assim evidente.
O autor sagrado visava, acima de tudo, alentar nos seus fiéis a coragem depauperada; o Apocalipse, em consequência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no Senhor Jesus e nas suas promessas de vitória.
Pergunta-se então: como terá São João procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? Haverá, em nome de Deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa da fidelidade a Cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa do Senhor Jesus viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal (economia feliz, saúde, sucesso nos empreendimentos…)?
É o que nos propomos examinar nos incisos abaixo, percorrendo os diversos sistemas de interpretação do Apocalipse até hoje formulados. Começaremos pelos que menos crédito merecem, a fim de terminar na explanação da genuína mensagem do livro.
Como tem sido interpretado o Apocalipse?
Em geral, os exegetas concordam entre si ao admitir que o Apóstolo quis prometer a vitória final do Bem sobre o mal, dos justos sobre as maquinações dos pecadores, de Cristo sobre o Anticristo .. Divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o Apóstolo terá situado essa vitória. As diversas teorias se agrupam sob os títulos abaixo:
1) Sistema dito escatológico» (ou do fim dos tempos);
2) Sistema da história antiga (contemporânea a São João);
3) Sistema da história universal;
4) Sistema da «recapitulação».
Vejamos algo de cada um desses métodos de interpretação.
Sistema escatológico.
Os mais antigos intérpretes julgavam que o Apocalipse se referia a acontecimentos futuros ou, mais precisamente, aos acontecimentos do fim dos tempos e da consumação do mundo (perseguições e calamidades, apostasias, aparecimento do Anticristo, ressurreição dos mortos e juízo final…); o livro mostraria como a história acabará com o triunfo do reino de Deus sobre o pecado. Sendo assim, não tinham a preocupação de relacionar os quadros do Apocalipse com episódios e personalidades dos primeiros tempos da era cristã.
Este método de interpretação foi perdendo sua voga. Esteve mais ou menos abandonado durante a Idade Média. É, porém, de novo prestigiado do séc. XVI aos nossos dias. Não poucos intérpretes modernos têm por certo que as calamidades, as guerras e as perseguições anunciadas pelo Apocalipse se cumprirão ao pé da letra na última quadra da história.
Em consequência deste principio, o comentador espanhol Ribeira S. J. (1591), que está à frente de tal corrente entre os exegetas modernos, não hesita em dar sentido literal, por exemplo, às cifras de 3 1/2 anos, 42 meses e 1260 dias ocorrentes no livro; julga que o Apocalipse se compõe essencialmente de duas partes: a primeira, até o c. 11, descreveria as calamidades finais anteriores ao reino do Anticristo; a outra, do c. 12 ao c. 19, prediria o reino do Anticristo e as perseguições que este há de desencadear. Por fim, os cc. 20-22 apresentariam a consumação, isto é, os últimos embates de Satanás contra Cristo, o triunfo do Senhor, a renovação do céu. da terra e da cidade de Jerusalém. Cf. «Commentarius in sacram beati Ioannis Apocalypsin». Salamanca 1591.
Destarte o último livro da Sagrada Escritura corresponderia ao primeiro: como o Gênesis narra a origem das coisas, assim o Apocalipse descreveria a sua consumação.
Não seria necessário lembrar que principalmente as seitas «bíblicas» atuais, portadoras de profecias sobre a iminência do fim do mundo, exploram o sistema escatológico de exegese do Apocalipse, como se este livro descrevesse o que se está dando em nossos dias e o que em breve se dará…
Feitas estas observações, pergunta-se: como então julgar tal método de interpretação?
Evidentemente o autor sagrado tem em mira levar aos seus leitores uma mensagem de grande esperança referente ao fim dos tempos. Contudo é preciso reconhecer que não afirmou a sua tese sem guardar contato com a história de sua época; ele quis, sim, aludir a personagens e acontecimentos contemporâneos aos seus leitores (o Imperador Nero, a cidade de Roma, as invasões de bárbaros no Império. ..) a fim de se tornar ainda mais claro e persuasivo a esses leitores.
Por isto o sistema meramente escatológico deve ser tido como insuficiente para traduzir toda a mensagem do Apocalipse.
Ora justamente levando em conta as alusões de São João à história antiga, úma corrente de exegetas, também a parte do séc. XVI, encabeçada por Henten O.P. (1547), professor da Faculdade de Louvain (Bélgica), começou a propor outro método de interpretação, que seria o
Sistema da história antiga.
Constitui quase a antítese do precedente, pois supõe que São João descreva os acontecimentos não do fim, mas do início da história da Igreja ou, mais precisamente, a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos de Cristo, luta que terminou com a queda da Roma pagã e o triunfo do Cristianismo; assim o ciclo da história considerada pelo Apocalipse encerrar-se-ia nos séc. TV/V.
