“Deixe os mortos sepultarem os seus mortos” Como entender?

O significado dos dizeres acima entende-se bem à luz do respectivo contexto, contexto que no Evangelho de São Lucas (9,57-62) é um pouco mais explícito do que no de São Mateus (8,19-22).

Na verdade, os Evangelistas nos apresentam sucessivamente duas atitudes dos homens perante um chamado do Divino Mestre — o chamado a seguirem a Cristo na qualidade de discípulos.

a) A primeira atitude é a da generosidade aparente, mas superficial. Com efeito, alguém se apresentou ao Divino Mestre, afirmando : «Mestre, seguir-Te-ei para onde quer que vás» (Mt 8,19 ; Lc 9,57). A esse fervor pouco experimentado, dizem os Evangelistas, Jesus houve por bem responder com reservas, mostrando as dificuldades do propósito : seguir a Cristo seria expor-se a todas as espécies de privações, pois «as raposas têm seus covis, e as aves do céu seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça», advertiu o Senhor (Mt 8,20 ; cf. Lc 9,58).

b) A segunda atitude do homem perante o chamado de Cristo é a da vacilação. Certa vez o Divino Mestre mesmo dirigiu a alguém o convite: «Segue-Me» (Lc 9,59). Ao que o discípulo replicou: «Senhor, permite-me que vá primeiramente sepultar meu pai» (Mt 8,21; Lc 9,59). Não se dando por satisfeito com a resposta, insistiu então Cristo: «Segue-Me, e deixa os mortos sepultarem os seus mortos».

Alguns comentadores julgam que o pai do jovem se achava ainda em vida. se bem que gravemente enfermo. O mancebo teria então pedido ao Senhor o prazo mais ou menos longo que decorreria até a morte e o sepultamento do doente, talvez intencionando esquivar-se definitivamente ao convite de Jesus. A maioria dos exegetas, porém, admite que o ancião já morrera e que o jovem pedia apenas o exíguo tempo necessário para participar dos funerais. Como quer que seja, em um e outro caso, o pedido parecia muito legítimo: prestar assistência aos genitores e sepultar os mortos eram obras altamente estimadas pelos judeus piedosos. Em particular, o sepultamento dos defuntos era tido como dever tão imperioso que os rabinos dispensavam das orações usuais e do estudo da Lei os filhos que tivessem a sepultar pai ou mãe (cf. o tratado do Talmud, Berachot 17,2): ademais a própria Escritura Sagrada, por sua narrativas, muito Pa/e£,’a recomendar aos filhos o cuidado de sepultarem seus pais (cf. Gên 25,9; 50,5; Tob 1,21; 2,3-7; 4,3). Já que os judeus costumavam sepultar no dia mesmo da morte (cf. At 5,5s), o pedido do jovem não implicaria em grande atraso para seguir o Divino Mestre.

Contudo Jesus não quis reconhecer a legitimidade da súplica.

Não porque o cuidado dos mortos não seja em si obra boa, mas porque, no caso focalizado, a atitude do mancebo significava falta de generosidade para com Deus, significava certa covardia ou também um coração dividido entre o amor a Deus e o amor às criaturas. Ora o Senhor quer ser amado acima de tudo; é, aliás, a reta hierarquia dos valores que o exige: ou Deus ocupa o lugar capital na vida do homem, norteando todas as atitudes deste, ou simplesmente dever-se-á dizer que Deus não existe para tal homem; ninguém se iludirá julgando que cultua a Deus pelo fato de Lhe consagrar «algumas» de suas atitudes ou «algumas» de suas horas na vida.

Uma pequena digressão servirá para ilustrar quanto acabamos de afirmar.

Um monge hindu dizia com muito acerto: «Deus é a Unidade sem a qual só existem zeros».

Com efeito. Deus é, por definição, o Ser Absoluto — o que significa: o Valor Absoluto. Deus é, sim, o Valor que torna valiosa toda e qualquer criatura e sem o qual esta é vazia e enganadora.

Imaginemos uma série de três zeros, outra de seis, outra de nove zeros:

000

000 000

000 000 000

Os zeros que se acrescentam aos zeros nada alteram; tudo fica sendo zero… Mas coloquemos o número Um, uma só unidade, coisa simplicíssima, na série… Se pusermos o «Um» em último lugar, o conjunto, por mais longo que seja, ficará valendo muito pouco, será ninharia… Se o colocarmos em penúltimo lugar, já o conjunto valerá dez, o que ainda é muito pouco… Caso ponhamos a unidade em terceiro, em quarto, em quinto lugar, a série irá aumentando de valor (cem, mil, dez mil…). Finalmente, dado que se coloque o número Um à frente de cada série acima, ter-se-á:

1.000 = mil

1.000.000 = um milhão

1.000.000.000 = um bilhão.

