Mentira moral e consciência cristã
1. Diz-se que alguém profere mentira quando fala contrariamente ao seu modo de pensar, tendo a intenção de enganar o próximo.
«Falar», nessa definição, significa todo e qualquer modo de comunicar o pensamento, abrangendo, por conseguinte, a locução oral. a escrita, o uso de gestos e outros sinais equivalentes. As atitudes hipócritas vêm a ser uma forma especial de mentira.
«… contràriamente ao seu modo de pensar». Portanto… não em contradição necessária com a verdade objetiva. Uma afirmação falsa em si (isto é, não correspondente à realidade como tal) pode não ser mentira, caso a pessoa que a profere julgue estar dizendo a verdade. Vice-versa: alguém pode estar mentindo mesmo que diga uma proposição objetivamente verídica, contanto que fale contrariamente ao seu modo de pensar.
«…com a intenção de enganar». É esta intenção que, segundo o senso moral comum, constitui a malícia da mentira. Tal intenção, porém, falta — e ninguém a pressupõe — em quem refere uma fábula como fábula, um romance, uma afirmação paradoxal (isto é, evidentemente absurda: «apareceu um asno a voar») ou ainda no caso dos atores que representam peças teatrais e enredos de cinema.
A mentira, entendida nos termos da definição acima, é ato intrinsecamente mau e, por isto, contrário à consciência cristã. Dois são os motivos que levam a proferir tal juízo:
a) A palavra foi pelo Criador dada ao homem primariamente para que este manifeste o seu modo de pensar. Por conseguinte, profana a palavra e derroga ao desígnio do Criador o indivíduo que use da linguagem a fim de exprimir o contrário daquilo que ele pensa.
b) O homem é, por natureza, animal social. Ora a vida na sociedade se baseia sobre a confiança mútua e a colaboração dos indivíduos entre si. A mentira, porém, destrói essa confiança e transforma a vida comum em insuportável rede de ciladas.
Donde se vê que, a duplo título, a mentira contraria a natureza do homem como tal e, consequentemente, a lei de Deus.
Sendo a mentira intrinsecamente má, conclui-se que nem mesmo uma finalidade sadia (como o exercício da caridade, a utilidade pública) a pode justificar. O fim não santifica os meios; por conseguinte um meio mau em si não se torna honesto, mesmo que vise um objetivo bom. — Também se deve notar que não é lícita sequer a mentira jocosa, ou seja, o desejo de enganar o próximo por brincadeira, sem consequência funestas. Reconhecer-se-á, porém, que a malícia da mentira jocosa vem a ser mais tênue do que a da mentira proferida com a intenção de danificar.
2. Eis, porém que na vida prática se apresentam situações embaraçosas no tocante à comunicação da verdade. Tais emergências se podem distribuir em duas classes principais:
a) Ora parece que determinada pessoa não tem o direito de dizer a verdade, pois, assim fazendo, prejudicaria gravemente a um terceiro ou a uma coletividade.
É o que se dá, por exemplo, quando um homem inocente perseguido por um bando de assassinos se refugia em casa de certa família, que o oculta. Os malfeitores, ao seu encalço, entram no domicílio e indagam sobre a presença da vítima. Caso o chefe da casa refira a verdade, lavra, por assim dizer, o decreto de morte do inocente; caso, porém, negue frontalmente a realidade, profere uma mentira, isto é, comete um ato mau em si. Uma resposta hesitante ou a sonegação de resposta, em tais circunstâncias, já equivaleriam à denúncia, ou seja, à entrega da vitima aos seus algozes.
Analisando tal situação, o filósofo Emanuel Kant (+1804), movido pelo principio do dever categórico, sustentava que a revelação da verdade seria, apesar de tudo, uma obrigação inelutável; o dano causado ao inocente não lhe parecia poder derrogar ao pretenso dever de proferir positivamente toda a verdade. Benjamim Constant (+1830), porém, replicava que a verdade só é devida a quem tem direito a ela e que precisamente o perseguidor da vitima inocente perdeu tal direito (cf. Ruyssen, Kant. Paris 1900, 257).
Que diria a Moral católica no caso?
Antes de responder, lembremos ainda outras situações embaraçosas a fim de focalizarmos ainda com mais clareza a problemática.
