Confissões de um ex-protestante

Uma das lições mais importantes que aprendi nos últimos anos foi a de ler as Sagradas Escrituras como quem quer ouvir Deus que fala na intimidade do coração. Todas as vezes que abro a Bíblia, faço-o na Fé de Cristo está ali presente tentando me comunicar o que me é necessário naquele momento, e sei que se meditar com diligência ouvirei essa doce voz que me pede mudança de vida.

Um das coisas que me deixa aflito quando leio a Bíblia é a incredulidade dos judeus. Sabemos a história de cor e salteado: Cristo veio ao mundo fazendo só o bem, mas as pessoas não creram nele. 

O que me deixa aflito é saber que Cristo dirige aquelas palavras para mim. Quando Cristo diz “homem de pouca Fé”, é para mim que está dizendo. É fácil julgar São Pedro pensando: “Como pôde ele ter duvidado quando Cristo lhe disse que descesse da barca e fosse andando até ele por cima das águas?”. A verdade é que eu também fraquejaria na confiança.

Por vezes é bom tentar compreender a perspectiva dos incrédulos daquele tempo. Esse exercício que pode parecer perigoso é na verdade benéfico. O Espírito Santo inspirou as Escrituras justamente para que tomássemos conhecimento daquilo que Cristo quer dizer a nós, aqui e agora. É por isso que temos que tomar como dirigidas a nós todas as advertências que Cristo deu aos seus discípulos, ao povo que o ouvia e até mesmo aos seus inimigos. 

Fazer isso é também um exercício de humildade, pois por ele se adquire a consciência de que a Fé sempre foi e sempre será um desafio. Hoje olhamos para trás e vemos, após dois mil anos, que Cristo falou a verdade. Acontece que naquele tempo, era necessária uma confiança muito mais irrestrita. É só por um milagre do Espírito Santo que os discípulos creram e que os primeiros cristãos acreditaram no anúncio dos apóstolos.

Penso muito em meu tempo de protestante, e hoje vejo como eu era um verdadeiro incrédulo. Eu não conseguia ver o que estava debaixo do meu nariz! As Sagradas Escrituras dizem que a causa da incredulidade é o pecado, pois quem vive no erro não se aproxima da verdade para que ela não denuncie que procede erroneamente (Jo 3, 20). Isso é verdade, pois o pecado é a causa de todo o mal. 

No entanto, a análise é mais complexa quando verificamos as causas imediatas da descrença. Muitos não creram em Jesus porque não encontravam em sua história o que os profetas disseram a respeito do Messias. Os Evangelhos relatam que as pessoas indagavam como poderia ser Jesus o Messias se estava escrito que este viria de Belém, ao passo que Jesus vinha da Galiléia. O entendimento era correto, pois de fato o Messias viria de Belém. Eles apenas não sabiam que Jesus nasceu em Belém. 

Outro obstáculo muito difícil para eles era o fato de Cristo afirmar a própria divindade. Os Evangelhos relatam que algumas vezes os judeus tentaram matá-lo antes do tempo por conta disso. Chegaram até a pegar em pedras para levar a cabo o intento, e isso sem qualquer julgamento, tamanho o ódio que aquela afirmação despertava em seus corações. Era muito difícil para os judeus aceitarem a idéia de um homem divino. Para eles, Cristo blasmefava quando se passava por Deus, e eram idólatras todos aqueles que lhe prestavam culto. 

Quando eu era protestante, poderia responder a essas objeções tranquilamente, mas não posso dizer o mesmo de várias outras, como aquela que se sucede à fala de Jesus sobre a Eucaristia no capítulo 6 do Evangelho de São João. Eu, tal como os discípulos que abandonaram Cristo naquele momento, considerava aquele discurso muito duro, e apelava para a interpretação alegórica. Afinal, “como pode um homem nos dar de comer a sua própria carne” (Jo 6, 52)? Eu não conseguia perceber que Jesus Cristo não fez caso de explicar nada, deixando com que muitos discípulos o abandonassem. Eu não podia ver que isso contrariava o método pedagógico de Cristo. Nosso Senhor sabia que aquelas homens eram ignorantes e quase incapazes de entender uma metáfora. Com efeito, o Senhor várias vezes explicou aos discípulos quando algo ficava mal entendido, dizendo-lhes em que consistia as metáforas que estava usando (Mt 6, 7). Mas dessa vez Cristo não explicou nada e deixou todos debandarem. A coisa era tão literal e séria para Jesus que ele desafiou os discípulos sem dó nem piedade: “quereis também retirar-vos?” (Jo 6, 67). É evidente que não se trata de uma figura de linguagem. Mas também eu não podia com esse discurso tão duro.

Há alguns dias eu estava lendo o capítulo 5 do Evangelho de São João e acabei por me deparar com uma dessas passagens que me fazem ficar perplexo com a minha própria ignorância. 

