1. Na sua primeira carta aos Coríntios c. 15, São Paulo expõe aos leitores os fundamentos da fé cristã na ressurreição dos mortos.
Cita, antes do mais (nos vs. 20-28), duas razões que evidenciam a solidariedade de todos os homens com Cristo morto e ressuscitado: 1) Cristo ressuscitou na qualidade de «primícias» dentre os mortos (as suas pegadas portanto ainda serão trilhadas por outros defuntos); 2) Cristo é o novo Adão, do qual recebemos a vida eterna após passar pela morte.
A seguir, o Apóstolo recorre a um argumento que vale mais diretamente ainda para os cristãos de Corinto; havia, sim, entre eles quem recebesse o Batismo em favor dos mortos… Ora, qual o sentido dessa praxe, perguntava o Apóstolo, se os mortos não ressuscitam?
«De outro modo (se não houvesse ressurreição), que proveito obteriam aqueles que se fazem batizar em favor dos mortos? Se afinal os mortos não ressuscitam, porque se fazem batizar em favor deles? (1 Cor 15,29).
Poder-se-ia determinar em que consistia o rito assim mencionado pelo Apóstolo ?
2. Conhecem-se aproximadamente quarenta sentenças que visam explicar a passagem acima transcrita… Procuremos pausadamente penetrar o seu significado.
Notaremos, em primeiro lugar, que não se devia tratar de uma prática supersticiosa pagã, pois o Apóstolo a menciona sem a censurar (como, aliás, também não a recomenda explicitamente); o que São Paulo tinha em vista era apenas mostrar aos coríntios como a crença na ressurreição da carne estava arraigada entre eles, já que era pressuposta pela referida praxe. Também não se devia tratar de uso raro em Corinto, uso limitado a pequeno grupo extravagante da comunidade, pois em tal caso a argumentação do Apóstolo pouco alcance teria.
Feitas estas observações, consideremos as duas principais explicações dadas ao texto de São Paulo:
2.1 Muitos catecúmenos (pagãos convertidos) receberiam o Batismo, alimentando a intenção de fazer participar nos efeitos salvíficos deste sacramento ou seus amigos ou parentes que houvessem morrido sem abraçar a fé cristã.
Essa praxe suporia naturalmente que o Batismo realiza seus efeitos de modo mais ou menos mecânico ou mágico ou apenas «por procuração», sem a colaboração direta e ativa do respectivo sujeito ou destinatário. Ora é difícil admitir que São Paulo tenha aludido a tal concepção sem a repreender explicitamente…
Sabe-se que em grupos de hereges dissidentes da Igreja, e somente aí, estiveram em vigor semelhante ideia e semelhante praxe. Assim, entre os marcionistas (séc. II), conforme São João Crisóstomo (hom. 40); o concilio III de Cartago (397) mandou «aos irmãos fracos na fé, não acreditassem que também os mortos podiam ser batizados» (cãn. 6); o mesmo sínodo proibiu outrossim dar a Eucaristia aos corpos de defuntos… De modo geral, os pregadores e escritores eclesiásticos sempre rejeitaram qualquer tentativa de administrar os sacramentos aos mortos, lembrando, a propósito, que após esta vida ninguém pode mais crescer na graça de Deus nem adquirir méritos.
2.2 Em consequência, mais provável do que a anterior é a sentença de muitos autores antigos e da maioria dos modernos, os quais interpretam o Batismo de 1 Cor 15,29 no sentido de uma ablução associada ao sacramento do Batismo com o fito de sufragar as almas dos defuntos; seria um rito distinto do sacramento, comportando, além da ablução, um conjunto de orações comunitárias em favor dos defuntos; ter-se-ia assim o que em linguagem especializada se chama um «sacramental» em benefício das almas dos mortos que precisassem de expiação. Deve-se reconhecer que tal praxe, por muito estranha que pareça, estava bem na linha da espiritualidade do Antigo Testamento; com efeito, já no séc. II a.C. Judas Macabeu mandou oferecer um sacrifício expiatório pelos defuntos, «bela e nobre atitude inspirada pela idéia da ressurreição» (conforme o autor de 2 Mac 12,43); além disto, é notório o amplo uso que os judeus contemporâneos a Cristo faziam da água entendida como elemento de purificação sagrada ou como «sacramental» (praticavam loções de penitência, lustrações rituais, batismos de purificação, etc.); não provocaria surpresa, portanto, a adoção de semelhante costume entre os cristãos coríntios aos quais São Paulo escrevia. — O Apóstolo, como dissemos, não discute a oportunidade ou o valor de tal rito; apenas o menciona como indício de que os coríntios, sufragando os defuntos, admitiam a ressurreição dos mortos.
A praxe suposta por esta segunda sentença ainda apresenta um aspecto doutrinário muito interessante: supõe, sim, que os fiéis viventes aqui na terra possam merecer algo em favor de seus irmãos já falecidos; muitos dos defuntos, embora não tenham morrido em pecado grave, não estariam ainda em condições de gozar da visão de Deus face a face logo após a morte; precisariam de expiação ou purificação a ser obtida após a morte — o que equivale ao conceito católico de purgatório. Conscientes disto, os antigos cristãos (como também os atuais) os sufragariam com ritos e preces, (haja vista na Liturgia contemporânea a praxe das absolvições com água benta dadas aos defuntos, à guisa de sufrágio).
Assim a segunda sentença aqui recenseada supõe uma praxe muito consentânea com os costumes do Antigo Testamento e com a Dogmática cristã. Entende-se então que São Paulo a tenha mencionado sem a recriminar. A sentença, porém, não deixa de ser conjetura…, conjetura, sim, por causa da concisão do texto paulino e por falta de testemunhos paralelos que nos permitam penetrar melhor no pensamento do Apóstolo.