A circuncisão, no. povo de Israel, consistia em um talhe de pele praticado em todo indivíduo masculino oito dias após o seu .nascimento. O Senhor Deus houve por bem impô-lo a Abraão (séc. XVIII a. C.) e a seus descendentes como sinal da Aliança travada com este Patriarca (cf. Gên 17,9-14). Tal devia ser a importância desse rito na legislação de Israel que o varão incircunciso havia de ser considerado como prevaricador da Aliança.
Consciente disto, o rei sírio Antioco IV Epifanes em 167-164 a.C., querendo desviar da religião revelada o povo de Israel, lhe proibiu a praxe da circuncisão (1 Mac 1, 51.63s; 2 Mac 6,10). Os judeus que então frequentavam os teatros e ginásios dos pagãos, eram objeto de escárnio público; para evitá-lo, não poucos apostataram da fé, cancelando, mediante operação adequada, o sinal da circuncisão existente em sua pele (cf. 1 Mac 1,15s).
A respeito do modo de executar a circuncisão, sabe-se que podia ser praticada mediante lâminas de pedra (cf. Ex 4,24-26; Jos 5,3); o seu ministro habitual era o pai da criança ao menos nos inícios da história de Israel (cf. Gn 17,12s; 21,4). No judaísmo posterior, ou seja, nos tempos de Cristo, havia um oficial especialmente designado para cumprir o rito, que obedecia ao seguinte cerimonial:
A circuncisão se dava geralmente em uma sinagoga, na presença do um mínimo de dez testemunhas e geralmente de manhã. Dois assentos eram preparados no recinto sagrado: um para o padrinho do candidato, o outro para o profeta Elias, que os rabinos imaginavam estar presente, baseando-se em uma interpretação sutil do texto de Malaquias 3,1, combinado com 3 Rs 19,10. Fazia-se o talhe na criança em meio a louvores e preces dirigidas a Deus. A seguir, impunha-se o nome à criança, pois o Senhor deu novo nome à Abraão quando lhe prescreveu a circuncisão (cf. Gên 17,5): de então por diante, o menino passava a fazer parte do povo de Deus e devia ser reconhecido por seu apelativo característico. A cerimônia terminava com uma refeição em família. Quando a criança no seu oitavo dia de vida estava doente, esperava-se a cura para fazer a operação ritual. Caso morresse antes do oitavo dia, era circuncidada em seu lençol mortuário sobre o respectivo túmulo, a fim de que não ficasse privada do sinal distintivo da aliança com Deus.
Alguns rabinos afirmavam que o varão, trazendo a marca da circuncisão, não poderia sofrer a ruína eterna após a morte; Abraão, um anjo ou o próprio Senhor cancelariam o sinal sagrado nos pecadores que se perdessem para sempre. Rabi Levi julgava que Abraão ficava à porta da geena (região dos réprobos) a fim de colocar em todo israelita culpado um prepúcio (segmento de pele íntegra) tirado de uma criança falecida sem circuncisão (Bereschith rabba 48 [30a. 49]). — Estas proposições, por muito fantasistas que sejam, têm o valor de atestar a grande estima que Israel devotava à mencionada instituição.
A Origem da Circuncisão
Não há dúvida, era praticado por povos anteriores a Abraão, e ainda hoje continua a ser observado pela sétima parte, aproximadamente, da população do globo…
No Egito antigo o uso da circuncisão é documentado tanto por vestígios existentes em múmias como por baixos-relevos: assim em um túmulo do terceiro milênio a.C. na cidade de Menfis contempla-se a seguinte cena: um operador abaixado aparece a cortar o prepúcio de um jovem posto à sua frente. Dada a insuficiência de testemunhas, não se poderia dizer se a praxe era geral no vale do Nilo. Parece que, a princípio, não tinha significado religioso; veio, porém, a adquiri-lo posteriormente. Em época tardia a circuncisão era praticada até mesmo em donzelas.