A história começa com Jesus curando um enfermo na piscina de Betesda em um dia de sábado. Jesus ordenou que ele tomasse o leito e caminhasse. O homem, que estava enfermo há trinta e oito anos, sendo provavelmente um coxo ou paralítico, levantou-se imediatamente e saiu a caminhar carregando seu leito. Os judeus repreenderam o pobre homem porque carregar o leito era trabalho proibido no sábado. O homem então deu testemunho de Jesus, dizendo que aquele que o havia curado havia lhe dito que carregasse também o leito. Os judeus, tendo questionado Jesus por que fazia o que era proibido no sábado, receberam a seguinte resposta:

Meu Pai continua trabalhando e eu também trabalho.

(v. 17)

Os judeus ficaram indignados porque entenderam bem o recado. Aquele homem estava dizendo que possuía os mesmos direitos que Deus. Para possuir os mesmos direitos de Deus, deve a pessoa ser divina. Quando Jesus diz de si mesmo ser o Filho de Deus, está dizendo justamente que partilha da natureza divina. Um simples raciocínio prova isso: o filho da pata é um pato, o filho da gata é um gato, o filho da mulher é um ser humano, e o filho de Deus é Deus. A natureza é a mesma. Mas Deus só há um, como dizem as Escrituras, pelo que entenderam os judeus (e acertadamente, diga-se de passagem) que Jesus Cristo estava dizendo:

Eu sou um ser divino. Portanto, possuo as mesmas prerrogativas de Deus.

É por isso que ao ouvir isso o evangelista relata:

Por esse motivo os judeus, com mais empenho, tentavam matá-lo, porque não só violava o sábado, mas além disso chamava a Deus de seu pai, igualando-se a Deus (v. 18).

Alguns podem objetar que aceitam que o filho da pata é um pato, mas que o patinho não é a pata. Essa objeção tem a sua razão de ser. Ocorre que no dogma da Santíssima Trindade a pessoa do Filho é totalmente distinta da do Pai. O que por eles é compartilhado é a essência. Como só há uma única essência divina, e essa necessidade pode ser verificada racionalmente, compreendemos (ainda que muito imperfeitamente) como pode haver unidade na Trindade. Mas deixemos esse assunto de lado e continuemos a história.

Como não cressem nisso, Jesus começou a falar sobre sua autoridade e poder, e depois deu provas do que disse apelando aos testemunhos.

Jesus inicia apelando à lei de Moisés, dizendo que se desse testemunho em favor de si mesmo, seu testemunho não seria válido (v. 31). A lei disciplinava a prova testemunhal dentro dos processos judiciais, e nesse ponto era brilhantemente pedagógica (como é próprio de Deus), porque o testemunho é a base de todo e qualquer conhecimento.

Aí entra outra ignorância que eu tinha naqueles tempos. Baseado na passagem que diz que em Deus não há mudança (Tg 1, 17), eu não podia compreender como determinados mandamentos da lei não eram mais seguidos, ao passo que outros ainda eram. Entendia que se o próprio Jesus se colocou sob o jugo da lei, era correto que nós fizéssemos o mesmo, porque a lei é santa (Rm 7, 12). Confesso que na época cheguei até a conjectura a hipótese de que os adventistas estavam certos, mesmo sendo eu pentecostal. 

Eu estava errado. Jesus disse aquilo por causa da fraqueza daqueles corações. Deus, apesar de ser imutável, sempre se dispõe a usar o remédio adequado à ferida, de modo que por vezes, em vista da dureza do coração do homem, dá a ele o que é necessário para que salve, ainda que aquilo não seja de todo perfeito.

O testemunho pessoal de Cristo é perfeito, mas ele se humilha e se submete à lei movido por seu imenso amor, para de algum modo tentar ganhar o coração dos homens para Deus.

Cristo deixa essa dimensão bem explicada quando fala sobre a carta de divórcio. O divórcio foi autorizado por Moisés não porque fosse segundo a natureza, mas porque o povo não podia suportar o mandamento da castidade. A verdade é que até hoje as pessoas não podem suportá-lo.

Quando protestante, por exemplo, eu não aceitava a segunda união, mas não por uma interpretação pessoal da Bíblia. Eu não aceitava porque o pastor que me ensinava dizia não concordar com isso, mesmo sabendo que na maioria das igrejas pentecostais o divórcio é aceito em caso de adultério. No entanto, eu aceitava os anticoncepcionais, como a quase totalidade dos protestantes (eu ignorava nessa época que mesmo os protestantes eram contra os anticoncepcionais até a década de 1920).

