O crime misericordioso de Suzana Vandeput

O caso Vandeput despertou vivo interesse por parte do público da Europa e da América, pois tem algo de inédito. É muito sintomático da vida do séc. XX, dando margem a reflexões sobre conceitos básicos. Sendo assim, dedicar-lhe-emos a nossa atenção, referindo primeiramente os fatos ocorridos para, a seguir, passar à consideração de certas normas da Moral.

1. Os fatos

Relataremos sucessivamente o delito, o trâmite do processo e as repercussões do mesmo entre os comentadores internacionais.

a) O delito

Suzana Coipel Vandeput era funcionária de uma Companhia de Eletricidade em Liège (Bélgica), quando, aos 23 de maio de 1962, numa Clínica da cidade, deu à luz uma menina, para a qual escolhera o nome de Corina. A genitora adormecida foi levada da sala de partos para o quarto, enquanto o Dr. Werts mostrava o bebê a seu pai, Jean Vandeput, assim como à avó materna, Sra. Fernando Yerna Coipel: era um ser humano que não tinha nem braços nem mesmo espáduas; à parte inferior do pescoço prendiam-se dois dedos de um lado, e quatro dedos do outro lado, mediante um esboço de mãos; os pés eram disformes; o ânus não funcionava normalmente, fazendo-se toda a evacuação pelas vias urinárias.

Durante cinco dias conseguiram que a genitora não avistasse a criança: findo este prazo, porém, a Sra. Vandeput, apreensiva, exigiu que lhe mostrassem a menina… Ao vê-la, desmaiou, tendo que ser tratada com soporíferos em altas doses.

Entrementes a avó materna encarregou-se de consultar o Dr. Jacques Casters, médico do bairro, que todos tinham em elevada consideração: pediu-lhe um meio suave de fazer desaparecer a criança. Replicou então o clínico — como ele mesmo confessou mais tarde — que «o papel de um médico não é o de matar, mas que outros poderiam assumir a responsabilidade». Acabou, todavia, cedendo às instâncias, e aos 29 de maio, quando a Sra. Vandeput deixou a Maternidade para voltar ao lar, receitou injeções que provocariam a eutanásia; sem demora, porém, foi buscar a receita em casa da família Vandeput, entregando outra, que prescrevia comprimidos, os quais produziriam o envenenamento da criança sem deixar vestígios no corpúsculo da mesma.

Então a avó materna reuniu o pai, o tio e a tia da menina e, após séria deliberação, resolveu com eles exterminar a vida do pequeno «monstro». A Sra. Suzana estava plenamente de acordo com a decisão; quis executá-la pessoalmente; por conseguinte, de posse do veneno, lançou-o na mamadeira da criança, a qual bebeu pela última vez, adormeceu e nunca mais acordou…

Enquanto isto se dava, os funcionários da Maternidade, cientes das intenções da família, tomaram providências para impedir o morticínio: a parteira informou o Dr. Gottschalk, o qual, por sua vez, telefonou para a polícia (pedindo, aliás, que guardassem sigilo a respeito da sua intervenção). Assim se explica que, logo após o delito, os familiares de Corina tenham sido capturados por policiais; o mesmo sucedeu ao Dr. Casters, que receitara o veneno.

O episódio tomou rapidamente grande vulto, pois os jornais e as emissoras radiofônicas passaram a explorá-lo.

Num sábado à noite, uma estação de rádio propôs ao público a questão: «Condenarias a Sra. Vandeput?»

Na primeira meia-hora, muitos e muitos ouvintes responderam por telefone; 75% não aceitavam a condenação da infeliz genitora. A seguir, o número de respostas negativas tornou-se ainda mais avantajado.

Finalmente em novembro de 1962 o Tribunal de Liège passou a julgar o caso, em meio ao mais vivo interesse do público.