Segundo Heródoto (II 104), os egípcios ensinaram a circuncisão aos fenícios e aos sírios da Palestina (notícia de cuja veracidade se pode duvidar, pois os gregos tendiam a exagerar a influência dos egípcios). Os árabes parecem ter recebido dos etíopes o uso da circuncisão, que eles praticavam já antes de Maomé e que, embora não seja mencionada pelo Corão, foi, juntamente com a religião maometana, transmitida aos povos da Ásia Central. Segundo Jer 9,24-26, o rito era observado igualmente por idumeus, amorreus e moabitas, ao passo que os filisteus e os assírios-babilônios não o adotavam (note-se que Abraão, oriundo da Babilônia, não fora circuncidado em sua terra natal).
As descobertas modernas revelaram que a circuncisão estava em voga na América pré-colombiana, como ainda hoje é posta em prática por muitas tribos da África (principalmente ocidental e oriental), da Austrália, da Polinésia e da América do Sul. A par desses, porém, registram-se outros grupos étnicos que sempre se lhe mostraram refratários: assim os indo-europeus, os mongóis, os finlandeses e húngaros.
A mor parte dos povos pratica a circuncisão nos jovens, quando entram em puberdade (os árabes a executam aos treze anos de idade, reproduzindo o que se deu em seu famoso antepassado Ismael; cf. Gên 17,25). Pode acontecer, porém, que seja aplicada a crianças recém-nascidas.
Como a prática se propagou?
A ampla propagação da circuncisão faz crer que vários foram os motivos propulsores de tal prática.
a) Conforme Heródoto (II 37), os egípcios se circuncidavam por motivo de higiene. Esta explicação de ordem terapêutica não encontra grande acolhimento por parte dos etnólogos contemporâneos.
b) Há quem pense tratar-se de medida destinada a favorecer a fecundidade e o ato sexual.
c) Outros preferem explicá-la como sacrifício de primícias oferecido pelo jovem à Divindade logo que entrava na categoria dos varões ou dos guerreiros da tribo, emancipando-se dos cuidados de amas e tutoras. Em favor desta hipótese, cita-se o fato de que, entre os árabes, o rapaz a ser circuncidado se reveste de trajes femininos, que ele depõe logo após a cerimônia. A circuncisão seria assim um ato de declaração de plena virilidade.
Poder-se-ia dizer que o conceito de «circuncisão = sacrifício de primícias oferecido a Deus» é insinuado pelo trecho de Lev 19,23s: a Lei de Moisés mandava que os primeiros frutos das árvores fossem considerados pelos israelitas como “prepúcios” ou incircuncisos, isto é, impuros, pelo espaço de três anos; a ninguém seria lícito consumi-los. No quarto ano, porém, far-se-ia a consagração de todos os frutos numa festa de louvor ao Senhor, festa que devia equivaler à circuncisão, pois de então por diante os mencionados frutos eram incorporados aos objetos de uso do povo de Deus.
d) É possível que alguns povos pagãos tenham atribuído ao rito a função de afugentar os maus espíritos que ameaçavam a vida da criança recém-nascida.
Circuncisão no Judaísmo
Como quer que seja, a circuncisão foi introduzida na linhagem de Abraão séc. XVIII a.C.) com sentido religioso monoteísta, estritamente depurado de qualquer vestígio de politeísmo ou superstição. Já que os israelitas, com sua mentalidade muito rude, precisavam de ser estimulados por sinais concretos, o Senhor dignou-se indicar-lhes a circuncisão qual marca e, ao mesmo tempo, incentivo de sua adesão ao único Deus. Está claro que, aos olhos do Senhor, não possuía nem possui importância o ato material de se talhar a pele; contudo, visto tratar-se de praxe tida em alto conceito pela mentalidade oriental, Javé houve por bem aproveitar-se de tal rito para avivar a consciência religiosa do povo de Israel. Mais uma vez se nos defronta aqui uma expressão da pedagogia divina no Antigo Testamento, pedagogia que, sem pactuar com o erro, sabia tomar o israelita como ele era (com suas categorias infantis de pensamento), a fim de o elevar aos poucos a um nível de filosofia mais polida.