Essa condescendência de Deus nós também testemunhamos em nossas vidas. Ao olharmos para o passado, para aqueles primeiros erros de nossa conversão, vemos como foi necessário passar por aquilo até que as coisas se ajustassem. Por vezes, quando lutamos muito para adquirir uma virtude, acabamos falhando em outra, como se não fosse possível conciliar as duas, mas vemos que ao final foi possível crescer tanto em uma como na outra, porque a infinita misericórdia de Deus se dispôs a nos perdoar.

Para quem achar que estou falando algum absurdo, digo que se lembre dos padres do deserto que exortavam seus filhos espirituais a bem escolherem qual virtude exercitariam em prejuízo da outra, segundo o estágio espiritual em que se encontravam. 

Veja se não é isso mesmo o que Jesus ensina:

Vós enviastes uma delegação para João [o Batista], e ele deu testemunho da verdade. E, embora eu não me apóie em testemunho humano, digo isso para a vossa salvação (vv. 33-34).

Depois Cristo diz que o verdadeiro testemunho de sua divindade são as obras que ele realiza. Diz também que o próprio Pai é sua testemunha, mas ressalta que o testemunho do Pai não pode ser conhecido por aquelas pessoas, porquanto sua voz nunca foi ouvida e sua figura nunca foi vista (v. 37). 

Meditando esse texto, eu percebi a dificuldade que tinha o Senhor Jesus de convencer aquelas pessoas do que dizia. E então percebi que essa mesma dificuldade é enfrentada pela Igreja Católica. No entanto, dei-me conta de que o que existe entre ambas as dificuldades não é somente um paralelo, mas que as duas dificuldades são a mesma coisa, separadas entre si somente cronologicamente. A dificuldade que Cristo teve enquanto viveu conosco pessoalmente é a mesma que ele tem enquanto vive conosco por meio da Igreja. 

Explico.

S. Paulo Apóstolo ensina que Cristo e todos aqueles que a ele se uniram pela Fé são um mesmo corpo. É por isso que a Igreja denomina-se a si mesma como o Corpo Místico de Cristo (I Co 12, 17).

Não conseguimos compreender isso com clareza, pois esse corpo não encontra os mesmos limites que um corpo humano, embora este seja um símbolo visível daquele. Se pensarmos em um corpo humano, teremos em nosso esquema imaginário uma cabeça, um pescoço, um tronco, dois braços e duas pernas. Se pensarmos no Corpo Místico de Cristo, não conseguimos a mesma imagem, pois muitos são os braços, muitas são as pernas e todos os demais membros, com exceção da cabeça que é uma só: Cristo. O próprio Cristo também ensina isso quando fala sobre a videira, dizendo ser Ele a videira e nós os ramos.

Para conseguir que fizéssemos parte de sua felicidade, Cristo veio ao mundo e com isso obteve méritos para que a Divina Essência concedesse o dom do Espírito Santo a todos os que crêem. É pelo dom do Espírito Santo que as pessoas são feitas filhas de Deus. Não são filhas por um direito natural. São filhas nascidas da vontade e do amor de Deus. É o mesmo que acontece com uma criança abandonada que cativa o coração de um casal. Essa pobre criança não tem qualquer direito de se chamar filha desse casal, mas uma vez que os dois a amem e resolvam adotá-la, ela passa a se tornar filha.

A Igreja bem denomina o Espírito Santo como “Alma da Igreja”. Entendo por isso o seguinte: a alma é a substância imaterial que anima, isto é, que dá vida e movimento ao corpo. Sem a alma, o corpo do ser humano é um animal irracional como outro qualquer. Mas uma vez que está unido a uma alma imortal, o corpo é parte de um verdadeiro ser humano, capaz de Deus. É assim que uma congregação de pessoas que não esteja animada (palavra derivada de anímico, e não do termo vulgar de animação) pelo Espírito Santo não é verdadeiramente Igreja, mas apenas outra agremiação qualquer que não se diferencia muito de uma ONG ou qualquer sociedade entre duas ou mais pessoas.

É assim que a palavra de Cristo se perpetuou na história humana por meio da Igreja. Sem a Igreja, não há que se falar em conhecimento de Deus, pois Deus não quis se dar a conhecer senão por meio da Igreja que instituiu. Tanto é assim que Cristo passou por esse mundo sem nada deixar escrito. Transmitiu os seus ensinamentos e mostrou aos seus discípulos os sinais que operava. Tendo morrido, ressuscitou ao terceiro dia, e para dar prova do que havia anunciado, apareceu aos discípulos e na frente deles foi elevado ao Céu. Antes de subir, porém, disse-lhes: 

Ide por todo o mundo, proclamando a boa notícia a toda a humanidade. Quem crer e for batizado se salvará; quem não crer se condenará (Mc 16, 15).

Cristo deixou claro que a Fé que pede dos homens para que se salvem é antes uma Fé na Igreja, naqueles homens que por ele foram enviados para anunciar o Evangelho. Não tem como ser de outro modo. Se não crermos no homem que nos anuncia, como creremos no conteúdo que está sendo anunciado? 

