Fato digno de nota : o Cristianismo, embora se oponha frontalmente a todo materialismo, nutre profundo respeito pelo corpo humano, justamente porque sabe que este é sede de uma alma não material, mas espiritual. É a presença do espírito na matéria que leva o cristão a estimar a própria matéria do corpo humano. Para abordar devidamente o tema, em primeiro lugar teremos que definir o que se entende por «experiência médica»; a seguir, proporemos os princípios que regem a consciência cristã perante os problemas formulados nesse setor.
1. O conceito de experiência médica
Há quem queira definir a experiência médica como sendo o tratamento infligido a um organismo sadio, com o fim de se averiguar a eficácia de determinada terapêutica cujos resultados ainda são incertos ao operador. Disto se seguiria que tratamentos semelhantes aplicados a organismos doentes já não cairiam sob a noção de experiência médica.
— Tal conceituação não parece adequada, pois é evidente que também a um organismo enfermo se podem aplicar processos terapêuticos que são meras provas ou ensaios.
Sem nos deter na análise de outras sentenças, diremos que o melhor conceito de experimentação médica tem-na na conta de ensaio feito em qualquer organismo doente ou sadio, para ampliar os conhecimentos ou verificar uma hipótese de Medicina. A experiência, por conseguinte, — e este traço é de importância capital para nosso estudo — não visa por si o bem do sujeito ao qual ela se aplica, embora possa beneficiar ou curar a este.
Vejamos agora qual o juízo que a consciência cristã profere a respeito de tal empreendimento.
2. As normas da Moral cristã
A. As restrições
Há quem defenda a liceidade — e liceidade irrestrita — da experimentação, apelando para um dos três seguintes fatores: a) os interesses da ciência, b) as vantagens do paciente; c) o bem da sociedade.
Examinemos o alcance de cada um desses três elementos,
a) Os interesses da ciência
A medicina, alegam alguns, só pode progredir devidamente caso instaure experiências. Ora não se pode restringir sistematicamente o âmbito destas a animais irracionais, pois a capacidade de reação do homem varia em confronto com a dos viventes inferiores, varia mesmo de idade a idade, de raça a raça, etc. Donde se percebe a conveniência da experimentação nos mais variados organismos.
Bilroth chegou a afirmar que o progresso da medicina passa por cima de uma montanha de cadáveres. Aliás já o sábio romano Plínio notava sarcasticamente que os médicos «aprendem à custa nossa e instituem suas experiências através da própria morte» (Hist. nat. XXXIX 1).
Pois bem; a quem assim raciocina, será oportuno recordar o seguinte: a reta hierarquia dos valores assevera que no binômio «Homem e Ciência» a ciência é mero meio, o homem é o fim imediato desta; a ciência é destinada a promover o bem-estar do homem, mesmo do paciente ao qual ela se aplica, e não vice-versa. Com efeito, a personalidade humana é tal que ela se relaciona diretamente com Deus, não estando subordinada a fim algum intermediário ; por isto toda personalidade, seja sadia, seja doente, seja de raça branca, seja de raça negra, tem algo de sagrado e intangível aos interesses temporais, ainda que sejam os interesses da cultura e da ciência.
Em uma palavra: o fim não justifica os meios; o que no caso quer dizer: o progresso da ciência não justifica tal crime que é a extorsão da saúde ou da vida de uma pessoa humana. Quem reduz o próximo à categoria de instrumento da ciência, vilipendia o valor sagrado que Deus atribui a toda personalidade. Não há «cobaia humana».
b) As vantagens do enfermo
Pode haver casos em que o médico julgue que tal tratamento novo, pouco comprovado pela experiência, é apto a produzir em tal paciente resultados benéficos… Que dirá então a Moral cristã?
Não vedará a esse médico, de maneira formal, a aplicação da referida terapêutica, mas, entre outras cláusulas (de que abaixo mais explicitamente trataremos), impor-lhe-á obtenha o consentimento do respectivo doente para a execução do tratamento; não será lícito ao clínico ou ao cirurgião empreender o referido tratamento por simples iniciativa sua. Com efeito; as relações entre o médico e o enfermo estão baseadas na entrega de si que este faz àquele; donde se vê que a intervenção do médico jamais poderá ultrapassar os limites do consentimento ou da entrega do cliente. — Este, por sua vez, jamais poderá outorgar ao médico direitos que ele mesmo, paciente, não possui; na verdade, nenhum homem é proprietário de sua vida; todos são meros administradores da mesma, tendo como dever primordial o de a conservar zelosamente (em vista, sim, de uma existência superior, ultraterrestre, que se vai configurando na vida presente) ; em consequência, a nenhum indivíduo, enfermo ou são, é lícito entregar sua vida a uma técnica nova, mais ou menos desconhecida, que, visando fazer experiências, ponha em perigo a existência do respectivo sujeito.
