Pode haver milagres fora da Igreja Católica?

Em vista da clareza de doutrina distinga-se entre milagre propriamente dito (ou milagre na linguagem técnica dos teólogos) e milagre em sentido largo.

1. O milagre propriamente dito é um fenômeno estranho ao curso natural das coisas, fenômeno que Deus produz como sinal da sua presença e ação neste mundo. A função de sinal é inerente ao conceito de milagre propriamente dito. Este, por conseguinte, é sempre um testemunho que o Todo-Poderoso dá em favor de uma verdade ou de uma pessoa: a Divindade de Cristo, a autenticidade de sua Igreja, a santidade de uma alma, a eficácia da oração, etc. — Em consequência, escapam à qualificação de «milagre» certos fatos que, embora sejam admiráveis ou estranhos (algumas curas repentinas, visões destituídas de conteúdo doutrinário, um ou outro caso de estigmatização), não têm significado religioso, não elevam a Deus, mas, ao contrário, só servem para satisfazer ao capricho ou à vaidade de alguém. Quando Deus efetua prodígios, nunca o faz por capricho ou ostentação de sua Onipotência, mas sempre a fim de chamar a atenção do homem para algum dos atributos divinos.

Pois bem; os teólogos não hesitam em afirmar que o milagre propriamente dito pode ocorrer tanto dentro da Igreja (entre os fiéis católicos) como fora desta (entre não católicos: hereges, cismáticos, pagãos). Este último caso certamente é raro; quando, porém, o milagre é produzido fora da Igreja Católica (é sempre Deus quem o produz), o seu testemunho é tal que não redunda em abono dos erros do paganismo ou da heresia, mas em favor da verdade, verdade que em plenitude é possuída pela Igreja Católica; o milagre produzido fora desta adquire assim um valor construtivo, é sinal da autêntica revelação e tende a levar a única Igreja de Cristo.

São Tomás (De potentia 6,5 ad 5), por exemplo, ensina que Deus pode realizar um milagre para confirmar simplesmente uma verdade da religião natural (ou seja, uma verdade religiosa que o homem por sua inteligência natural reconhece) ou para atestar o valor da virtude praticada sinceramente por quem de boa fé vive fora do Catolicismo; e cita o caso, narrado por S. Agostinho (De civ, Dei 10,26), conforme o qual uma vestal de Roma (virgem consagrada ao serviço da Divindade), para comprovar a conservação de sua pureza, havia conseguido carregar água do Tibre num vaso perfurado… São Tomás assim comenta tal notícia:

«Não está excluído que, para exaltar a castidade, o Deus verdadeiro, por meio de seus anjos, tenha realizado o milagre de deter as águas; pois, se floresceu alguma virtude entre os gentios, floresceu por dom de Deus».

O que quer dizer: quem fora da Igreja procura sinceramente a Deus, seguindo a sua consciência com toda a boa fé, encontra a Deus, o único Deus da Revelação cristã. Este então, caso julgue oportuno, pode, por meio de um milagre, dar testemunho público das sinceras disposições de tal servo seu.

2. O milagre em sentido largo é (como sugere a palavra latina correspondente, miraculum) tudo que suscita a admiração dos homens por depender de causas que os espectadores ignoram.

a) Essas causas podem ser forças latentes na alma, poderes naturais ainda pouco conhecidos e explorados pela Psicologia; têm-se então fenômenos chamados paranormais (= ao lado dos normais ), como são a telepatia, a radiestesia, a transmissão de pensamento, a clarividência do passado e do presente, as curas por sugestão… Às vezes estes fenômenos são tidos como milagres e atribuídos a mensageiros do Além; erroneamente, porém. Com os estudos modernos de Psicologia, que mais e mais penetram no subconsciente e no inconsciente, os fenômenos paranormais vão sendo elucidados e reduzidos progressivamente à categoria do normal; a maioria dos psicólogos julga que, com o tempo, o paranormal será totalmente claro e considerado como normal.

b) As causas ocultas aos espectadores, acima mencionadas, também podem estar fora do homem; seriam almas de defuntos, anjos ou demônios (quando é o próprio Deus, tem-se um milagre pròpriamente dito, de que tratamos acima).