Examinemos, pois, os principais tópicos dos debates.

b) O processo

O promotor de justiça, Dr. Cappuyns, partia do principio de que a lei proíbe matar um inocente. Ora os acusados reconheciam que tinham cometido, ou ajudado a cometer, uni morticínio: a avó impusera à família a decisão fatal; o pai «deixara as coisas correr»; a genitora dera o leite envenenado à criança, ao passo que a tia Mônica fôra buscar na farmácia a droga prescrita pelo Dr. Casters.

De modo especial, Cappuyns apontava a responsabilidade dos dois varões: o médico Dr. Casters e o genitor da menina. Referindo-se a este, afirmava :

«Se uma só das cinco pessoas acusadas tivesse dito ‘Não’, o crime não haveria sido cometido. Se João Vandeput, por uma vez que fosse, houvesse mostrado energia, teria dito: ‘Essa criança tem direito à minha proteção’».

O promotor também analisou as causas que, conforme a lei, poderiam eximir de culpa o ato de envenenamento: demência, legítima defesa, coação irresistível, dever imposto pelo próprio juiz. Tendo mostrado que nenhum desses motivos excusantes podia ser evocado no caso, dirigiu aos jurados o seguinte apelo:

«Peço-vos que respondais afirmativamente à questão da culpabilidade de Suzana Coipel e digais que os outros acusados são coautores ou, ao menos, cúmplices».

Embora defendesse tão enérgica sentença, Cappuyns não deixou de manifestar sentimentos muito humanitários:

«Por mais respeitável que tenha sido o motivo do crime, ele não me parece suficiente para justificar impunidade. Só poderia ser considerado como remota circunstância atenuante.

Nem vós nem eu podemos penetrar nas consciências (dos réus). Suzana Coipel diz ter assim procedido porque sua filha jamais haveria sido feliz. Esta resposta é sincera, mas não creio que seja de todo exata. Com que direito os genitores ou… a avó ou um médico estranho estipulam que determinado gênero de vida não vale a pena de ser vivido? Por que Corina Vandeput não poderia usufruir da sua chance?»

Frente ao bem comum da sociedade, Cappuyns manifestava ter consciência da sua responsabilidade: absolver os acusados constituiria terrível precedente, cujas consequências poderiam ser gravíssimas:

«Peço-vos, em nome da sociedade, digais que são culpados. Responder ‘Não’ seria abrir a porta a todos os abusos. Equivaleria a responder ‘Não’ (isto é, desabonar) a todos aqueles que se sacrificam, desde o sábio que estuda no seu laboratório até a mais humilde enfermeira; equivaleria a dizer ‘Não’ aos milhares de genitores que, esparsos pelo mundo, não querem ser covardes».

«Sei que tenho de fazer frente à parte da opinião pública… Vivemos num mundo em que o homem da rua deseja encontrar, todas as manhãs, uma página inteira do seu jornal consagrada à coragem de Suzana Coipel (Sra. Vandeput); contudo pouco se incomoda se não encontra uma só linha a respeito da coragem cotidiana das genitoras cujo amor é tão amplo quanto o infortúnio de seu filhinho».

E o promotor sublinhava que não se poderia apontar algum traço propriamente materno no comportamento de Suzana Coipel.

Não obstante a candente argumentação de Cappuyns, o júri de Liège, após duas horas de deliberação definitiva, respondeu «Não» a todas as questões formuladas pelo presidente da Corte. Chegou mesmo a negar que houvera morticínio voluntariamente cometido, embora os próprios réus tivessem reconhecido que haviam praticado tal crime:

«Consta que um homicídio tenha sido voluntariamente praticado a fim de acarretar a morte de Corina Vandeput?

— Não.»

Os comentadores do caso têm-se visto surpresos ante tal sentença do júri. Como entender que doze homens honrados e honestos da Bélgica tenham podido proferir tal veredito?

Procurando sondar as causas do pronunciamento, indicam as seguintes:

1) O Código Penal belga não estabelece distinção entre assassínio (morticínio cometido com ódio ou más intenções) e eutanásia (suave extermínio da vida inspirado por «benevolência» ou «compaixão»). Ora os jurados, não querendo classificar a conduta de Suzana Vandeput e seus familiares como assassínio, viram-se, por deficiência da lei, obrigados a abster-se de condenar o extermínio de Corina. Disto não se poderia concluir que não viam mal algum no comportamento da família Vandeput; apenas não encontraram na jurisprudência belga a categoria adequada para o apontar.