É o que o Santo Padre Pio XII recorda no seguinte inciso de discurso dirigido aos membros do I Congresso de Histopatologia em 13/IX/1952:
«O médico só tem sobre o paciente o poder e os direitos que este lhe dá, seja explicita, seja implícita e tàcitamente. O paciente, por sua vez, não pode conferir mais direitos do que possui…
O paciente não é senhor absoluto de si mesmo, do seu corpo e espírito. Não pode, por conseguinte, dispor livremente de si mesmo como lhe agrade… Ele está ligado à teleologia imanente, fixada pela natureza. Possui o direito de uso, limitado pela finalidade natural, das faculdades e das forças da sua natureza humana. Pois que é usufrutuário e não proprietário, não tem poder ilimitado de pôr atos de destruição ou de mutilação de caráter anatômico ou funcional… Portanto o paciente não tem o direito de comprometer a sua integridade física e psíquica em experiências ou investigações médicas, quando estas intervenções acarretem consigo ou após si destruições, mutilações, ferimentos ou perigos sérios» (transcrito da «Revista Eclesiástica Brasileira» XII [1952] 948s).
Somente num caso os interesses do doente exigiriam o sacrifício de alguma parte do seu corpo, a saber: no caso em que essa parte, enferma ou sadia, pusesse em perigo a saúde ou a vida do sujeito. Tal norma entende-se bem, dado que a vida do corpo representa um valor superior ao da integridade de seus órgãos.
c) O bem da sociedade
1. A sociedade, dizem-nos, pode exigir seja, em experiências de medicina, sacrificada a saúde de alguns indivíduos em favor da higiene pública. Sendo assim, às autoridades civis, a quem compete promover o bem comum, será lícito outorgar aos médicos plenos poderes para o exercício de suas experiências.
A esta argumentação responder-se-á que o bem comum, sem dúvida, exige e justifica as pesquisas das ciências.
Mas que é propriamente o bem comum ?
É o que resulta do acúmulo de muitos bens particulares dispostos na hierarquia ou na ordem devida. O bem comum, embora distinto dos bens particulares, não destrói a estes, mas os completa e aperfeiçoa. Em outros termos, diríamos: o indivíduo humano não está subordinado às utilidades e vantagens da sociedade, mas, ao contrário, a sociedade é que existe por causa do indivíduo; a comunidade é o grande meio estabelecido pela natureza e por Deus para ajudar cada indivíduo a desenvolver plenamente a sua personalidade.
A mesma doutrina é ilustrada ainda pela seguinte observação: distinga-se entre unidade física e unidade moral.
A unidade física é aquela que compete a um organismo vivo (de vegetal ou de animal): nenhuma das respectivas partes, fora do organismo, tem sentido ou finalidade; cada uma está inteiramente a serviço do todo a que pertence; disto se segue que, num organismo, os interesses do conjunto podem legitimamente exigir o sacrifício de uma ou mais das partes integrantes.
A unidade moral, ao contrário, é aquela que compete a uma sociedade: cada indivíduo ai conserva sua definição e sua face próprias; nenhum é pròpriamente parte integrante desse todo que é a sociedade; nenhum se relaciona sob todos os pontos de vista com os demais e com a coletividade; o único laço que na sociedade prende os indivíduos entre si, é a tendência para os mesmos objetivos ou fins; disto se depreende que a autoridade pública, encarregada de promover o bem social, pode, sim, exigir a colaboração dos indivíduos em demanda dos fins da sociedade, mas carece de poder direto sobre o físico ou sobre a personalidade dos indivíduos; qualquer atentado contra esta última vem a ser um abuso de autoridade; equivale a destruir um bem particular, quando justamente a sociedade tem por fim promover o bem comum, completando e aperfeiçoando os bens particulares.
