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Fontes primárias
1. Textos de títulos idênticos no site do Opus Dei;
2. §§1533 – 1690 do Catecismo da Igreja Católica.
Na última aula vimos os dois sacramentos de cura, a penitência e a unção dos enfermos. Hoje veremos os dois sacramentos do Serviço da Comunhão, conforme chama o Catecismo: a Ordem e o Matrimônio. São, podemos dizer, os dois grandes caminhos vocacionais dentro da Igreja.
Com isso terminaremos a segunda parte do Catecismo e nosso estudo dos sacramentos. A partir da próxima aula estudaremos a vida moral Cristã.
Os dois sacramentos que veremos hoje são também dois modos de redenção e elevação de duas instituições que já existiam no mundo antigo, e que ainda existem rudimentarmente em outras culturas: o sacerdócio e o casamento.
Se antes existiam enquanto instituições políticas e sociais, que serviam para pôr ordem na vida social e preservar a existência da comunidade, com a Igreja passaram a, além disso, servir para fazer progredir o Reino de Deus na terra por meio da santificação dos homens. Servem agora para a salvação dos outros: são sacramentos de serviço (§1534).
Ambos os institutos foram elevados pela graça, e agora exercem um papel superior, atuando não apenas na ordem humana e social, mas também na ordem espiritual, na ordem divina.
O sacramento da Ordem
O sacramento da Ordem é aquele que não apenas incorpora o indivíduo em um corpo específico da Igreja, o dos sacerdotes, mas que lhe confere um dom do Espírito Santo que lhe permite “exercer um poder sagrado (sacra potestas), que só pode vir do próprio Cristo, por meio de sua Igreja” (§1538).
Não é, portanto, apenas uma divisão social entre pastores e membros de uma igreja. A diferença não é apenas a formação e o trabalho exercido, que poderia muito bem ser realizado por qualquer pessoa disponível no momento. Não basta nem mesmo ter um bom conhecimento de filosofia e de teologia, ter uma autoridade natural, ser um bom orador, ser amoroso com o próximo e disposto a aconselhar.
Sem o sacramento da Ordem que transmite ao sacerdote o poder sagrado de Cristo, ninguém pode se chamar, legitimamente, um sacerdote. É útil que seja traçada a distinção entre um intelectual – ou mesmo um filósofo –, um pastor e um sacerdote– especialmente hoje, quando tantos leigos arrogam para si uma autoridade espiritual.
Um intelectual é aquele que deriva sua autoridade principalmente da parte da Verdade que conhece pelo seu intelecto e da transmissão dessa verdade àqueles que aprendem com ele. Claro que, em alguma medida, essa autoridade intelectual é autoridade espiritual, pois aquilo que conhece é importante para que a vida seja vivida corretamente.
Mas sua autoridade espiritual se limita à comunicação das verdades conhecidas. Ele nunca poderá prometer a boa vida, a salvação ou mesmo a iluminação aos que o ouvirem e aprenderem com ele. No máximo pode prometer que será sincero na busca e transmissão, e esse exemplo será mais valioso para os seus discípulos do que qualquer conteúdo transmitido.
Um pastor, no sentido protestante, é um pouco mais difícil de definir, pois podem ser tantos quantos forem as comunidades eclesiais. Mas arrisco dizer que o elemento comum é que ele deriva sua autoridade de duas formas principais: ou de uma liderança carismática, dadas suas características pessoais e sua autoridade natural, ou de uma liderança que se coloca como a pura e tanto quanto possível imaculada transmissão do texto sagrado, das Escrituras.
A liderança carismática é, podemos dizer, semelhante a uma liderança política nos nossos tempos democráticos. Importa que o pastor seja visto como imaculado – mesmo que se professe pecador – pelo seu público, e que seja capaz de infundir as emoções corretas no momento correto. Sua autoridade vem dessa capacidade.
Ela se apoia, é claro, na mensagem dos Evangelhos, mas não se perde na enfadonha tarefa de interpretar e compreender publicamente o que as Escrituras dizem. Seu bom uso do texto sacro para evocar impressões, sentimentos e levar à ação, parece- me, é o elemento principal.
Já a liderança, vamos dizer, escriturística, deriva sua autoridade da pretensão de transmitir a pura mensagem do Evangelho, sem deturpá-la com nada que esteja fora dela e que lhe seja estranha – que isso seja impossível é outra questão. O fato é que o que os membros dessa comunidade esperam não é um líder carismático – embora também exijam que não tenha pecados públicos –, ou um intelectual abrangente e profundo, ou mesmo alguém que prometa milagres.
Esperam unicamente alguém que conheça o texto sagrado e que prometa uma transmissão pura, sem muitas interpretações e sem recursos à conhecimentos alheios ao texto. Esperam um pastor que seja a “boca das Escrituras”. Seu papel é transmitir o texto, e só. Todas as outras funções são subsidiárias à essa e não mudam a “essência” da sua autoridade. É perfeitamente possível – e me parece ser a regra – que os pastores não sejam intelectuais. São, podemos dizer, operadores das Escrituras, assim como os advogados hoje são operadores da legislação.
Um sacerdote, porém, deriva sua autoridade de Cristo, por meio da Igreja. Sendo intelectual ou não; carismático ou não; grande expositor e intérprete das Escrituras ou não; o sacerdote continua sendo sacerdote, independente de “aprovação popular”. Continua tendo o poder sagrado de administrar os sacramentos, especialmente a Eucaristia.