Tenha-se em vista um oficial militar que cai prisioneiro de guerra… Os inimigos o assaltam com perguntas a respeito dos planos do seu Estado-Maior. A manifestação da verdade ou uma resposta vacilante comprometerão a pátria do prisioneiro, equivalendo à traição. Ainda terá este a obrigação de dizer a verdade? Ou ser-lhe-á talvez lícito proferir o contrário do que ele sabe?
Leve-se em conta também o caso do sacerdote interrogado sobre faltas que um penitente lhe revelou em confissão sacramental;… o do médico solicitado a violar o segredo profissional;… o do amigo intimado a manifestar o que ele prometeu ao amigo guardar em segredo… Não haverá obrigação estrita de não revelar a realidade em tais circunstâncias? E, se há tal obrigação, como ainda condenar a mentira, ao menos em tais emergências?
b) Além dessas, há as situações em que alguém parece possuir o direito (embora não tenha o dever) de não dizer a verdade. É o que acontece quando um cidadão importuno propõe perguntas capciosas, visando explorar interesseiramente a próspera situação em que o próximo se encontre, … quando um amigo importuno em ocasião imprópria indaga se o Sr. ou a Sra. estão em casa…
Pergunta-se: como há de proceder o cristão diante de semelhantes impasses?
3. Remova-se imediatamente a solução pelo recurso à mentira. Este ato enganador, como foi dito, nunca se pôde tornar licito.
Observe-se, porém, que, se de um lado alguém tem a obrigação de jamais dizer o contrário daquilo que pensa, de outro lado não está sempre obrigado a dizer tudo que pensa e sabe. Uma coisa, sim, é falar contràriamente ao que se pensa; e outra coisa é não manifestar tudo que se pensa; a franqueza proíbe-nos afirmar o que julgamos falso, mas não nos obriga a expor à curiosidade de estranhos ou de adversários nossos sentimentos íntimos e projetos; confiar tudo a todos já não é virtude, mas é carência da virtude de discernimento ou infantilismo reprovável.
Por conseguinte, em desacordo com Kant, a Moral cristã reconhece casos em que realmente a pessoa tenha o direito, até mesmo o dever, de não referir tudo que sabe (embora, note-se bem, mesmo então não tenha o direito de dizer o contrário do que sabe).
Como, portanto, procederá tal cristão ?
Se puder livrar-se do embaraço mediante o silêncio ou resposta evasiva (isto é, dizendo algo que não toque diretamente o tema melindroso), faça-o sem hesitar.
Em algumas situações, porém, acontece que o silêncio e a resposta evasiva já equivalem a denúncia ou traição.
Em tais casos, será lícito à pessoa interpelada recorrer ao que se chama «restrição mental em sentido largo». O que quer dizer: poderá usar, em sua resposta, de alguma expressão suscetível de duas interpretações; consequentemente, o ouvinte não conseguirá formular um juízo claro sobre o assunto e não chegará ao exato conhecimento da verdade… É preciso, contudo, frisar bem que tal modo de responder só se torna lícito, caso as circunstâncias permitam ao ouvinte suspeitar da dupla interpretação que a expressão usada pelo interlocutor admite; um homem prudente deve poder tomar consciência de estar diante de uma resposta talvez equívoca. Se em nada transpareça a possibilidade de equívoco, tal modo de responder torna-se ilícito ; chama-se então «restrição mental em sentido estrito».
a) Exemplo de restrição mental em sentido largo (licita, por conseguinte) é a resposta: «O patrão não está em casa», que o doméstico por vezes dá aos que batem à porta ou tocam o telefone; quem conhece a praxe tradicionalmente vigente na sociedade, saberá muito bem que tal resposta não quer ser tomada ao pé da letra, mas significa apenas: «O patrão não está em condições de atender (seja por motivo de ausência seja por outra razão qualquer)»; as circunstâncias da resposta são suficientemente claras para que o visitante não se iluda no caso.
Exemplo análogo seria o seguinte: o conviva de cerimônia tem o direito de responder «Sim» à dona de casa que lhe pergunte, num almôço solene, se tal ou tal prato é de seu gosto; tal resposta pertence a um cerimonial mais ou menos convencional, podendo ser tida como praxe cujo sentido a ninguém engana. Ademais a resposta negativa provocaria mal-estar e agitação num ambiente em que a urbanidade deve ser respeitada ao máximo.