2. Dir-se-á, porém: no caso de aplicação da pena de morte, a sociedade não destrói o ser físico de seus membros ?
— Não trataremos aqui da legitimidade ou não da pena de morte, pois o assunto já foi abordado em «P. R.» 7/1957, qu. 15.
Interessa-nos realçar diretamente, nesta ordem de idéias, que o caso da pena de morte supõe e representa um problema diferente do que aqui estamos considerando. De fato, neste artigo estudamos a hipótese de se querer promover o bem comum (a saúde pública) à custa de indivíduos particulares (reduzidos a «cobaias»), quando estes são de todo inocentes, ou quando a existência destes não é por si nociva ao bem comum. No caso de pena de morte, ao contrário, supõe-se um indivíduo que por sua conduta de vida seja gravemente prejudicial ao bem comum, ocasionando um conflito entre bem individual e bem coletivo; caso este conflito não se possa solucionar por outra via, diz a Moral Católica ser lícito eliminar o bem individual (a vida do réu incoercível) a fim de permitir a devida existência do bem comum.— Nesta hipótese, aliás, a autoridade civil só faz eliminar a vida corporal e temporal do réu; a este fica sempre assegurada a possibilidade de conseguir a salvação eterna mediante um arrependimento sincero e (desde que goze de assistência religiosa) a recepção do sacramento da Penitência. Destarte a pena de morte, em teoria, não se opõe aos princípios da Moral cristã.
Dito isto, seja lícito acrescentar, de passagem, ligeira observação: é muito difícil, principalmente em nossos dias, chegar-se à certeza de que, em tal e tal caso concreto, o conflito entre bem individual e bem comum é insolúvel ou não se pode resolver senão pela morte do indivíduo. Por isto, a pena de morte, embora seja justificada em teoria, na prática pouco se recomenda, pois pode fàcilmente tomar o caráter de pena meramente vingativa ou de represália do talião.
Ainda a propósito observe-se: suposto que alguém seja realmente segundo a justiça condenado à morte (o que é difícil de se averiguar), alguns moralistas inclinam-se a admitir como lícito, seja o réu entregue à experimentação dos médicos; caso escape a estas incólume, seja definitivamente isento da pena, em reconhecimento dos serviços prestados à sociedade no ato de se sujeitar às experiências (tais serviços equivalem a uma reparação dos crimes cometidos pelo réu). A razão por que os referidos moralistas assim pensam, é que pela entrega do réu às mãos dos estudiosos apenas se faz mudar a modalidade pela qual se executa a sentença capital. — A rigor, nada se pode objetar contra os autores que. defendem esse parecer. Na prática, porém, será preciso absolutamente evitar que dê ocasião ao proferimento de sentenças injustas, inspiradas pelo desejo de fornecer material humano aos laboratórios médicos.
B. O lícito e o ilícito
As experiências médicas podem, em certas circunstâncias, tornar-se licitas, quando realizadas em enfermos ou em cadáveres; são, porém, na maioria dos casos, ilícitas, quando efetuadas em pessoas sadias.
a) Em pessoas enfermas
1. Inegàvelmente ocorrem casos em .que, com probabilidade de êxito, se podem experimentar em pessoas doentes novos processos de cura. Com efeito, a Medicina é ciência, em grande parte, empírica. Como foi dito atrás, a constituição fisiológica própria de cada enfermo pode fazer que reaja a certos tratamentos de maneira pessoal, diversa do modo como tenham reagido animais anteriormente experimentados; por conseguinte, há situações em que determinada terapêutica pode produzir não somente os efeitos previstos, mas também resultados imprevistos aptos a beneficiar de novo modo o paciente. Toma-se lícita então a sua aplicação, desde que se observem as seguintes condições:
a) tratamento que se vai aplicar ao doente, não seja por si nocivo, mas já haja dado bons resultados em certos casos;
b) não se conheça, ou não se possa aplicar, remédio de eficácia mais segura:
c) ponderem-se bem os efeitos bons e os efeitos maus do tratamento em foco, de sorte que se possa dizer que, mediante a aplicação do mesmo, há realmente esperança de promover o bem do paciente. Em outros termos: os efeitos bons previstos com probabilidade deverão ser tais que compensem o risco dos efeitos maus previsíveis;
d) tomem-se todas as cautelas para evitar os efeitos daninhos desnecessários;
e) consintam o enfermo ou, ao menos, seus responsáveis na aplicação do tratamento; caso o paciente esteja para correr perigo de morte, proporcionar-se-lhe-á a devida assistência religiosa.