A título de ilustração, vai aqui reproduzida a exegese que nos oferece o famoso Bossuet (L’Apocalypse avec une explication. Parts 1689), um dos mais significativos representantes do sistema da historia antiga:
Conforme esse autor, o Apocalipse, em sua parte central (4,1-20,15), compreenderia profecias assim distribuídas:
a) 4,1-8,12 —A punição do povo Judaico.
Preparação do castigo na visão dos sete selos (6,1-8,1);
Execução do castigo sob Trajano (98-117) e Adriano (117138) Imperadores, simbolizada pelas duas primeiras trombetas (8,7-9);
Manifestação dos motivos do castigo, através da terceira e da quarta trombetas (8,10-12).
b) 9,1-12 — As heresias oriundas do judaísmo (seriam os gafanhotos anunciados pela quinta trombeta).
c) 9,13-20,15 — A ruína do Império Romano.
A queda do Imperador Valeriano (253-260), proclamada pela sexta trombeta (9,13-21);
Na visão da sétima trombeta, São João denuncia a causa da ruína do Império: são as perseguições movidas contra os cristãos (11,15-18);
A mais veemente dessas perseguições se deve ao Imperador Dioclesiano (284-305), que, conforme Bossuet, é a besta caracterizada pelo número 666 (13,18), número que Bossuet assim reconstitui:
DI o CL es a V g V st V s
501 + 150 + 5 + 5 + 5 = 666
A decadência final do Império desde Valeriano (+260) até o invasor godo Alarico (410), simbolizada pelas sete taças (15,6-16,21).
Como se vê, a exegese de Bossuet, descendo a pormenores demasiado precisos, não pode evitar arbitrariedades mais ou menos fantasistas. Exerceu, porém, grande influência sobre comentadores subsequentes.
O critico francês E. Renan {L’Antéchrist. Paris 1871) desenvolveu ainda com mais minúcias tal tipo de exegese. Assim o texto de 6,6 aludiria à carestia de víveres verificada no ano do 69; 8,7 referir-se-ia a tempestades registradas nos anos de 67, 68 e 69; em 8,8 a montanha incandescente significaria a ilha vulcânica de Tera; 8, 10 indicaria um meteoro cuja queda sobre a terra foi relacionada com a infecção de algum reservatório de águas; 8, 12 aludiria a eclipses ou a um tremendo temporal ocorrido a 10 de janeiro de 69; em 9,2 o poço do Abismo seria .talvez a «solfatara» de Pozzuoli; no c. 11 as duas testemunhas seriam personagens importantes da comunidade de Jerusalém…!
Muitas outras tentativas de minúcias exegéticas se poderiam ainda referir aqui. Dado, porém, o seu caráter ora mais, ora menos arbitrário, a enumeração teria pouco interesse. Por isto, passamos imediatamente à consideração do
Sistema da história universal.
Foi na Idade Média que este método começou a ser apregoado. O Apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, tuna visão-completa de toda a história do Cristianismo: descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo. Como se compreende, múltiplas são as modalidades desse tipo de interpretação… Eis uma ou outra das mais características:
Conforme o primeiro arauto da corrente, o Abade Joaquim de Fiore (+1201) o Apocalipse abrange sete visões… Estas correspondem aos sete estados dos fiéis que vêm sucessivamente marcando a história da Igreja: os Apóstolos, que fundaram as primeiras comunidades cristãs; os mártires, que com o seu sangue confirmaram a vida cristã durante os três primeiros séculos; os doutores, que iluminaram a Igreja com os seus ensinamentos, nos séc. IV/V ; os eremitas, que por suas virtudes edificaram a Igreja; as virgens, que a ornamentaram; os Pontífices, que a governaram sabiamente; os santos, que por suas palavras e seus exemplos têm reerguido o ânimo de seus irmãos na fé.
Como se percebe, assaz vaga e arbitrária é essa sucessão de estados e épocas.
Em plena Idade Média, Nicolau de Lira (+1340) dava nova formulação à exegese de Joaquim de Fiore: os sete selos do Apocalipse representariam o período da história que vai desde Cristo até Juliano o Apóstata (“361-363); as sete trombetas corresponderiam à época desde Juliano até Maomé (+ 632); as sete taças abrangeriam os séculos desde Carlos Magno (800-814) até Henrique IV da Alemanha (1056-1106). O fim do mundo não estaria longe da época em que vivia Nicolau (séc. XIV).