Coisa estupenda! Os zeros tomam imenso valor desde que o «Um» lhes seja anteposto e os ilumine. Pois bem; Deus é esse «Um» sem o qual as criaturas nada são. Se Deus ficar em último lugar na vida do homem, esta se apresentará sempre como insípida bagatela, ninharia vazia… Dado, porém, que se ponha Deus incondicionalmente em lugar capita], cada bagatela, cada zero da vida, toma valor imprevistamente grande.

O homem pode acumular mil bens criados no seu tesouro; se chegarem a empalidecer ou remover a face de Deus no horizonte do indivíduo, esses bens, por mais numerosos que forem, equivalerão a longa série de zeros; deixarão o seu possuidor sempre frustrado e insatisfeito… Dado, porém, que o cristão ponha Deus à frente de cada criatura e procure ver tudo sob a perspectiva d’Ele, então, e somente então, tal homem começará a compreender o valor das criaturas; começará a compreender também que seguir o Cristo é o maior de todos os bens e que a vida, vivida em fidelidade absoluta ao Senhor, vale, apesar de tudo, a pena de ser vivida !

Voltando ao texto do Santo Evangelho, diremos consequentemente que, no caso do chamado dirigido pessoalmente por Jesus ao jovem, só uma resposta era adequada: a aceitação imediata, não postergada por qualquer outra tarefa; embora esta fosse em si legítima (como o sepultamento dos mortos), naquelas circunstâncias tornava-se condenável porque, em vez de levar o discípulo a mais amar a Deus, servia para diminuir e entibiar sua adesão ao Bem Infinito.

Eis o motivo da insistência apresentada por Cristo. Contudo a segunda parte da frase do Senhor costuma causar estranheza : «Deixa que os mortos sepultem seus mortos»…

A construção da frase é evidentemente artificiosa, pois, como de antemão se pode conjeturar, faz duplo emprego do termo «mortos». Em suma, Jesus quer dizer que, para sepultar cadáveres materiais (ou os mortos, no sentido físico), há sempre gente suficiente; há, sim, todos aqueles que não são chamados à vida da graça e do apostolado, gente talvez indiferente aos interesses do Reino de Deus. Tais pessoas vivem para o mundo e para as tarefas deste mundo; são por Jesus metaforicamente designadas como «mortos»… Esta figura de linguagem, forte como é, justifica-se pelo desejo que Jesus tem de realçar a grandeza e a premência da vocação dirigida ao jovem mancebo; chamado a seguir diretamente a Jesus, ele possui o quinhão por excelência, em comparação do qual tudo empalidece ou desaparece, morre; a figura também se explica pelo uso dos rabinos, que costumavam considerar como mortos (em espírito) os indivíduos que viviam alheios ao Reino de Deus (aliás, um eco bem significativo desse uso ressoa no texto de São Paulo, 1 Tim 5,6 : «A viúva que vive em prazeres, está morta, embora pareça viva»). Consequentemente, os mestres de Israel tinham os homens piedosos na conta de «vivos», mesmo que estes se vissem atribulados e condenados à morte (cf. 2 Cor 4,7-12).

Por conseguinte, Jesus quer incutir ao discípulo que ele chama, a preciosa norma : «Deixa o cuidado dos mortos ou, mais amplamente ainda, o cuidado das coisas mortais ou temporais, aos homens que, por desconhecerem mais elevados valores, se dedicam profissionalmente a isso; tu, porém, que recebeste a melhor das vocações, não queiras viver como se não a tivesses, mas volta-te decididamente para os valores eternos».

O Pe. Durand assim comenta as palavras de Jesus:

«Admiramos o soldado que, no caso de extremo perigo da pátria, permanece em seu posto na frente de combate, deixando aos de trás o cuidado de sepultar seu pai. Como então nos contentaríamos com dedicação menor, ao se tratar do Reino de Deus?» (Com. em Mt 133).

Por fim, o episódio que acabamos de analisar, ainda sugere uma reflexão: em dados momentos da vida, a maior graça que Deus possa conceder a uma alma, é a de pedir-lhe um ato de heroísmo. Esse ato, esse arranco forte, ainda que faça sofrer, vem a ser a condição imprescindível para que o cristão se eleve acima de seus interesses temporais ou para que corrobore a sua verdadeira vida e não se torne um morto a sepultar mortos no cemitério das coisas temporais !

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