«Discute-se muito o dever de pagar impostos. Bons moralistas autorizam a sonegação dos mesmos. Que há de certo nesses debates?»
Os impostos constituem assunto muito melindroso em nossos tempos dando ocasião a que pessoas sensatas proponham sentenças assaz diversas em torno da obrigatoriedade dos mesmos. Isto se entende bem, pois a questão na vida prática se reveste de facetas múltiplas, ricamente matizadas.
Na presente resposta, esforçar-nos-emos por focalizar os grandes princípios a partir dos quais se deverá procurar a solução , dos casos particulares.
Já que dois são os sujeitos interessados na questão dos impostos — o Estado e o cidadão —, compreende-se que o problema apresente dois aspectos principais: «Estado e impostos», «Cidadão e impostos». É a estes dois títulos que vamos agora voltar a nossa atenção, a fim de poder formular algumas conclusões úteis na vida cotidiana.
1. Estado e impostos
1. É fato óbvio que existe, e deve existir, o que se chama «o bem comum». Este consta dos diversos elementos que a sociedade fornece aos seus membros, a fim de que possam exercer os seus legítimos direitos e conseguir o respectivo ideal.
Assim o bem comum compreende, entre outras coisas, ordem e segurança públicas no interior da cidade e do pais (isto só se obtém mediante tropas que defendam a pátria; policia e tribunais que coíbam os malfeitores; corpo de bombeiros…), assistência social para os indigentes, os enfermos, os anciãos (donde hospitais, asilos, orfanatos, creches, lactários…), educação (escolas), cultura (bibliotecas, museus, monumentos de arte), transportes e comunicações (estradas de rodagem, ferrovias, correios, telefones…), serviços de águas e esgotos, serviços de limpeza pública, rede de eletricidade, etc.
Ora esses diversos fatores do bem-estar público não são dados como tais pela natureza, mas têm que ser conquistados pelos esforços e a colaboração dos cidadãos. O órgão coordenador desses esforços é, por definição, o Estado. Sim, às autoridades civis, e somente a estas, compete fixar certos objetivos de interesse comum da sociedade e determinar as partes que cada cidadão ou cada entidade particular deve desenvolver para a consecução dos mesmos. Com efeito, é o Governo que possui as informações e a supervisão necessárias para orientar os esforços dos particulares em demanda do bem comum. Donde se segue que o Estado, na medida em que propugna- os interesses da sociedade, tem o direito de contar com a contribuição de cada cidadão. Esta contribuição há de ser, na sua forma mais óbvia, monetária ou financeira (tributária).
Na antiguidade, a contribuição dos cidadãos para o bem comum era prestada diretamente sob a forma de serviços públicos («leitourgiai», em grego) ou sob a forma de gêneros naturais (gado, trigo, cereais, …). Hoje em dia, dado o desenvolvimento da técnica e a complexidade dos serviços públicos, é evidentemente mais fácil e manuseável o tributo sob a forma de dinheiro. — É a essa contribuição que se dá o nome de imposto».
Vê-se assim que a cobrança de impostos (ou a cobrança da contribuição de cada cidadão para o bem comum) é direito e dever do Estado. Se não tivessem esse direito, as autoridades civis ficariam de todo impotentes para realizar a sua missão, e o próprio bem comum se ressentiria fatalmente; pode-se dizer que os cidadãos acabariam por perder mesmo a possibilidade de ganhar o seu pão na sociedade.
2. Contudo, ao determinar e exigir os impostos, o Estado deve observar certas normas, a fim de não exorbitar dos seus direitos e merecer o acatamento dos súditos:
a) sejam justas as causas em vista das quais se exigem os tributos. O Governo deverá intencionar realmente o bem comum (tanto do ponto de vista material como do ponto de vista moral) da sociedade; portanto impostos exigidos para festas indignas, campanhas ou guerras iníquas, escolas ímpias, etc. carecem de força obrigatória; cuide o Governo de não dar preferência a interesses de particulares, com detrimento para o bem comum. Mesmo entre as causas de interesse comum, observe a hierarquia dos valores, favorecendo antes do mais os empreendimentos de primeira necessidade (serviços de água, habitação, transportes públicos, etc.);
b) a avaliação dos impostos seja proporcional à posição de cada indivíduo na sociedade. O que quer dizer: cada um contribuirá de acordo com o que possui e o que arrecada como renda. Certos cidadãos e certas instituições que, por seus afazeres mesmos, já contribuem para o bem comum, deverão ser contemplados à parte, podendo mesmo ser dispensados de impostos; seria, sim, contrário à justiça dificultar a existência de pessoas físicas ou morais que se dedicam primariamente ao serviço do próximo;
c) se possível, seja a arrecadação de impostos feita em épocas fixas, devidamente previstas, a fim de não surpreender os contribuintes, causando-lhes incômodos e prejudicando o ritmo normal da vida nos lares e no comércio.