Eis outros pormenores sugeridos por este exegeta: a medição do templo e do altar em Apc 11,1 significaria a instituição da festa da dedicação das igrejas por iniciativa do Papa Félix; a abertura do Templo celeste em Apc 11,19 designaria a instituição da festa da Purificação de Maria; as duas testemunhas de Apc 11 seriam o Patriarca Menas de Constantinopla e o Papa Silvério (536-537); a mulher do c 12 seria a igreja de Jerusalém atormentada por Cósroas, rei dos persas o qual em 605 devastou as terras católicas, principalmente Jerusalém; o filho gerado por essa. mulher simbolizaria o Imperador Heráclio (610-641), muito amigo da Igreja; o encarceramento de Satanás em 20,1-3 coincidiria com a fundação da Ordem dos Frades Pregadores (Dominicanos) !
Comentários a esse comentário seriam supérfluos!
Entre os contemporâneos, tal método exegético tem encontrado porta-vozes ardorosos.
Haja vista, por exemplo, J. du Plessis, professor de Direito nas Faculdades de Angers, que em 1937 publicou dois tomos intitulados «Les derniers temps d’après l’histoire et la prophetie».- Conforme este autor, as sete cartas iniciais do Apocalipse (cc. 2-3) descrevem sete fases da história da Igreja; os sete selos representam sete etapas que a Igreja deve percorrer; as sete trombetas são sete tremendas provações que Ela há de padecer; as sete taças são sete castigos infligidos aos inimigos de Deus aqui na terra. — Quanto às cartas, du Plessis as interpreta a partir da etimologia do nome dos respectivos destinatários; assim …
– a carta a Éfeso (2,1-7), cidade do mandato ou envio («ephíemi», envio, em grego), corresponde à época dos Apóstolos («apóstolos» significa «enviado» em grego), ou seja, ao primeiro século da era cristã;
– a carta a Esmirna (2,8-11), cidade da mirra («smyrne», em grego), corresponde à época dos mártires (até o início do séc. IV) ;
– a carta a Pérgamo (2,12-17), cidade do pergaminho, corresponde ao período dos grandes doutores ou Padres da Igreja (até meados do séc. V);
– a carta a Tiatira (2,18-29), cidade do sacrifício perpétuo («thyo», sacrifico; «ateirés», incessante), corresponde ao período de colaboração do Sacerdócio e do Império (Alta Idade Média) ;
– a carta a Sardes (3,1-6), cidade da purificarão («saro», varrer, limpar), corresponde à época da renovação tridentina (séc. XVI);
– a carta a Filadélfia (3,7-13), cidade da fraternidade humana («phílos», amigo; «adelphós», irmão), corresponde à época da grande atividade social e missionária da Igreja (época moderna) ;
– a carta a Laodicéia (3,14-22), cidade do julgamento dos povos («laós», povo; «dike», justiça) corresponde à época do juízo final.
Sem ulteriores observações…
Também assaz curiosa é a interpretação das sete cartas iniciais proposta por L. Poirier («Les sept Eglises ou le premier septénaire prophétique de l’Apocalypse». Montréal 1943): levando em conta as promessas formuladas no fim de cada uma das cartas, o autor as relaciona com os episódios sucessivos da história do Antigo Testamento, de um lado, e com os da história da Igreja, do outro lado. Assim
– a carta a Éfeso, prometendo o fruto da árvore da vida (2,7), aludiria, de um lado, ao paraíso inicial do Antigo Testamento e, de outro lado, aos primórdios da história da Igreja;
– a carta a Esmirna, prometendo a isenção da segunda morte (2,11), referir-se Ja ao cativeiro de Israel no Egito, de um lado, e, do outro lado, às perseguições que flagelaram os três primeiros séculos da Igreja;
– a carta a Pérgamo, prometendo o maná e aludindo ao episódio de Balaa (2,14-17), relacionar-se-ia com o êxodo do Egito e a conquista de Canaã, de um lado, e, de outro lado, com a época das grandes lutas doutrinárias contra as heresias (séc. IV-VII);
– a carta a Tiatira, prometendo o cetro de ferro que despedaça as nações (2,27), aludiria aos reinados de Davi e Salomão, de um lado, assim como ao feliz período da Idade Média em que o Império procurava colaborar com o Sacerdócio’ na construção de uma grande «Cidade de Deus»; .