Estas cláusulas nada mais são do que aquilo que a Moral sempre exige para a liceidade de uma ação que tenha duplo efeito. É ao médico que, em última análise, compete avaliar as circunstâncias próprias de cada caso e julgar, diante de Deus, a moralidade da referida terapêutica.
2. Em se tratando de moribundos, parece que se podem permitir experiências que, sem lhes afetar o ritmo da doença, possibilitem ao médico determinar com mais segurança a morte do paciente e deter de certo modo a decomposição do corpo após o falecimento.
3. Estas normas já indicam o que pensar da objeção segundo a qual a Moral católica é tida como contrária ao progresso da ciência.
A objeção carece de fundamento. O que a Moral visa é fazer que o médico trate o paciente na qualidade de médico, ou seja, de incondicional promotor do bem do enfermo. O profissional, por conseguinte, só poderá ter um objetivo com relação ao doente: curá-lo. É claro, como notamos atrás, que a procura do bem do paciente pode sugerir o emprego de novos métodos, que tenham riscos anexos a si. A Moral está longe de exigir que se exclua todo risco na terapêutica; isto ultrapassaria as possibilidades humanas, paralisaria a ciência e prejudicaria o próprio enfermo. A consciência católica apenas afirma que, além de certo grau de riscos e perigos, não é licito ao médico proceder, pois, se assim fizesse, já desdiria o seu mister, deixando de ser o amigo do enfermo para ser um frio intelectualista colocado diante de sua cobaia. Posta esta restrição, que visa salvaguardar os direitos da pessoa humana, ainda resta amplo campo de investigação para os cientistas; tenha-se por certo que as normas de Moral nunca constituíram obstáculo para o verdadeiro progresso da humanidade; ao contrário, elas só fazem canalizar os esforças do gênio humano, a fim de que não se desvirtuem, procurando bens ilusórios em vez do bem autêntico.
b) Em cadáveres
Durante muito tempo dizia-se que o Papa Bonifácio VIII em 1299 publicou uma bula a proibir o exame médico de cadáveres; hoje em dia, porém, reconhecem os críticos que essa versão não passa de pura lenda. O estudo de anatomia sobre cadáveres, já há vários séculos, é oficialmente reconhecido por leis tanto civis como eclesiásticas (a ressurreição da carne, como sabemos, não depende do tratamento que se dê aos corpos dos defuntos).
Tenta-se em nossos dias fazer a transposição de tecidos (da córnea, por exemplo) e órgãos de um cadáver para um organismo vivo. Do ponto de vista moral, nada se pode objetar contra tais operações, desde que o doador seja um corpo realmente morto, não um ser ainda agonizante; enquanto a vida persiste num indivíduo humano, é ilícito mutilá-lo, ainda que isto se faça em benefício de outrem.
Contudo, em se tratando do aproveitamento de cadáveres para fins medicinais, os familiares dos defuntos ou outras pessoas legitimamente vinculadas a estes terão sempre o direito de se pronunciar e até de se opor a tal uso; os sentimentos de tais pessoas deverão merecer todo o acato, de modo que não será licito aos médicos contrariá-los. Semelhantemente, às autoridades civis compete o direito de legislar a respeito da utilização medicinal dos cadáveres, respeitando ou protegendo os afetos de parentes e amigos, impedindo a mutilação antes de estar verificado, o respectivo desenlace, vedando sejam entregues aos experimentadores os corpos de quem haja morrido de morte criminal ou de quem acarrete perigo para a saúde pública.
A consciência cristã julga outrossim injusto serem os cadáveres dos pobres falecidos em clínicas públicas e hospitais destinados aos serviços da medicina, ficando isentos disto os corpos dos menos pobres.
Ainda a tal propósito, será preciso frisar bem que um cadáver humano, principalmente de um fiel batizado, deverá sempre ser tido como digno de todo o respeito e consideração.
c) Em indivíduos sadios
1. Assim como a Moral católica aprova as experiências feitas sobre doentes e cadáveres nas circunstâncias descritas, assim ela repudia tratamento análogo infligido a pessoas que gozem de boa saúde. Não é, por conseguinte, lícito provocar nestas uma doença qualquer a fim de se averiguar a eficácia dos remédios com que o mal será combatido. Como dissemos, porém, alguns moralistas excetuam aqui as pessoas sadias que tenham sido, por legítima sentença, condenadas à morte; cf. pág. 75 deste fascículo.