Eis os aspectos principais do problema dos impostos que dizem respeito primariamente ao Estado. Passemos agora ao titulo recíproco.
2. Cidadão e impostos
Aos direitos e deveres do Governo correspondem naturalmente deveres e direitos dos cidadãos.
1. Em primeiro lugar, observe-se que o pagamento de impostos constitui, para os membros da sociedade, uma genuína obrigação.
É o que sempre ensinou a Tradição cristã, baseada, de resto, em textos da S. Escritura mesma.
Tenham-se em vista, por exemplo, as palavras de Jesus, a quem perguntaram os fariseus se era licito pagar tributo a César ou não : «Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus» (Mt 22,17-21).
O sentido exato do adágio se acha explanado em «P. R.» 14/1959, qu. 7.
Este ensinamento verbal, Cristo o confirmou pelo seu exemplo mesmo, mandando que Pedro pagasse o tributo em seu próprio nome e em nome de Jesus; cf. Mt 17, 23-26.
São Paulo se faz eco da mesma norma:
«Sede submissos às autoridades civis não somente por temor do castigo, mas por motivos de consciência. Não é por este mesmo motivo que pagais impostos? Os governantes são agentes de Deus, os quais se aplicam assiduamente à sua tarefa. Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem é devido o imposto; as taxas, a quem são devidas as taxas» (Rom 13,5-7).
Esta diretiva do Apóstolo sugere duas conclusões:
a) o pagamento de impostos há de ser feito não apenas por temor de castigo, como se as leis que os exigem fossem meramente penais (leis que cada cidadão pode licitamente infringir, ficando apenas sujeito a cumprir pena, caso seja descoberto em infração da lei). Trata-se, antes, de um dever de consciência, que obriga os cidadãos diante de Deus e por causa do próprio Deus;
b) em consequência, pode-se dizer que, ao cobrar impostos, as autoridades civis procedem em nome de Deus mesmo (naturalmente, desde que preencham os requisitos da consciência cristã há pouco enunciados).
2. O dever de pagar impostos parece decorrer da natureza mesma social do homem. Este foi feito de tal modo que precisa de viver na sociedade civil, dela recebendo os benefícios necessários à consecução do seu ideal. Fora da sociedade, o homem normalmente não «se realiza». Ora a vida na sociedade se tornaria impossível se cada cidadão não se responsabilizasse por uma parcela das despesas que o Estado, em .prol dos cidadãos, tem que realizar, a fim de fornecer a cada um as enormes vantagens da boa ordem pública, dos meios de transporte, correios, escolas, etc.”
Donde se vê que a sonegação de impostos pode ser tida (de acordo, aliás, com a sentença de bons moralistas) como lesão de justiça comutativa. Há, sim, como que um contrato implícito entre o povo e o Governo. As autoridades se comprometem a promover o bem comum, ao passo que o povo, ao aceitar o Governo, implicitamente contrai a obrigação de contribuir para satisfazer às justas despesas do Estado. Caso alguém não preste a sua contribuição e, não obstante, queira usufruir dos benefícios públicos prestados pelo Governo, viola um contrato implícito.
S. Afonso julga que este modo de ver é o mais comum entre os moralistas, chegando mesmo a citar 23 autores que afirmam a obrigatoriedade dos impostos em nome de um contrato ou da justiça comutativa (cf. Theol. Mor. 1. 3 n. 616).
Quanto à sentença que reduz as leis de impostos à categoria de leis meramente penais, é relativamente recente na história. O seu primeiro arauto parece ter sido Ângelo Carleto, (+1495), na sua «Summa Angélica», obra que encontrou logo um forte opositor na pessoa de Silvestre Prieras O.P. (+ 1523). Ainda hoje autores de certo renome (como Génicot, Berardi…) defendem a posição de Ângelo Carleto, alegando principalmente o modo de ver e agir comum entre os homens de todo e qualquer país em geral: poucos são os que levam a sério a obrigação de impostos; a maioria dos cidadãos apenas se sujeita a sofrer as penas respectivas, caso sejam apreendidos em flagrante sonegação; do seu lado, as próprias autoridades civis parecem não fazer caso de obrigação de consciência; o fato de imporem penas fortes ou mesmo exageradas aos transgressores das leis de impostos mostra que consideram estas leis como meramente penais. — Tais razões são muito fracas; além de se basear numa apreciação superficial da realidade, supõem que a praxe da maioria dos homens seja válido critério para se definir o que é certo e reto.