2) A opinião pública, favorável à absolvição da família Vandeput, por certo influenciou a atitude dos jurados. Ora o povo nos debates públicos sobre o caso alegava, entre outras coisas, que

— seria injusto condenar os acusados no processo de Liège se não se julgassem e condenassem previamente os fabricantes, os importadores e distribuidores da talidomida, remédio alemão tranquilizante que a Sra. Vandeput ingeriu no início da gestação com grave detrimento para a prole. A causa primeira de todo o drama seria, conforme este modo de ver, a talidomida; por conseguinte, se não se proferisse algo contra os primeiros responsáveis da tragédia, a muitos cidadãos parecia iníquo sentenciar a Sra. Vandeput (o Dr. Cappuyns, porém, replicava que a talidomida não exercera influência alguma na consciência de Suzana, pois esta, ao decidir a morte da criança, nem se lembrava de ter tomado talidomida);

— seria, outrossim, injusto condenar os familiares de Corina Vandeput após alguns sérios acontecimentos recém ocorridos na Bélgica. Com «feito, em julho de 1960 as esposas de oficiais e de autoridades belgas residentes no Congo foram violentadas por soldados congoleses amotinados; voltando à Bélgica, essas pessoas recorreram ao aborto; contudo não sofreram sanção alguma por parte das autoridades governamentais.

Daí preconizar-se a mesma indulgência para com a Sra. Vandeput. — É claro que tal alegação carece de todo valor, pois um mal não justifica outro; contudo, quando no sábado 10 de novembro, os advogados de Suzana lembraram o fato, este ecoou como bomba na assembleia do tribunal, provocando ainda maior compaixão para com a acusada.

Eis o que mais importava salientar dentre os traços característicos do processo de Liège. Interessa-nos agora verificar como repercutiu na opinião internacional a benigna atitude do júri belga.

c) As reações

1. Imediatamente após a publicação do benigno veredito, o povo belga deu vivas provas de júbilo, exaltando os acusados como genuínos modelos de coragem heroica. Do seu lado, a imprensa socialista belga pôs-se a celebrar o episódio qual «vitória obtida sobre a Igreja».

Não tardaram, porém, a se fazer ouvir de toda a parte vozes que desaprovavam categoricamente o alvitre dos juristas de Liège… a começar pela própria Rússia.

Com efeito, o cientista russo Kisselev, num Congresso reunido em Mônaco aos 16 de novembro de 1962, declarou que a firma produtora da talidomida deveria ter sido julgada em primeiro lugar, sim; mas que o comportamento da Sra. Vandeput não mereceria, de modo algum, ser aprovado; e acrescentou:

«A medicina soviética jamais concordará com uma Moral biológica. Nós, médicos, julgamos que todos os homens devem viver. Jamais poderemos saber de antemão quais as portas que a ciência nos permitirá abrir. Assim é que durante muito tempo ninguém imaginava poder salvar os ‘filhos hemolíticos’, isto é, as crianças nascidas de pai e mãe portadores de Rh diferentes; tais crianças eram, na maioria dos casos, ameaçadas de debilidade mental ou de paralisia total. Ora, nos últimos anos a ciência tem conseguido salvar esses pequeninos em 80 ou 90% dos casos, proporcionando-lhes vida normal mediante transfusão total ou completa mudança do seu sangue» (Agência «France-Presse», 16 de novembro de 1962).