A autoridade espiritual de um sacerdote, embora dependa em alguma medida das suas qualidades humanas, é divina. As graças especiais recebidas pelo sacerdote o configuram mais proximamente a Cristo (§§1585-1589), permitindo que represente a Ele melhor nas funções de sacerdote, profeta e rei.
Essa é a dignidade do sacerdócio, maior do que a de qualquer ofício humano. As funções sacerdotais são insubstituíveis, e não, na realidade, necessárias para a continuação do ministério de Cristo (§1536). Não existe e nunca existirá uma Igreja só de leigos.
Por causa da sua elevação em dignidade, quando um sacerdote abandona suas funções privativas para atuar como se fosse um leigo, ele pode até pensar que está fazendo um bem, mas na realidade está agindo mau e com injustiça. Do mesmo modo, um leigo que tome para si as funções privativas do sacerdote está prejudicando a própria Igreja.
O sagrado matrimônio
O matrimônio é uma instituição de direito natural. Isso quer dizer que ela decorre, fundamentalmente, da natureza humana, mesmo que sua forma concreta de existência possa variar dependendo da sociedade. Sendo um instituto de direito natural, é constitutivo para a vida em sociedade e é necessário para o aperfeiçoamento da vida humana, compreendido como o crescimento nas virtudes, como a submissão do corpo à alma e da alma ao Bem.
Porém, dado o pecado original, sua capacidade ordenadora ficou prejudicada, de tal modo que o que deveria servir para o aperfeiçoamento humano, muitas vezes serviu para degradar ainda mais a vida individual e em sociedade. A restauração do matrimônio se deu apenas com a Encarnação do Verbo e a fundação da Igreja.
Isso porque ele foi elevado de uma instituição natural a uma, também, divina. O instituto que decorria da natureza humana, necessário para a manutenção da vida humana, da sociedade e para o aperfeiçoamento dos indivíduos, agora se torna símbolo da união mística de Cristo com a Igreja.
Aquilo que Cristo promete para a Igreja, o matrimônio espiritual com ela, que vive se preparando como uma esposa para seu marido (Ap. 21,2), Ele realiza simbolicamente entre os esposos agora, a começar pelos seus próprios pais, a Santa Virgem Maria e São José.
A monogamia, a indissolubilidade, a fidelidade, a liberdade do ato e a fecundidade (corporal e espiritual) são características do matrimônio Cristão que não fazem sentido para aqueles que estão fora da Igreja. E não apenas porque exigem um grau elevado de virtude dos esposos.
É porque todos esses são aspectos da união de Cristo com a Igreja, que podem ser vividos aqui e agora – em grau inferior, certamente – pelos cristãos. Não sem motivo São Paulo explica o matrimônio analogamente à relação entre Cristo e a Igreja:
“Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres o sejam a seus maridos, como ao Senhor, porque o homem é cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da igreja e o salvador do Corpo. Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos maridos.
E vós, maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim também os maridos devem amar suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama sua mulher ama-se a si mesmo, pois ninguém jamais quis mal à sua própria carne, antes alimenta-a e dela cuida, como também faz Cristo com a Igreja, porque somos membros do seu Corpo. Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão ambos uma só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e sua igreja. Em resumo, cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo e a mulher respeite o seu marido.”
Carta de São Paulo aos Efésios 5,21-33
O que vivemos há algumas décadas, como o aumento no número de divórcios, a criação de institutos jurídicos análogos ao matrimônio, mas sem as mesmas exigências, a diminuição no número de casamentos e, para a Igreja, a quantidade massiva de casamentos nulos, é consequência do abandono da perspectiva católica, cristã, sobre o matrimônio.
Ele voltou a ser visto como uma instituição puramente humana – pior, virou puramente convencional, não tendo mais nem uma razão na natureza, nem um papel social ou no aperfeiçoamento humano. Escolhe um casamento quem pensa poder tirar dele algum prazer, e o abandona quem percebe que há muito mais prazer em outros modos de vida.
Esquecemos que nenhum matrimônio se sustenta sem um grande grau de virtude, e que mesmo assim ele pode falhar por causa dos nossos muitos pecados. Sem as virtudes e sem as graças que o sacramento concede, então, todo casamento está fadado ao fracasso.
E por fracasso não quero dizer apenas o divórcio, que é o fracasso visível. Quero dizer a degeneração dos esposos, mesmo que o vínculo do matrimônio não seja rompido socialmente. O aprofundamento nos pecados; a degradação moral; as disputas por poder ou por dinheiro; o abandono dos filhos.
Toda essa degradação que é consequência do esquecimento do fato de que o matrimônio, enquanto sacramento, é símbolo da união de Cristo com a Igreja, e por isso é santo e deve ser preservado. Sabendo disso, Deus concede graças específicas aos esposos que se casam validamente, a fim de que o matrimônio prospere. Mas poucos são os que sabem que é o casamento, logo poucos são os que se casam validamente, e poucos os que usufruem das graças divinas.
Os dois sacramentos que tratamos hoje são ordenados para o serviço do outro. O sacerdócio para a salvação de todos os fiéis; o matrimônio para a salvação dos cônjuges, dos filhos e de toda a sociedade. Ambos apresentam a redenção de Cristo em âmbitos diferentes.
O sacerdócio se mostra como a redenção que vem diretamente de Cristo para a sociedade; e o matrimônio a redenção que vem de Cristo no meio da própria sociedade. Ambas as vocações são indispensáveis, embora o celibato e o sacerdócio sejam mais elevados que o matrimônio. Sem elas, porém, a salvação ou não acontece ou fica extremamente prejudicada.
Prof. Rafael Cronje Mateus
Dada no Centro Cultural Alvorada, no dia 11 de agosto de 2021.