O S. Padre Pio XII dizia: «Não resta dúvida sobre o dever que toca a cada cidadão de sustentar parte das despesas públicas».
Aludindo a estas palavras, o Sr. Bispo de Tarbes e Lourdes (França) comentava: «Fica, portanto, rejeitada a tese daqueles que ensinam serem as leis tributárias leis meramente penais, as quais só obrigam a quem é apreendido em flagrante contravenção. O pagamento de impostos constitui dever de consciência… Se a minha empresa (comercial ou industrial) dá lucros, não tenho o direito, diante do Estado, de a declarar deficitária» (cf. documento transcrito em Apêndice a este artigo).
Sobre a obrigação de restituição dos impostos sonegados (consequência da tese da justiça comutativa), observe-se o que adiante nesta dissertação será proposto.
Idôneos moralistas julgam que, em vista da séria obrigação de consciência decorrente. das leis de impostos (quando justas), pode alguém pecar gravemente, caso se negue a prestar a sua contribuição (a gravidade, maior ou menor, deverá ser avaliada vez por vez, de acordo com as circunstâncias próprias de cada situação). Se alguém, pelo fato de pagar todos os impostos justos, ficasse privado de recursos para dar esmolas e colaborar em obras de beneficência, teria, não obstante, cumprido seus deveres de caridade, pois os Governos modernos (caso sejam honestos) costumam destinar certa parte das arrecadações públicas a obras de previdência social e assistência aos indigentes (repita-se, porém :… caso os Governos sejam honestos. ..).
Enunciada a posição do Estado e dos cidadãos frente aos impostos, desçamos a algumas conclusões que levem em conta devida a realidade prática de nossos dias.
3. Conclusões
1. Infelizmente, verifica-se que os belos princípios, proferidos no plano doutrinário ou especulativo a respeito dos impostos, na prática são frequentemente solapados e espezinhados. Em vez de haver compreensão mútua entre o Estado e os cidadãos e, consequentemente, colaboração no tocante aos impostos, nota-se desconfiança recíproca como se o Governo e o súdito se sentissem lesados um pelo outro nesse setor. Daí a tendência, de ambos a «defender-se»: de um lado, os cidadãos sonegam os impostos, porque julgam que as autoridades os exageram e não os aplicam aos fins devidos; de outro lado, o Estado tende a elevar os impostos, a fim de conseguir arrecadar ao menos uma quantia razoável para satisfazer às despesas do orçamento público; e, quanto mais uma das partes procura «defender-se», tanto mais a outra se esmera na agressão. Disso só resulta grave detrimento para o bem comum.
Pergunta-se então: Donde parte o mal ? Qual é o primeiro a subtrair-se ao dever: o Estado, que esbanja os bens públicos, ou os cidadãos, que se recusam a colaborar como deveriam?
Difícil é dizer onde e como começa o processo errôneo. O fato é que estamos diante de um círculo vicioso, em que há graves falhas de parte a parte. Por isto, a fim de remediar eficazmente a situação de mal-estar, torna-se imprescindível recorrer à consciência e aos seus ditames espontâneos. Moralistas e sociólogos bem orientados (como Scaipteur, De Marco) falam da necessidade de reeducar tanto o Estado como os cidadãos, avivando em todos a consciência da responsabilidade social e do dever de colaborarem em confiança e benevolência mútuas.
Inegàvelmente, podem-se apontar falhas nos sistemas de cobrança e aplicação dos impostos de cada país: «Muitas vezes, imposições pesadas oprimem a iniciativa particular, freiam o desenvolvimento da indústria e do comércio, desalentam as boas vontades» (Pio XII, discurso citado em Apêndice a este artigo).
Com efeito, nem todas as leis tributárias são justas, nem o emprego do dinheiro arrecadado é sempre honesto. Está claro que às autoridades compete o dever imperioso de remediar a tais deficiências.