O cientista francês Jean Rostand, embora não professe a fé cristã, também fez ouvir o seu desacordo com o tribunal belga. Com efeito, os repórteres do periódico francês «Carrefour» perguntaram-lhe se as autoridades deveriam permitir a eutanásia sem controle; ao que Rostand respondeu:

«Direi explicitamente que não. Não sei em absoluto o que será o mundo dentro de cinquenta anos. A consciência coletiva evolui; sou o primeiro a reconhecê-lo. O processo de Liège acarretará numerosas consequências em vários setores. Minha repulsa não quer dizer que desprezo os acusados de Liège. Compreendo muito bem todas as razões que alegaram. Não quero tomar a atitude de acusador; não é este o meu papel; acontece, porém, que me pedis uma opinião pessoal. Recusar-me-ei sempre a destruir uma vida humana, qualquer que ela seja» (cf. «La Croix» de 18 de novembro de 1962).

A revista «Le Monde» de 13 de novembro de 1962 publicou as seguintes observações assinadas pelo Dr. Escoffier-Lambiotte:

«Várias das regras de Deontologia médica, dentre as mais fundamentais e as mais sagradas aos olhos do médico, foram violadas, a quanto parece, no decorrer do drama de Liège.

Em primeiro lugar, tratava-se de segredo médico, valor intangível, direito sagrado do doente e dever sacro do médico, em virtude do qual as relações entre o médico e seu cliente se desenvolvem em clima de confiança absoluta e irrestrita. Será lícito indagar se o segredo médico foi devidamente respeitado pelo parteiro e pelo pediatra aos quais se confiara a paciente, Sra. Vandeput.

Tratava-se, a seguir, de respeito à vida. Esta noção também é, para a classe médica, algo de absoluto e sagrado… O Dr. Casters…, não obstante, infringiu essa ‘regra de vida’, sobre a qual estão baseados tantos séculos de Medicina».

Mais ainda: a Ordem dos Médicos da França publicou, aos 15 de novembro de 1962, uma declaração assinada por seu presidente, o professor Vernejoul, a qual realçava que «o médico pode e deve atenuar os sofrimentos», mas que «nem o morticínio dos doentes nem a eliminação dos enfermos são compatíveis com a nossa civilização». Além disto, a Ordem dos Médicos fazia, sua a seguinte moção votada em 1949 pela Academia das Ciência Morais e Políticas:

«A Academia rejeita formalmente todos os métodos destinados a provocar a morte de indivíduos tidos por monstruosos, disformes, deficientes ou incuráveis, porque, entre outros motivos, toda doutrina médica ou social que não respeite sistematicamente os princípios absolutos da vida, dá fatalmente lugar a abusos criminosos e mesmo ao sacrifício de indivíduos que, apesar das suas enfermidades físicas, poderiam grandiosamente contribuir para a construção duradoura da nossa civilização, como o comprova a história»

(texto reproduzido pelo «Osservatore Romano» de 23 de novembro de 1962).

O próprio Dr. Casters, envolvido no processo, deu, a saber, que não desejava que a sentença indulgente a ele aplicada gerasse uma praxe comum na jurisprudência — o que bem mostra as reservas com que esse estudioso encarou o procedimento dos jurados. Com efeito, o jornal belga «Vers L’Avenir» publicou a seguinte notícia:

«Interrogado domingo à noite por um colega, o Doutor Casters respondeu: ‘A sentença do tribunal de Liège não é mensagem para a sociedade; ela só diz respeito a mim. Foi a mim apenas que a justiça dos homens protegeu num caso particular e em circunstâncias especiais. O que me parece muito grave é que se possa julgar que tal sentença constituirá norma de jurisprudência. Intenciono continuar a minha existência atenuando os sofrimentos e protegendo a vida».

Bastem estes testemunhos provenientes dos meios médicos e científicos para nos dar a conhecer a posição dos estudiosos civis frente ao júri belga.

2. Quanto às autoridades eclesiásticas, é notória a sua atitude desfavorável à sentença de Liège. Limitar-nos-emos a citar a carta do episcopado da Bélgica dirigida aos respectivos fiéis diocesanos em 12 de novembro de 1962, carta que se distingue tanto por sua compreensão paterna e benévola como por sua firmeza de princípios:

«O processo de Liège tem comovido profundamente a opinião pública, não somente a do nosso país (Bélgica), mas a do mundo inteiro. Compreendemos muito bem o sofrimento dos genitores, para os quais o faustoso acontecimento que eles aguardavam, se transformou em dolorosa provação; e compartilhamos profundamente a sua dor. Não intencionamos julgar a consciência dos autores do angustioso drama daí decorrente. Mas, quaisquer que sejam as circunstâncias atenuantes evocadas em favor dessas pessoas, cabe-nos o imperioso dever de lembrar os princípios da Moral natural e cristã.