2. Contràriamente às leis da Ética, o rei Átalo III Filometor, de Pérgamo (+133 a. C.), experimentava o poder terapêutico das ervas de seu horto, servindo-as aos convidados de sua mesa; de modo semelhante parece ter procedido o rei Mitrídate Eupator, do Ponto, em colaboração com o seu médico Cratena, experimentando venenos e contravenenos.
Os escravos foram na antiguidade também indevidamente utilizados para semelhantes fins. Não faltaram no decorrer da história médicos que, julgando demasiado dispendiosas as experiências com animais irracionais, preconizaram fazê-las com crianças; assim Tischendorf, no século passado, instilava pus blenorrágico nos olhos dos pequeninos para fomentar aí a conjuntivite blenorrágica que leva à cegueira.
Após a última guerra mundial, as buscas realizadas na Alemanha sobre os procedimentos do governo nacional-socialista revelaram amplo recurso aos prisioneiros dos campos de concentração a fim de se realizarem experiências médicas: os estudiosos costumavam pedir às autoridades policiais tantos indivíduos para tais pesquisas, tantos outros para tais outras experiências, etc. — Aliás, desde inícios do séc. XIX os médicos em larga escala têm recorrido à experimentação em pessoas sadias; por exemplo, num Congresso reunido em Pfalz no ano de 1855 um cientista enviou seu relatório descrevendo como inoculara a sífilis em 23 pessoas; fez questão, porém, de silenciar a sua identidade (donde o titulo de «Anônimo de Pfalz» que lhe foi atribuído). — Tudo isso são aberrações.
3. Merece atenção especial o caso de se provocar em organismos humanos sadios uma doença já incutida em irracionais de modo tal, porém, que estes foram restaurados sãos. Em vista da fundada esperança de recuperação da saúde, a Moral permite semelhante procedimento com seres humanos. É o que se dá em geral quando se quer comprovar em termos definitivos o poder medicinal de certas vacinas. Seja, porém, permitido recordar com que escrúpulos Pasteur aplicava a indivíduos humanos a vacina contra a raiva, mesmo depois de a ter repetidamente experimentado, com feliz êxito, em cães de toda idade e condição.
4. Quanto ao seu próprio corpo, o médico não goza de maior liberdade do que em relação ao corpo do próximo; portanto nem a si mesmo o médico pode transformar em cobaia.
C. O Código do médico experimentador
À guisa de conclusão de quanto foi dito até aqui, transcrevemos abaixo as dez normas para o médico experimentador baixadas pelo Tribunal de Nürnberg aos 19 e 20 de agosto de 1947. São regras que a consciência católica, esclarecida pelas explicações que precedem, aceita sem dificuldade:
«Os princípios fundamentais que devem reger toda a tarefa de experiências médicas são os seguintes:
1) Haja consentimento voluntário do sujeito que tenha capacidade legal e total de consentir, sem coação de parte alguma e com conhecimento minucioso da natureza dos riscos da experiência. O experimentador não pode transferir a outrem sua responsabilidade neste setor.
2) A experiência seja necessária e não se possa realizar de maneira diversa (menos perigosa).
3) A experiência deve ter sido preparado por provas em animais e por um estudo profundo da questão.
4) A experiência deve evitar todo sofrimento e todo risco desnecessário.
5) Requer-se não haja perigo de morte nem de invalidação perpétua, excetuado o caso de auto-experimentação (1).
6) O médico deve esforçar-se por evitar todo eventual perigo.
7) Os riscos não devem exceder as vantagens reais da experiência.
8) O experimentador deve ser perito qualificado.
9) Ao paciente reconhecer-se-á o direito de mandar interromper a experiência. (2)
10) O experimentador deve estar disposto a interrompê-la em caso de possivel perigo».
- A Moral católica não reconhece esta exceção.
- Evidentemente a interrupção desejada pelo paciente pode acarretar graves danos para o próprio doente. Incumbirá então ao médico fazer-lhe ver os perigos a que se expõe, e terminar quanto antes o tratamento, evitando consequências desagradáveis para o enfermo.