É de crer, porém, que as reformas «nas cúpulas» ou nos governos serão sempre tardias e lentas, porque o Governo é geralmente tido como algo de mais ou menos impessoal, com quem ninguém se julga 100% identificado. — Daí a urgência de reforma que toca a cada cidadão em particular; é da renovação moral de cada um que depende a renovação do Governo, das leis e da vida pública. Sem se deter na consideração vã das falhas alheias, procure cada qual avivar em si a consciência de sua responsabilidade pessoal.
Não há dúvida, difícil ou utópico é encontrar alguma lei civil que satisfaça a todas as exigências da justiça individual e social; nada do que é humano, é perfeito. Isto, porém, não deve ser facilmente evocado pelos cidadãos como pretexto para sonegarem impostos; procurem, mesmo nas condições concretas em que os povos vivem hoje em dia, colaborar para o bem comum; evitarão, sim, de um lado, dar alimento à injustiça e à exploração, mas, de outro lado, esforçar-se-ão por não provocar o mal-estar que a sonegação de impostos pode causar (a desordem assim oriunda às vezes é maior do que aquela a que se quer dar remédio mediante a sonegação).
2. O fato de que nem todos os impostos são justos ou são aplicados aos devidos fins, dá fundamento para que muitos moralistas julguem não estar obrigado a devolver ao Estado o cidadão que lhe tenha sonegado impostos.
Quanto à restituição, caso deva ser feita, pode ser empreendida de diversos modos: ou o cidadão paga diretamente ao Estado ou entrega aos pobres e a obras de utilidade pública a respectiva quantia.
3. É mais grave a sonegação de impostos diretos (isto é, impostos sobre a renda e os bens imóveis) do que a de impostos indiretos (isto é, impostos anexos a transações, vendas, contratos, alfândega, correios, etc.). Isto, porém, não quer dizer que ao cristão seja lícito subtrair-se a estes últimos, cedendo ao laxismo ou ao libertinismo.
4. Quanto aos cobradores de impostos e fiscais do Governo, incumbe-lhes grave dever de honestidade no desempenho de suas funções. Existe entre eles e o Governo um implícito contrato de fidelidade no exercício de sua tarefa; a infidelidade, por conseguinte, vem a ser lesão de contrato, no caso. Compreende-se, pois, que não lhes é lícita a aceitação de suborno ou porcentagem em «negociatas» e fraudes. Aceitar tais «benefícios» equivale não somente a um ato momentâneo de desonestidade, mas também a criar um clima de depravação e ganância cada vez mais venenoso para a ordem pública. Estão, pois, obrigados a devolver ao Estado (caso se trate de imposto justo) a quantia que eles tenham concorrido para sonegar ao Governo.
Os contribuintes que subornam ou compram os cobradores e fiscais, incorrem em falta moral. Caso tenham motivo justo para não pagar impostos ou taxas, façam-no por outra via que não a do suborno.
5. Os contrabandistas e os seus respectivos clientes cometem falta grave, caso se entreguem de maneira habitual ao comércio de contrabando. Tal prática não somente viola a lei civil, mas também lesa os direitos do próximo, ou seja, de comerciantes que honestamente desejam viver do seu trabalho sem ser prejudicados pela desonesta concorrência dos contrabandistas.
6. Aos moralistas, colocados diante de questões de impostos, convém procurar aproximar os ânimos e sugerir fórmulas que conciliem os justos interesses do Estado e do contribuinte. É relativamente fácil pleitear unilateralmente a causa dos cidadãos ou a do Governo; mais difícil é levar em conta os justos direitos de ambas as partes. Contudo esta deve ser precisamente a tarefa do arauto da consciência cristã.
Apêndice
Para ilustrar os princípios propostos, seguem-se dois documentos de importância capital, provenientes das autoridades eclesiásticas.