‘Não matarás’. Tal é a lei divina. Ninguém, nem o indivíduo nem a sociedade, tem o direito de ferir diretamente a vida de um inocente. Como declarava Pio XII, ‘não há homem, nem autoridade humana, nem ciência, nem indicação médica, eugenésica, social, econômica ou moral, que possa invocar ou constituir um titulo jurídico válido para dispormos direta e deliberadamente de uma vida humana inocente’ (Discurso de Pio XII ao Congresso das Parteiras, em 29/X/1951, A.A.S.; 1951, 838). Por conseguinte, ninguém, por julgar que uma vida humana será necessariamente infeliz, tem o direito de concluir que é preciso impor-lhe um fim. A lei de Deus protege o pequenino que acaba de ser chamado a levar existência humana, assim como ela protege o adulto que esteja privado do exercício de suas faculdades mentais ou que sofra de algum mal incurável. Qualquer derrogação imposta a esta lei abre caminho para o arbitrário. Leva aos mais graves abusos, que a consciência humana nunca deixou de reprovar; constitui, portanto, séria ameaça à sociedade. Aos cristãos toca a obrigação de desaprovar e condenar qualquer forma de eutanásia; cabe-lhes dar provas de quão profundamente eles estimam o valor que pode ter um sofrimento humano. Hão de mostrar quanto apreciam a grandeza de alma e a delicadeza de corações daqueles que envolvem em amor duplicado às criaturas desfavorecidas pela natureza. A caridade e o espírito de abnegação que inspiram tal conduta constituem a mais bela homenagem prestada ao mistério da vida e à dignidade da pessoa humana».

(Cf. «Osservatore Romano», 23 de novembro de 1962)

A Rádio Emissora do Vaticano também chamou a atenção para o fator «talidomida» e para os deveres de consciência que incumbem aos respectivos comerciantes:

«Numerosos setores de atividades humanas pediriam hoje em dia vigilância mais atenta e escrupulosa. As tragédias provocadas pela venda, em comércio, de certos produtos farmacêuticos, entre os quais a talidomida, denunciam um progresso e uma ciência que abstraem das responsabilidades morais; em vez de facilitar e encorajar o respeito à lei moral, tal progresso e tal ciência acarretam situações e provocam alternativas diante das quais infelizmente mais de uma pessoa sucumbe. Quem assim cai, é culpado. Mas aqueles que induzem em tentação e provocam a queda, seja por leviandade, seja por inconsciência, não podem ser considerados inocentes».

(despacho da Agência «France-Presse», reproduzido pelo jornal belga «Vers 1’Avenir» de 12 de novembro de 1962)

Estes documentos resumem, com muita clareza, o pensamento da Igreja a respeito do processo de Liège. Somos assim naturalmente levados a considerar os grandes princípios doutrinários que entraram em causa neste solene episódio da história, motivando finalmente a repulsa à sentença benigna.

2. Os princípios doutrinários

Já em «P. R.» expusemos as grandes verdades sobre as quais se apoia a consciência cristã para repudiar qualquer atentado à vida do inocente; cf. 34/1960, qu. 4 (a respeito da eutanásia, categoria dentro da qual se insere o caso Vandeput) e 57/1962, qu. 4 (a respeito do suicídio).

Em consequência, aqui lembraremos apenas os grandes traços do que já foi dito nos artigos acima, e acrescentaremos algo sobre o valor da vida humana.

a) Respeito à vida

Desde as primeiras páginas da Escritura Sagrada, o Senhor Deus inculca que é o Supremo Senhor da vida e da morte. Tenha-se em vista, por exemplo, o mandamento: «Não mata- rãs» (Êx 20,13), preceito este frequentemente repetido nos livros bíblicos; cf. Êx 23,7; Dt 5,17; 33,39; Sab 16,13; Mt 5,21; 19,18; Mc 10,19; Lc 18,20; Rom 13,9.