– a carta a Sardes, acenando a uma divisão (em 3,4 refere-se a justos que trajam vestes alvas, em oposição a fiéis que mancharam seus trajes), aludiria ao cisma das dez tribos no Antigo Testamento e S época moderna caracterizada pelo espírito de revolta dos homens contra Deus;
– a carta a Filadélfia, citando a coluna e o templo (3,12), faria menção do santuário de Jerusalém destruído pelos babilônios e restaurado após o exílio (séc. VI-V a. C.) ; do outro lado, evocaria a perseguição a ser desencadeada pelo Anticristo no fim dos tempos;
a carta a Laodicéia, prometendo um trono (3,21), aludiria à dinastia dos Asmoneus no Antigo Testamento e à vinda gloriosa de Cristo no fim dos tempos.
Outro espécime desse método exegético, espécime que manifesta em grau máximo o seu caráter arbitrário e vão, é a tese de Athon Bileham (pseudônimo que significa «mulo de Balaã) », editada em Quito (Rep. do Equador) no ano de 1955, com o título «Visiones dei Apocalypsis. Agonia y Triunfo de la Iglesia Católica en un proximo porvenir». O autor relaciona os sete selos com os sete sacramentos, as sete trombetas com sete apóstolos, as sete taças com sete profetas e as sete cartas iniciais com sete nações da história atual discriminadas na seguinte ordem: França,. Espanha, Itália, Inglaterra, Bizâncio, América espanhola, Áustria. A comunidade de Filadélfia, por não ser repreendida na respectiva carta, representaria a América espanhola e, mais precisamente, a capital do Equador, pátria do autor da tese. Assim, já «muito antes de Cristóvão Colombo, São João teria descoberto a América!» (A. Feuillet, em «L’Ami du Clergé», 27 de abril de 1961, pág. 262).
Estas amostras de exegese já são suficientes para evidenciar quanto é arbitrário e improvável o sistema de interpretação do Apocalipse dito «da história universal». Cada comentador que o adota, julga estar vivendo na última fase da história; em consequência, o sistema tem que ser remodelado de século para século, a fim de que a época calamitosa em que se acha o respectivo comentador possa ser a que precede imediatamente o fim do mundo.
Após esta rápida visão de panorama, parece chegado o momento de expor o sistema que melhor traduz a mensagem do Apocalipse.
O sistema da recapitulação
1. Ao contrário do que se dá com os dois anteriores, este sistema é (assim como o primeiro) tradicional na história da exegese do Apocalipse.
Parte da observação de que o número 7 dá a nota predominante ou a estrutura ao livro do Apocalipse (7 selos, de 6,1 a 8,1; 7 trombetas, de 8,2 a 11,15; 7 taças, de 15,6 a 16,21). Ora, pergunta-se, uma estrutura tão artificiosamente construída poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? Não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de um espírito que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana?
Baseados nesta consideração, os exegetas adeptos da «recapitulação» asseveram que o autor sagrado não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do Cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando constantemente por detrás dos episódios visíveis da história. Em outros termos: o Apocalipse apresenta (sob forma de símbolos) a luta entre Cristo e Satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. Cada setenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é consequentemente uma peça literária completa em si mesma; o número 7, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos (note-se, por exemplo, que em Apc 11,15-18 o toque da sétima trombeta assinala o juízo final do gênero humano e o triunfo definitivo do reino de Deus; não obstante, o livro continua e a história recomeça no c. 12, com a luta da Mulher contra o Dragão). Apenas na parte final do livro (cc. 21s) São João terá introduzido algo de novo em suas descrições, isto é, o triunfo definitivo do reino de Cristo sobre o de Satanás, triunfo que implicará em ressurreição dos corpos e renovação da natureza material que nos cerca.
Como se vê, segundo esse sistema, o setenário das cartas iniciais (cc. 2-3) constitui um todo independente do corpo do livro (cc. 4-22); é um exame de consciência redigido para as comunidades cristãs da Ásia Menor existentes no fim do séc. I; tal exame de consciência não trata do ritmo da história posterior, como fazem os setenários seguintes.
Por conseguinte, as calamidades que o Apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que o autor sagrado intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena paz e segurança no céu, conforme o Apocalipse). Justapondo aflições (na terra) e alegria (no céu), São João queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a Sabedoria de Deus; foram cuidadosamente previstas pelo Senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. Em consequência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os cristãos se deveriam lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso; as calamidades, portanto, sob as quais os cristãos do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar; constituíam como que o lado avesso e inferior de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos.
Eis a forma de consolo que o autor sagrado queria incutir aos seus leitores (não só do séc. I, mas de todos os tempos da história): os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, invisível aos olhos da carne (mas perceptível aos olhos da fé), a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do Bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do Cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas (cf. c. 5).
No céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra; antes, continuam a cantar jubilosamente a Deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. Pois bem, quer dizer São João, essa mesma paz e tranquilidade deve tornar-se a partilha também dos cristãos na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem em suas almas a eternidade e o céu sob forma de gérmen (o gérmen da graça santificante, que é a semente da glória celeste).