a) Trechos da alocução de Pio XII aos membros do X Congresso da Associação Fiscal Internacional realizado em Roma (palavras datadas de 2 de outubro de 1956):
«Nenhuma dúvida subsiste sobre o dever que a cada cidadão incumbe de sustentar parte das despesas públicas. Contudo o Estado, por seu lado, como encarregado de proteger e de promover o bem comum dos cidadãos, tem a obrigação de não repartir entre estes senão as atribuições necessárias e proporcionadas aos seus recursos. O imposto nunca pode, pois, tornar-se para os poderes públicos um meio cômodo de cobrir o déficit provocado por uma administração imprevidente, meio de favorecer uma indústria ou um ramo de comércio à custa de outro igualmente útil. O Estado vedará, a si mesmo todo esbanjamento dos dinheiros públicos; de antemão procurará evitar os abusos e as injustiças da parte dos seus funcionários, bem como a evasão daqueles que são legitimamente atingidos. Os Estados modernos tendem hoje em dia a multiplicar as suas intervenções e a assegurar um número crescente de serviços; exercem controle mais estrito sobre a economia; intervém mais na proteção social de várias categorias de trabalhadores; por isto ás suas necessidades de dinheiro crescem na medida em que avultam as suas administrações. Muitas vezes imposições muito pesadas oprimem a iniciativa particular, freiam o desenvolvimento da indústria e do comércio, desalentam as boas vontades. Por isto, percorrendo a lista dos assuntos tratados pelos vossos Congressos precedentes, vimos com prazer que recomendáveis eliminar da legislação certas disposições nocivas aos verdadeiros interesses dos particulares e das famílias, como ao progresso normal do comércio e dos negócios no plano nacional e internacional. Insistíeis em particular sobre as vantagens de uma legislação mais uniforme, que evite as duplas taxações e os estorvos à circulação internacional dos capitais e dos bens…
Em suma pode-se dizer que as dimensões consideráveis dos Estados atuais exigem cuidados para o reajustamento da legislação fiscal ainda agravada, em mais de um ponto, por um empirismo discutível! Além disto, é capital que os princípios morais que justificam o imposto apareçam claramente tanto aos governantes como aos governados e sejam efetivamente aplicados. Promova-se com critérios sempre mais sensíveis e mais adequados a adaptação do imposto às possibilidades reais de cada um. Então já não será sentida a fiscalização como um ônus sempre excessivo e mais ou menos arbitrário, mas representará num Estado mais bem organizado e mais apto a promover o funcionamento harmonioso das diferentes atividades da sociedade, um aspecto, humilde talvez e muito material, mas indispensável, da solidariedade cívica e da contribuição de cada um para o bem de todos. A sabedoria dos governantes e a eficácia de uma administração devotada e íntegra devem demonstrar à evidência que o sacrifício imposto corresponde a um serviço real e produz os seus frutos» (transcrito da «Revista Eclesiástica Brasileira» 16 [1956] 1015s).
b) Aos 7 de maio de 1959, Mons. Théas, bispo de Tarbes e Lourdes (França), baixava a seguinte nota, que, embora vise diretamente a situação francesa, contém princípios válidos para todo e qualquer cristão:
«O Governo estipula os impostos; está obrigado a fazê-lo, levando em conta exigências da justiça distributiva.
O contribuinte paga os impostos; está obrigado a fazê-lo para obedecer à justiça social.
O presente documento, necessàriamente breve, voluntàriamente incompleto, deixará de assinalar os deveres do legislador, seus erros e suas falhas em assuntos fiscais.
Desejamos apenas esclarecer a consciência dos contribuintes e, sem pretender dizer tudo, lembrar ao menos o essencial numa questão bastante complexa e muito prática.
Como precedem os contribuintes ?
Há contribuintes muito honestos: de boa vontade e da maneira conveniente tomam parte nos encargos do Estado. Serão numerosos esses cidadãos conscienciosos, solícitos dos seus deveres cívicos e desejosos de assegurar o bem comum da nação? Quem o ousaria afirmar?
A mentalidade de muitos, principalmente dentre os mais afortunados, é a seguinte: subtrair-se o mais possível aos impostos é sinal de inteligência e habilidade; é excelente meio de bem administrar os negócios. A fraude nas declarações feitas ao fisco é não somente permitida, mas louvável. O pagamento de impostos escapa ao domínio da consciência. As leis tributárias são meramente penais; resumem-se nesta regra: ‘O desvio não apreendido não é passível de pena (Pas vu, pas pris!)’.
Essa falta de ética tributária é sustentada por adeptos numerosos. Em obra recente, o autor Camilo Scaipteur citava tais palavras de um escritor inglês: ‘Agrada-me o cidadão que rouba o fisco; é ladrão honesto, pois só rouba ao Estado, que é uma abstração’ (Le Devoir fiscal, Desclée de Brouwer).
É grave o fato de que muitos cristãos julgam ser legitima, sem restrição alguma, a fraudulência no pagamento de impostos. Querem a prosperidade da nação; desejam a grandeza da pátria, mas trabalham pelo depauperamento da mesma. Talvez após haver rezado pela França imaginem ter o direito de recusar as contribuições obrigatórias.