Não há dúvida, o Senhor delegou e delega aos homens, em certas circunstâncias, o domínio sobre a vida, quando se trata não de um inocente, mas de um réu cuja existência na sociedade seja nociva ao bem comum (cf. Núm 15, 35s; Rom 13 4). Assim torna-se lícito matar em casos de 1) guerra justa,.2) legítima defesa, 3) sentença capital proferida pela autoridade legal. Fora destas situações, é contrário à consciência cristã dispor da vida alheia; nem mesmo a compaixão para com o sofrimento do próximo poderia justificar tal atentado (eutanásia).

É o que o S. Padre Pio XII quis lembrar na sua encíclica sobre o Corpo Místico:

«’Os membros do nosso corpo que julgamos menos dignos de honra, são os que cercamos de maiores cuidados” (1 Cor 12,22s).

Afirmação muito importante que… julgamos ter de repetir ao verificar, com profunda aflição, que os seres disformes, dementes ou afetados de doenças hereditárias são tratados como fardo importuno para a sociedade e, por vezes, privados da vida terrestre. Tal procedimento chega a ser exaltado por algumas pessoas como se se tratasse de progresso humano, plenamente consentâneo com o bem comum. Ora qual o homem sensato que não compreende que tal conduta se opõe violentamente não só à lei natural e divina gravada no coração de cada um de nós, mas também ao bom senso de todo indivíduo civilizado? O sangue dessas criaturas, mais caras ao nosso Redentor justamente por mais merecerem compaixão, clama da terra a Deus».

De acordo com essas ideias, o S. Oficio em 1940, respondendo a uma questão atual, recusava as táticas do racismo e da eugenésia nacionalista:

«Será lícito, por ordem da autoridade pública, matar diretamente aqueles que, embora não tenham cometido crime digno de morte, estão impossibilitados, em consequência de algum defeito físico ou psíquico, de servir à nação, sendo por isto considerados como fardo e entrave da força e do vigor do país?»

A resposta foi clara: «Não é lícito, pois isto contraria tanto ao direito natural como ao direito positivo divino» («Acta Apostohcae Sedis» 1940 [XXXII] 533).

Este documento sugere algumas reflexões sobre

b) O valor e o sentido da vida humana

Os autores do crime de Liège deram a entender que uma criança mutilada ou disforme não pode chegar a possuir os valores que tornam a vida humana digna de ser vivida.

Esta atitude desperta uma consideração a respeito da objeção não raramente feita aos cristãos: diz-se que estes ensinam uma «Moral do Além», cuidando apenas de «salvar as almas» e pouco atendendo à vida terrestre ou corpórea como tal.

O simples fato de que a consciência cristã bradou contra o atentado de Liège bem mostra quanto esta censura é infundada.

A menina Corina recebeu o santo batismo; está no céu e goza da visão beatífica. A casa do Pai, para onde ela se foi prematuramente, foi-lhe mais acolhedora do que as nossas mansões terrestres.

Será que, por isto, os genitores e responsáveis cumpriram seus deveres cristãos com relação à criança?

Não. Não lhes podia bastar a certeza de que salvariam essa alma, retirando-lhe imediatamente a existência no corpo e neste mundo… Damos aqui a palavra a abalizado teólogo contemporâneo, Ph. Delhaye:

«Não podemos admitir que os genitores tenham privado essa menina da ocasião de assumir a responsabilidade da sua vida espiritual e de tomar uma posição pessoal (engajamento) no curso das coisas deste mundo. Ela teria podido unir-se ao mistério cristão, que é sofrimento e alegria, em comunhão com a morte e a ressurreição de Cristo. Quem sabe se, como outros enfermos, ela não teria compensado a sua deficiência física por um desejo mais ardente do que o do comum das pessoas, desejo de praticar o bem e de contribuir para o alívio de tantas misérias da condição humana? Os psicólogos verificaram frequentemente o seguinte : poucas são as crianças e poucos os adultos qi^e, afetados por uma desgraça qualquer, não procurem sublimar os seus males mediante uma autêntica criação de valores.