Também as fórmulas com que se costumam encerrar cartas («servo dedicado…, atencioso e penhoradíssimo…») são lícitas, porque não provocam ilusões nos leitores habituados à vida social (o próprio Kant as aceitava, opondo-se no caso a Schopenhauer).
A quem peça dinheiro emprestado, será lícito responder: «Não tenho (a saber, o que te possa emprestar)», desde que haja motivos para não atender a tal pedido; quem ouve, sabe geralmente interpretar a resposta sem se iludir.
Tais atitudes não podem ser tachadas de hipocrisia, pois o seu sentido é perceptível aos homens que tenham a medida de prudência ordinária e indispensável a todo cidadão.
b) Eis agora um espécime de restrição mental em sentido estrito e, por isto mesmo, ilícita: Tito me pergunta se vi Pedro; respondo que sim, subentendendo não a pessoa, mas a fotografia do nomeado; no caso a restrição que imponho ao objeto (Pedro, não como pessoa, mas como fotografia) não transparece em meu «Sim», nem pode ser de algum modo conjeturada pelas circunstâncias do colóquio (desde que este se realize em condições normais).
Mais um exemplo congênere: alguém me pergunta simplesmente se cometi tal ação indigna; respondo que não, subentendendo comigo mesmo «hoje», embora de fato ontem tenha cometido o mal apontado. Neste caso, minha resposta, não dando ocasião a que o ouvinte suspeite da restrição, vem a ser fraudulência e mentira; por conseguinte,… algo de desonesto.
Donde se vê que a dita «restrição mental» só é lícita pelo fato de não ser exclusivamente mental, mas transparecer nas palavras ou nas circunstâncias da frase de quem fala. Em consequência, alguns moralistas modernos preferem dar a esse expediente outra denominação, não havendo, porém, unanimidade sobre a nova nomenclatura.
Não se poderá deixar de incutir com clareza que a restrição mental em sentido largo só é licita desde que vise evitar graves males que o simples silêncio ou a evasiva não bastariam para remover. Pecaria, portanto, quem recorresse, como que habitualmente, à restrição mental em assuntos de pouca monta, pois destarte prejudicaria notàvelmente a confiança e a colaboração entre os homens. Doutro lado, devem-se reconhecer casos em que a restrição mental não sòmente é licita, mas vem a ser obrigatória; são as situações, por exemplo, em que a manifestação da verdade ou uma resposta evasiva implicariam violação do sigilo sacramentai ou do segredo profissional ou acarretariam grave detrimento para o bem alheio. Em tais casos, a resposta «Não sei» é plenamente legítima, pois quem a ouve tem a obrigação de levar em conta que a pessoa interrogada não pode responder.
Como critério para se discernir se uma restrição mental é lícita ou não, pode-se adotar a seguinte norma: se a pessoa que interroga tem estrito direito a conhecer a verdade (o que certamente se dá, desde que esteja em foco alguma cláusula essencial de um contrato oneroso), não é em absoluto lícito ocultar-lhe a verdade, nem mesmo por uma restrição mental em sentido largo. Dado, porém, que alguém interrogue de maneira importuna e injusta sobre assuntos que não são da sua alçada, a consciência cristã não proíbe a restrição mental larga.
Embora a Moral católica reconheça a liceicidade da restrição em tais circunstâncias, ela recomenda primordialmente aos fiéis que considerem tal expediente como remédio de exceção para situações de exceção; procurem, pois, evitar tal recurso sempre que o puderem evitar. A linguagem do cristão há de ser, via de regra, simples e clara, conforme a admoestação do Senhor Jesus: «Seja a vossa palavra ‘Sim, sim’; ‘Não, não’» (Mt 5,37). De resto, o cristão que viva profundamente unido a Deus, permitindo a livre ação dos dons do Espírito Santo, será, nas ocasiões oportunas, especialmente iluminado pelo dom do conselho, a fim de conceber então a resposta adequada, que não seja nem mentira nem também indevida manifestação da verdade.