Péguy escrevia: ‘Orar pela vitória e recusar-se a combater, é contrário à ética honesta’.
Poderíamos dizer: ‘Orar pela França e subtrair-se ilegitimamente aos impostos, é contrário à ética honesta, é algo de culposo.
Que diz a Igreja ?
Ela sempre falou através dos seus moralistas; verdade é que estes nem sempre estiveram de acordo entre si.
Mas há apenas alguns anos o Papa tratou da questão, de modo que o seu ensinamento pôs termo a certas controvérsias.
Aos 2 de outubro de 1956, Pio XII recebia os 600 participantes do X Congresso da Associação Internacional de Direito Financeiro e Fiscal, estudiosos provenientes de vinte e duas nações. Em sua alocução, lembrou os deveres do Estado e dos cidadãos em matéria de impostos. Dirigindo-se aos cidadãos contribuintes, Sua Santidade formulou esta regra fundamental, à qual darão adesão todos os moralistas, todos os casuístas e todos os fiéis católicos: ‘Não resta dúvida, incumbe à cada cidadão o dever de sustentar parte das despesas públicas.
Comentando essa importante declaração do Sumo Pontífice, o Pe. Bigo, Diretor da ‘Action Populaire’, escreveu: “Existe obrigação de consciência, sob pena de pecado grave, de sustentar parte das despesas públicas’ (Revue de L’Action Populaire, nov. 1958, pág. 1077).
Fica, portanto, rejeitada a tese daqueles que ensinam ser as leis tributárias leis meramente penais, as quais só obrigam a quem é apreendido em flagrante contravenção.
Qual o fundamento do dever que assim se impõe aos cidadãos?
Na citada alocução, Pio XII nos diz que ‘os impostos constituem um aspecto humilde talvez, e multo material, mas indispensável, da solidariedade cívica e da colaboração de cada qual para o bem comum de todos’.
É, portanto, a justiça social que obriga a pagar impostos. Como diz muito acertadamente o Pe. Bigo, ‘o Estado tem o direito de reivindicar para a coletividade, mediante impostos, certos bens que pertencem a cidadãos particulares, e estes, em consciência, estão obrigados a obedecer-lhe, caso a lei não seja manifestamente injusta’ (Revue de 1’Action Populaire, nov. 1958, pág. 1078).
Na prática, que fazer ?
1. O pagamento de impostos é dever de consciência. Deus mesmo mostrou que o quer, ao dizer : ‘Dai a César o que é de César’. Sem tributos adequados, o Governo não pode cumprir a sua tarefa.
2. Deus é verdade e luz. Mesmo diante do Estado e do fisco, é preciso tomemos uma atitude de veracidade, retidão, lealdade, honestidade.
3. Satanás é o pai da mentira. A mentira vem a ser a ruína de toda a vida social. Um homem honesto não mente para quem quer que seja, nem mesmo para o fisco. Ele não engana, não comete fraude em suas declarações. Mentira hábil, mentira bem sucedida fica sendo mentira e, por conseguinte, pecado.
Se minha empresa dá lucro, não tenho o direito, diante do Estado, de a declarar deficitária.
4. A obrigatoriedade de impostos admite, por vezes, exceções. Eis os casos mais frequentes (não são, aliás, os únicos) :
a) Quando o Governo tem conhecimento da sonegação e a aprova implicitamente, elevando, em consequência, as suas taxas, o contribuinte honesto pode, na mesma proporção, diminuir as suas declarações, guiando-se pelo parecer de conselheiros competentes e conscienciosos.
b) Quando, no tocante a determinado imposto, a fraude é geral e o Governo não protesta contra ela, o contribuinte honesto pode acomodar-se ao costume, o qual se torna pràticamente legítimo. Caso não se acomode, o cidadão se sujeita a pagar uma taxa que, sem dúvida, é relativamente injusta.
5. Dever-se-ia empreender uma campanha de honestidade fiscal. O Estado deve dar o exemplo repartindo equitativamente os impostos, administrando sàbiamente os direitos públicos e evitando tudo que favoreça a fraude. Então tomar-se-á mais fácil aos cidadãos ‘caminhar na verdade’, repelindo fraude e mentira.
Pierre-Marie bispo de Tarbes e Lourdes».
(Documento publicado no «Bulletin Religieux du diocèse de Tarbes et Lourdes» aos 7 de maio de 1959, reproduzido em «Documentation Catholique» LVI [19591 n« 1305, col. 757s).