Mas, dirão, Corina teria sido infeliz!

Confesso que fico perplexo diante desta objeção… como diante de certas respostas que lhe são dadas. Tal objeção supõe que, para ser feliz, deve a pessoa estar no gozo de uma constituição normal e que os indivíduos dotados de organismo normal vivem na felicidade. Bem sei que existe um mito de felicidade e que passarei por pessimista se eu me erguer contra ele. Pouco importa; no que me concerne, verifico que os meus trabalhos de historiador mais frequentemente me deram a conhecer pessoas infelizes do que pessoas felizes. Nem ousaria dizer que os contatos com os meus contemporâneos alteram notoriamente este ponto de vista. Há, em toda existência humana, certa quota de felicidade e certa quota de infortúnio. Isto varia de indivíduo para indivíduo, em parte por causa dos acontecimentos de cada dia, mas também em parte por causa do temperamento e das disposições subjetivas de cada pessoa… Muito mais numerosos do que pensamos, são os homens e as mulheres que se sentem insatisfeitos consigo mesmos. Basta lembrar os inúmeros complexos de inferioridade com que se defrontam os sacerdotes e os psicólogos.

Um ‘filho de papai rico’, diante do seu trem elétrico que custa um preço louco, talvez não seja mais feliz do que um de família pobre, para o qual tenha papai conseguido ajuntar as armas de um índio sem valor comercial… Por isto julgo que a felicidade é algo de íntimo, que não se expõe em praça pública; quem afirma com impetuosidade (para não dizer:… com agressividade) que é feliz, dá margem a que se ponha em dúvida a solidez desse bem-estar.

Muito oportuno seria mostrar como pessoas fisicamente mutiladas podem conquistar numerosos valores, não somente cristãos ou divinos, como a vida da graça, mas também naturais. O que dá valor a uma criatura é o fato de que ela realize plenamente a tarefa para a qual foi criada. O valor de um olho está em ver; o de um cavalo está em correr e ser forte. Contudo o valor de um homem — já Aristóteles o notava — é muito superior, pois então se trata de desenvolver faculdades intelectuais. O que esse autor pagão (Aristóteles) dizia referindo-se ao conhecimento, um cristão, ou mesmo apenas um homem influenciado pelo Cristianismo, o dirá referindo-se ao amor, à vontade de praticar o bem, de trabalhar para o autêntico progresso do gênero humano. A enfermidade de Corina Vandeput tê-la-ia impedido de participar da solidariedade humana? Como não teria superado essa enfermidade no decorrer da sua infância e dos seus anos de formação? Em consequência, não poderia tornar-se um foco de generosidade e de alegria?

Tem-se a impressão de que as controvérsias que se travaram em torno do caso Vandeput, eram movidas por duas concepções de vida opostas entre si: uma concepção, toda egoísta e egocêntrica; e outra, animada pelo desejo de se dar e de praticar o bem. O cristão, mais do que qualquer outro indivíduo, está habilitado a compreender a sublime filosofia do dom…; contudo não faltam espíritos generosos que, usando da razão apenas, percebem a veracidade das palavras de Jesus referidas por S. Paulo: ‘Mais vale dar do que receber’ (At 20,35).

Corina recebeu exígua porção de dons físicos. Quem sabe se não teria podido superar essa dificuldade e transformar a sua vida em fonte de valores para si mesma e para os outros?»

(«L’Ami du Clergé», 10 de janeiro de 1963, pág. 24-26).