Esta elevação se foi efetuando principalmente por obra dos profetas de Israel (do séc. VIII em diante), que procuravam dar sentido profundamente espiritual ao rito corporal. Assim Jeremias apregoava que a circuncisão carnal não bastava e que era necessário circuncidar, isto é, purificar, o coração para agradar a Deus; circuncidar os ouvidos, isto é, abri-los docilmente, para ouvir a palavra do Senhor (Jer 4,4; 6,10; 9,24), a índole de sinal que tocava à circuncisão carnal (cf. Ez 44, 7,9). O Deuteronômio, por sua vez, exortava Israel a circuncidar o coração para amar a Deus (cf. 10,16; 30,6).
Ensina a Teologia que a circuncisão judaica era um sacramento da antiga Lei mediante o qual os israelitas recebiam a remissão do pecado original. Era justamente pressupondo esta doutrina que São Paulo apresentava a circuncisão como figura (ou tipo) do Batismo cristão (cf. Col 2,11). Note-se, porém, que o rito vigente no Antigo Testamento não produzia seu efeito do mesmo modo que o sacramento da Paixão dc Cristo já realizada; é esta que se aplica ao cristão, quando se lhe administra o Batismo; em conseqüência, o Batismo apaga o pecado em virtude da graça mesma que ele contém. Ao contrário, à circuncisão competia ação muito menos direta; sua função era a de excitar e exprimir a fé na Paixão e nos méritos futuros do Redentor; não produzia efeito por si mesma, nem era em si portadora de graça santificante, mas constituía mero sinal da fé no Messias vindouro, fé esta que obtinha a remissão do pecado original. O adulto que se circuncidasse, fazia diretamente tal profissão de fé, ao passo que outros a proferiam em lugar da criança apresentada à circuncisão (cf. S. Tomás, S. Teol. III 70,4).
Circuncisão no Cristianismo
O Senhor Jesus, oito dias após a natividade, quis submeter-se ao preceito mosaico (cf. Lc 2,21), visto que, no dizer do Apóstolo, Ele houve por bem nascer da mulher e fazer-se súdito da Lei (cf. Gál 4,4).. Estando para realizar a Redenção pela morte de cruz, quis desde a sua entrada no mundo oferecer as primícias de seu sangue. Uma vez, porém, instituído o Batismo cristão, entende-se que a circuncisão, que o prefigurava, tenha perdido a sua razão de ser. É o que o Apóstolo ensina: «No Cristo Jesus (= entre os cristãos) não tem valor nem a circuncisão nem a incircuncisão, mas apenas a fé que se exerce pela caridade» (Gál 5,6; cf, 6,15; Col 3,11).
Não foi fácil aos cristãos convertidos do judaísmo compreender o significado categórico desta afirmação. Não poucos queriam fossem administrados a qualquer catecúmeno tanto a circuncisão judaica como o Batismo cristão (a figura e a realidade plena, tipo e antítipo, simultaneamente). Os Apóstolos, porém, reunidos em Jerusalém no ano de 49 reconheceram definitivamente a ab-rogação da circuncisão (cf. At 15, 19.28s). Após esta deliberação, ainda se fizeram ouvir vozes de «judaizantes», as quais, porém, não conseguiram prevalecer no seio da Igreja.
A circuncisão ainda conheceu um surto efêmero no fim do séc. XII. Foi então praticada pela facção dos «Passaginos», cujo nome se derivava de «passagium», viagem, visto que se passavam provavelmente do Oriente para a Europa em séquito aos cruzados. Foram censurados pelos sínodos regionais de Verona (1184) e Benevento (1378). Ainda hoje — fato estranho — os cristãos cismáticos da Abissínia e do Egito (coptas) praticam a circuncisão, sem, porém, lhe atribuir valor religioso, dando-lhe apenas significado social e nacional.