Assim o Apocalipse oferece uma imagem do que é a vida do cristão ou, mais amplamente, a vida da Igreja: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu. do tempo e da eternidade. Na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva; este aspecto, porém, está longe de ser essencial; no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranquila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo mesmo que os cristãos possuem na terra em gérmen.
2. Dentro desta perspectiva deverão ser considerados os números que parecem indicar períodos de tempo no Apocalipse (3 1/2 anos, 42 meses, 1260 dias, ocorrentes por exemplo no c. 11; 1000 anos, no c. 20). Não designam duração cronológica, mas são portadores de mensagem doutrinária religiosa.
Com efeito, 3 1/2 anos, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si; correspondem à metade de 7 anos. Ora, sendo 7 o símbolo da totalidade, da perfeição e, por conseguinte, da bonança, a metade de 7 vem a ser o símbolo do inacabamento e da dor. Portanto, 3 1/2 anos (e as expressões equivalentes em meses e dias) no Apocalipse designam toda a história da Igreja na medida em que é algo de ainda não rematado ou na medida em que é luta penosa entre a primeira e a segunda vinda de Cristo.
Mil anos, ao contrário (que em Apc 20, 1-6 caracterizam o remado de Cristo na terra), designam essa mesma história da Igreja na medida em que é luta vitoriosa («mil» é um símbolo de plenitude, de perfeição; «mil felicidades», na linguagem popular, são «todas as felicidades»). Pela Redenção na Cruz, Cristo venceu o Príncipe deste mundo (cf. Jo 12,31), tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (S. Agostinho). É justamente esta a situação do Maligno na época que vai da primeira à segunda vinda de Cristo ou no decurso da história do Cristianismo; por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no 20′ século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra.
Assim se vê quanto seria contrário à mentalidade do autor sagrado tomar ao pé da letra os mil anos do c. 20 e admitir um reino milenário de Cristo visível na terra após o currículo da história atual.
Quanto à ressurreição primeira e à ressurreição segunda que, conforme São João, constituem respectivamente o termo inicial e o termo final desse milênio, não são duas ressurreições dos corpos. Faz-se mister entender essas expressões à luz de textos paralelos dos escritos joaneus, e, em particular, à luz de Jo 5,24-29, onde Jesus declara:
«Em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra. .. passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão. Não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. Os que praticaram o bem, sairão para a ressurreição da vida; os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo».
Nesse trecho, o Senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá «agora» («e Já veio»), no tempo presente, quando ressoa a pregação da Boa-Nova; é espiritual, devida ao Batismo; equivale à passagem do pecado original para a vida da graça santificante. A outra é simplesmente futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem beneficiados pela vida nova agora latente nas almas.
Por conseguinte, no Apc a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá no batismo de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. A ressurreição segunda é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando Cristo vier em sua glória para julgar todos os homens e pôr termo definitivo à história.
3. O sistema da recapitulação assim proposto merece francamente ser preferido aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo do autor sagrado São João; este, também no seu Evangelho, recorre às repetições ou ao estilo de recapitulação em espiral (cf. E. Bettencourt, Para entender os Evangelhos, c. IX).
4. Contudo ninguém negará as alusões do Apocalipse a personagens da história antiga (Nero, a invasão dos bárbaros, Roma, Babilônia…). Mediante essas referências, São João não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da antiguidade, mas apenas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da Igreja: assim Nero vem a ser o tipo dos soberanos políticos que persigam a Igreja em qualquer época (há muitas reproduções de Nero através da história). Por isto também o número 666 da besta do Apocalipse, adversária dos cristãos, equivale (segundo a interpretação mais provável) à expressão Kaisar Neron (Imperador Nero); a besta do Apocalipse acompanha toda a história da Igreja, como «Nero» a acompanha, porque até o fim dos tempos haverá perseguições ao Cristianismo desencadeadas pelos poderes políticos deste mundo (cf. «P.R.» 4/1958, qu. 6).
Roma e Babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de Cristo para o pecado. — A luta a que São João assistiu, entre Roma pagã e a Igreja, é evocada no Apocalipse não por causa dessa luta mesma, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e Cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória do Senhor Jesus.
5. Estas considerações concorrem outrossim para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, «discos voadores») nos quadros do Apocalipse. Estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de facetas.
A sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam, estão sujeitas ao sábio plano da Providência Divina, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que amam a Deus (cf. Rom 8, 28); não se perturbem, portanto, os justos, mas, antes, procurem revigorar-se na intimidade com Deus, intimidade que é o antegozo do céu sobre a terra.