Eis algumas ideias que devem necessàriamente orientar a consciência do cristão todas as vezes que se depare com um caso de eutanásia ou de atentado contra a vida de um inocente, qualquer que seja o pretexto evocado no caso. A vida humana tem valor, e pode ser altamente fecunda, independentemente dos resultados materiais ou palpáveis que ela produza para a sociedade; por isto não é lícito exterminá-la, desde que o indivíduo (tornando-se delinquente e nocivo ao bem comum) não acarrete sobre si mesmo a grave sanção da morte, sanção esta que, em nossos tempos, se evidencia cada vez menos oportuna, cada vez menos recomendável.

A Moral cristã não se opõe ao uso de analgésicos e narcóticos, desde que aliviem realmente as dores do paciente, sem lhe tirar diretamente a vida; cf. «P. R.» 34/1960, qu. 4.

3. Observação complementar

A título de ilustração (e de consolo para quem os princípios precedentes parecerem demasiado rígidos), não a título de argumento propriamente dito, poder-se-á acrescentar o seguinte:

Corina nascera tão mutilada que havia motivo para recear, viesse em breve a sofrer grave crise de saúde; talvez não se pudesse então assegurar a sua subsistência mediante os recursos ordinários da medicina; só restaria o emprego de algum remédio ou tratamento extraordinário (isto é, muito difícil, caro ou raro) para lhe conservar a vida. Pois bem; nessas circunstâncias poderiam seus pais e responsáveis reexaminar o caso: embora a Moral cristã muito estime a vida humana como tal, ela ensina que não há obrigação de recorrer a meios extraordinários para conservar a existência de alguém (cf. S. Afonso de Ligório, Theologia Moralis, De V praecepto n» 376; Saiba, Theologiae Moralis Summa II. Madrid 1953, n’ 254, pág. 268s). Por conseguinte, caso os genitores de Corina, .naquelas circunstâncias, quisessem deixar que se extinguisse a vida de sua filha pelo simples fato de não recorrerem a expedientes muito caros e difíceis, isto é, extraordinários, poderiam fazê-lo sem lesão da Moral cristã.

Os casuístas, porém, frisariam bem que seria preciso aguardar tais circunstâncias novas. Quanto aos psicólogos, observariam que, justamente nessas circunstâncias novas, os pais de Corina talvez desejassem tentar todos os meios para salvar-lhe a vida, pois teriam tido tempo para se afeiçoar à menina. Os médicos, por seu lado, não se confessariam tão facilmente desarmados.

Pergunta-se naturalmente: que se entende por recursos extraordinários da Medicina?

A resposta há de ser um tanto vacilante ou relativa, dados os progressos da Medicina moderna e as possibilidades de que cada paciente disponha para tratar de sua saúde.

Um inquérito recentemente efetuado em onze hospitais dos Estados Unidos deu os seguintes resultados: os diretores de oito desses estabelecimentos consideraram como meios normais e, por conseguinte, obrigatórios, para salvar a vida de um recém-nascido, a tenda de oxigênio e a transfusão de sangue. Quanto à alimentação subcutânea, somente seis hospitais a julgaram recurso ordinário e obrigatório (pois é muito difícil descobrir as veias de um pequenino recém-nascido).

Em certas regiões, a operação de uma «criança roxa» (isto é, de sangue muito intoxicado) pode ser considerada (e de fato é considerada) como expediente raro e excepcional, ao qual os genitores não estão estritamente obrigados a recorrer.

Certas curas ou intervenções cirúrgicas que só se podem fazer no estrangeiro, com grandes despesas de dinheiro e de tempo, são geralmente tidas como recursos extraordinários que a ninguém obrigam em consciência.

Em conclusão: verifica-se que a grandeza de alma e o heroísmo dos genitores não consistem em eliminar a vida de seus filhos, mas, sim, em dar tudo para afirmar o valor dessa vida, quaisquer que sejam as circunstâncias de saúde corporal em que ela deva decorrer; dentro da criatura humana, há mais do que bens materiais. A atitude dos familiares de Corina, assim como a das assembleias populares tão indulgentes no caso, revelam sentimentalismo vazio ou certa extenuação de ânimo da sociedade contemporânea — fenômeno grave e dolorosamente sintomático.

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