Eu estava a milhas de distância dessa compreensão quando era protestante, e hoje vejo que tudo o que eu fazia era negar a realidade e fugir da consciência de mim mesmo. Eu tinha por verdade que a autoridade estava na Bíblia Sagrada. Mas hoje eu vejo que, embora defendesse essa verdade com a boca, na realidade dos fatos eu sempre recorria à autoridade do meu pastor para interpretar as Escrituras. Se me perguntavam qual garantia que eu podia dar de que a interpretação por mim assumida como verdadeira era a correta, eu não tinha resposta plausível para dar. Justificava apenas que a letra mata e o Espírito vivifica (II Co 3, 6). Ponto final. Eu não conseguia sequer tomar consciência de que aquela interpretação era a de meu pastor, e que eu, desconhecedor das coisas de Deus, confiava nele, embora hoje eu veja o mal que essa confiança me fez, e não porque ele fosse mal, mas porque era um cego guiando outro cego (Lc 6, 39).  

Eu poderia estar em outro grau naquela época, confesso. Ao menos um pouco de humildade eu possuía para saber que eu era um homem carnal que não podia ouvir com clareza a voz de Deus. Mas eu poderia estar em outro grau, que é o da pessoa que se diz espiritual e detentora da correta interpretação das Sagradas Escrituras. Provavelmente em algum ponto eu chegaria lá, e quem sabe até teria fundado a minha própria denominação acreditando piamente que estava atendendo a um chamado da parte de Deus. Bendito seja Deus que me entregou a mim mesmo e pacientemente suportou minha ingratidão enquanto estive em sua inimizade! Quanto peso eu não carregaria hoje em minhas costas se também tivesse eu sido um cego guiando outros cegos?

Mas por que eu aceitava tudo aquilo? Em primeiro lugar, porque eu era ignorante. Apesar de me considerar inteligente, não passava de um pobre coitado que havia recebido formação ideológica desde a infância na escola. Para se ter uma idéia, tamanha era a minha ignorância que eu via perfeita compatibilidade entre os ensinamentos de Cristo e o socialismo. É claro que os professores que falaram da revolução russa nunca contaram a parte do genocídio; fui ter uma vaga idéia disso no último ano do ensino médio, quando um professor de história disse que Hitler era uma mocinha perto de Stálin.

Veja que toda essa ideologia que se ensina hoje nas escolas sedimenta princípios na inteligência que tem por última conseqüência o relativismo. Quando abracei de verdade o protestantismo, eu era relativista e não sabia. Para mim era fácil aceitar que eu tinha que obedecer os mandamentos da lei de Deus pelo simples fato de que Deus havia mandado, ainda que não pudesse explicar a desordem que havia no pecado. 

Era fácil aceitar a explicação de Watchman Nee de que Deus só deu um mandamento para Adão e Eva para que eles aprendessem o princípio de autoridade. O mandamento foi para que não comessem do fruto daquela árvore, mas poderia ser qualquer outra coisa, como “não cruze esse rio”. Entristeço-me hoje pelo fato de que aquelas pessoas que eu conheço e que até hoje estão no protestantismo aceitam esse tipo de ensinamento, mas também me entristeço pelo modo como coisas desse tipo me prejudicaram e ao final de tudo me levaram a odiar a Deus (ou o que eu imaginava ser Deus).

Some-se à ideologia de viés marxista as mentiras históricas que os próprios protestantes criaram e propagaram ao longo dos quatro últimos séculos. Como não suspeitava eu, meu Deus, que tu não irias deixar a humanidade perecer em trevas por dezesseis séculos até que viesse Lutero? Como não podia eu enxergar que crer em um absurdo como esse é o mesmo que duvidar de tua sabedoria e misericórdia? Como podia eu rir-me da Igreja Católica sem sequer suspeitar dos motivos pelos quais existia já há dois mil anos? 

Ah, meu Deus, tende piedade dessas pessoas que nunca souberam o que era a Fé católica e que, dizendo-se convertidos do catolicismo ao protestantismo, mentiram tanto para mim. Disseram-me, meu Deus, tantas mentiras sobre a Igreja! Tu bem o sabes, Pai Santo; tu és testemunha do que digo. Eu peço que me perdoes a mim, que não podia enxergar a verdade que estava bem debaixo do meu nariz, mas principalmente a eles, pois creio ser maior o pecado daquele que ensina o mau caminho (Mt 8, 7), pois eu sei (e como!) são capazes de fazer um discípulo duas vezes mais merecedor do inferno o que eles mesmos (Mt 23, 15).

Tenho mais a dizer sobre esse assunto, motivo pelo qual pretendo continuar esse artigo na próxima semana.

Que Deus abençoe a todos e ao apostolado Cooperadores da Verdade.

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