Um pouco, de história da casuística
As restrições mentais têm sido objeto de amplos debates dos teólogos católicos entre si e com autores não católicos, provocando ora mal-entendidos, ora a censura de laxismo e hipocrisia infligida a tal e tal grupo de escritores.
Vejamos o que a história registra a propósito.
Documento importante para o histórico da controvérsia é uma página do Cardeal Caetano de Vio O. P. (+1534). Este autor refere a opinião de muitos contemporâneos seus, que afirmavam ser lícito jurar, formulando palavras acompanhadas de cláusulas e reservas tacitamente guardadas no espírito de quem jura; consequentemente permitiam que alguém jurasse entregar determinada quantia a um injusto agressor, acrescentando, porém, a condição meramente mental: «…se é que de fato estou obrigado a te consignar tal quantia».
Caetano, porém, e outros autores do séc. XVI desaprovavam essa sentença. A controvérsia sobre o assunto se foi desenvolvendo…; enquanto permaneceu nos círculos de eclesiásticos, manteve-se dentro dos limites da seriedade científica e da dignidade moral. No séc. XVII, porém, participaram dos debates controversistas estranhos a esses círculos, desencadeando polêmica mais ou menos apaixonada assim como casuística sutil, quase zombeteira; os cavilosos litígios acesos por ocasião do jansenismo na França dos séc. XVII/XVIII, com todos os subterfúgios a que recorriam, só faziam mais e mais exacerbar os ânimos. Em consequência, o Papa Inocêncio XI, por meio do Sto. Oficio, interveio aos 2 de março de 1679, considerando como «escandalosas» e «nocivas na vida prática» as três seguintes proposições focalizadas e, em parte, defendidas pelos casuístas:
«Se alguém, a sós ou em presença de outrem, quer seja interrogado, quer fale por própria iniciativa, a título de recreio ou por qualquer outro motivo, jure não ter feito alguma coisa que na realidade haja cometido, subentendendo consigo mesmo outra coisa ou um meio diverso do que ele utilizou ou outra circunstância real, não está mentindo nem deve ser incriminado de perjúrio».
«Há motivo suficiente para recorrer a tais locuções ambíguas desde que sejam necessárias ou- convenientes para salvar a vida do corpo, a honra, o patrimônio da família ou para praticar qualquer ato de virtude, em circunstâncias tais que o indivíduo julgue oportuno ” e útil ocultar a verdade».
«Quem é promovido à magistratura ou a um cargo público graças a uma recomendação ou a um presente, pode usar de restrição mental ao prestar o juramento geralmente exigido por ordem do rei em casos análogos, sem levar em conta a intenção de quem exige tal juramento, pois ninguém está obrigado a professar em público uma sua falta secreta» (Denziger, Enchiridion 1176-78).
Tais proposições — note-se — foram explicitamente rejeitadas pela autoridade eclesiástica.
Foi após tal censura (datada de 1679) que os moralistas resolveram reexaminar as doutrinas concernentes à restrição mental e deram vigor definitivo à distinção (já anteriormente proposta por alguns autores, como Caramuel, +1682, e Pôncio, +1629) entre restrição mental em sentido largo e restrição mental em sentido estrito. Verificaram que esta última modalidade é que fora atingida pela condenação da Santa Sé, ao passo que a primeira ficava incólume, podendo por conseguinte ser adotada como expediente lícito — lícito, porém, apenas nas circunstâncias que discriminamos atrás.
A Companhia de Jesus sofreu de modo especial as consequências da controvérsia, pois os padres jesuítas foram tidos como inventores e patrocinadores das restrições mentais, o que moveu contra eles a animosidade e o poder difamatório de não poucos adversários (principalmente do famoso pensador Blaise Pascal, +1662, em suas «Lettres Provinciales»). Na verdade, será preciso reconhecer que a doutrina da restrição mental já era proposta e defendida por teólogos desde os tempos de Caetano (+1534) ou mesmo desde Ângelo de Chivasso (+1495), quando certamente ainda não existia a Companhia de Jesus (fundada em 1540). Muitos jesuítas notáveis não aceitaram a restrição mental; por exemplo, Suarez (+1617) a considerava como expediente apenas provavelmente licito, ao passo que A. Coninck (+1633), Laymann (+1635) e De Lugo (+1660) a rejeitaram formalmente.