No caso da intervenção de almas de defuntos, anjos ou demônios (intervenção que só se verifica por especial permissão de Deus e nunca pode ser forçada ou extorquida pelos homens), os fenômenos são chamados preternaturais (= além dos naturais), por serem fenômenos que ultrapassam os poderes do homem na terra, mas não os de outra natureza criada, dotada de faculdades superiores às do homem. Fenômenos preternaturais são, por exemplo, a descrição de acontecimentos futuros previsíveis por quem conhece bem suas causas atuais, a indicação de fórmulas farmacêuticas e terapêuticas que excedem os conhecimentos da precária ciência humana, a transposição de objetos e pessoas de um lugar para outro,.. Tais efeitos estão certamente ao alcance dos anjos bons e maus que, possuindo inteligência superior à do homem, podem, melhor do que nós, penetrar nos segredos da natureza; possuem também raio de ação mais amplo que o do homem (quanto às almas dos defuntos, podem por concessão de Deus gozar de maior liberdade de ação do que quando unidas aos corpos).

Os fenômenos preternaturais podem-se verificar, por permissão do Senhor, tanto dentro como fora da Igreja Católica. Não há dúvida, ocorrem em alguns processos do espiritismo; ocorrem também em formas de curandeirismo, que invoca explicitamente os espíritos maus e usa da magia negra. Jesus mesmo predisse que «surgiriam falsos Cristos e falsos profetas, os quais fariam grandes sinais e prodígios, de modo a seduzir, se fosse possível, até os eleitos» (cf. Mt 24,24); São Paulo atribui semelhantes poderes ao Homem Iníquo por excelência, que se manifestará no fim dos tempos (cf. 2 Tes 2,8-10). Note-se que em geral não são as almas dos defuntos evocados que intervêm nas sessões espíritas; na maioria dos casos, dá-se um dos fenômenos paranormais acima enunciados (telepatia, clarividência, transmissão de pensamento…).

Deve-se observar ainda que, se Deus permite a realização de portentos (não milagres no sentido estrito) por parte dos anjos maus ou demônios, Ele a permite para comprovar e purificar a fé dos homens. Contudo não deixa de fornecer indícios para discernirmos as maravilhas que Deus faz por Si ou por meio dos anjos bons, das maravilhas que o demônio, por concessão do Onipotente, efetua; Deus, que é justo, nunca poderia permitir que o homem seja, por obra dos espíritos maus, invencivelmente levado ao erro no tocante à religião e à salvação eterna. Entre os principais critérios de discernimento, enumeram-se os seguintes: os prodígios realizados pelo demônio são geralmente cercados de ritos, práticas supersticiosas (ou seja, recurso a causas ineptas para obter efeitos de ordem superior), fórmulas e receitas evocadoras; o conteúdo das respectivas mensagens não leva a Deus e a Cristo (às vezes, é verdade, os oragos espíritas mandam seus clientes frequentar a igreja ou corrigir um vicio; fazem-no, porém, a fim de suscitar maior confusão, recorrendo a um pouco de verdade para encobrir grande dose de erro; não visam gerar integralmente a fé e a moral católicas no paciente); a procura de tais portentos deixa geralmente a pessoa perturbada, inquieta, tendente a um estado psicopata. Ao contrário, os prodígios realizados por Deus e pelos anjos bons são geralmente imprevistos; acontecem sem evocação nem provocação alguma, sem ostentação aparatosa (tenham-se em vista os milagres de Fátima, Lourdes, La Salette etc.); são fatores de paz e alegria profundas, não afetadas pelas contradições humanas; corroboram a virtude, principalmente a humildade e a obediência ou renúncia à vontade própria perante a autoridade legítima (critérios importantíssimos). É, sem dúvida, pelos frutos que se conhece a árvore!

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