Em que consiste o chamado ‘privilégio paulino’ evocado na separação de alguns casais?
Na sua 1ª epístola aos Coríntios 7,12-16, São Paulo considera o caso de dois pagãos unidos matrimonialmente, dos quais um se converte à fé cristã e recebe o batismo; diz então o Apóstolo que, se a comparte pagã daí por diante já não aceita viver pacificamente no lar, o fiel batizado tem o direito de considerar dissolvido o seu matrimônio.
«Se algum irmão(=cristão) tem uma esposa que não possuí a fé (esposa pagã) e esta consinta em habitar com ele, não a repudie. E, se uma esposa tem marido que não possui a fé, e este consinta em habitar com ela, não abandone o seu marido… Se, porém, o que não tem fé se afasta, afaste-se; o irmão ou a irmã (cristãos) não estarão sujeitos à servidão em tal caso; Deus nos chamou para a paz» (1 Cor 7,12s. 15).
Estes dizeres permitem a ruptura do vínculo com a consequente possibilidade de se contrair novo casamento, como se deduz do contexto: nos versículos precedentes (10-11), o Apóstolo, falando da separação do esposos cristãos, manda que a mulher separada não se case de novo. Nos vv. 12-15, porem, São Paulo, admitindo a separação, não acrescenta restrição alguma; não entende, pois, proibir novo matrimônio, como o proibiu no caso anterior. Esta interpretação é confirmada pelas palavras seguintes: «Em tal caso, o irmão ou a irmã não estarão sujeitos à servidão»; o que quer dizer:… não estarão sujeitos ao vinculo matrimonial que os prendia a um consorte pagão disseminador de discórdia e perigo para a fé no lar.
Esta determinação de São Paulo deu inicio a uma praxe constante na Igreja, praxe que apenas de meados do séc. XVII até a Revolução Francesa (1789) foi controvertida por escritores franceses e alemães, imbuídos de jansenismo. Ainda hoje a norma do Apóstolo se aplica não somente em territórios de missão, mas até nos grandes centros urbanos da Europa e da América, onde infelizmente não são raras as pessoas que, sem ter sido batizadas, se casam no foro meramente civil. Cf. Código de Direito Canônico, cân. 1120-1127.
E como se justifica esse privilégio paulino?
Para que um matrimônio se torne indissolúvel, duas condições devem ser preenchidas:
a) sejam os cônjuges validamente batizados (o que se pode dar ou no Catolicismo ou em alguma denominação protestante que confira validamente o batismo);
b) haja consumação carnal do contrato matrimonial.
Considerando agora o matrimônio entre pagãos, verifica-se que não satisfaz à primeira dessas condições. Não é sacramento; por conseguinte, pode ser dissolvido em vista de um bem maior. Ora tal bem maior é certamente a conservação da fé numa das compartes que venha a receber o batismo; dado, pois, que está entre em perigo o próprio direito natural, confirmado pela legislação positiva cristã, confere ao neófito o direito, e às vezes o dever, de se separar para que não se arrisque a perder o dom da fé.
Naturalmente, a fim de que se possa reconhecer este direito ao consorte convertido, requer-se haja, da parte do cônjuge pagão , indisposição ou animosidade que torne difícil ou impossível a harmoniosa convivência de ambos; segundo o vocabulário paulino, dir-se-ia: requer-se que o não batizado se afaste, física ou ao menos moralmente. Moralmente, isto é, causando rixas em casa ou procurando seduzir o cônjuge batizado para a apostasia, o adultério, a educação pagã da prole ou ainda negando a liberdade religiosa à comparte, desejando viver em poligamia, etc. O direito não será reconhecido ao cônjuge batizado desde que o consorte pagão se decida a receber, também ele, o sacramento do batismo ou a aceitar ao menos uma coabitação pacífica no lar.
Para se verificar quais os propósitos da comparte pagã, manda o Direito Canônico seja esta formalmente interrogada a tal respeito. O interrogatório explicito é necessário para a validade da dissolução do vinculo, mesmo que já se saiba que o cônjuge não batizado não se quer converter nem deseja conviver pacificamente com o católico. Sendo o matrimônio, segundo a legislação eclesiástica, um ato público, faz-se mister que tudo que lhe diz respeito seja devidamente atestado e comprovado perante as autoridades competentes. Se não se conseguir demonstrar plenamente que a parte não batizada se afastou (nos termos acima expostos), a Igreja não poderá considerar dissolvido o matrimônio em questão.
Contudo acontece por vezes que não é exequível o mencionado interrogatório ou por se ignorar onde está o consorte pagão ou por se temerem penosas consequências da interpelação; em tais casos a autoridade eclesiástica dispensa da sindicância e reconhece a dissolução do vínculo, desde que não haja dúvida sobre as intenções do não batizado. É propriamente no ato em que a parte batizada contrai novo matrimônio que se dá a ruptura do vinculo anterior (cân. 1126).
Nota ainda o Código que o privilégio paulino evidentemente não se aplica ao caso de um católico que se case com pessoa não batizada, após haver obtido para isto a devida dispensa eclesiástica (cf. cân. 1120 § 2), Caso tal pessoa se faça batizar, não pode pleitear dissolução do vínculo por privilégio paulino, ainda que a sua situação conjugal se lhe torne muito penosa.
Última Observação
A título de complemento, seja acrescentada a seguinte observação: o fato de que o matrimônio só é indissolúvel quando preenchidas as duas condições clássicas (batismo válido dos consortes e consumação carnal) explica que a Igreja tenha reconhecido a dissolução de casamento contraído por uma pessoa batizada fora do Catolicismo (ou seja, no protestantismo) com uma comparte não batizada. Tendo-se um dos dois consortes convertido à verdadeira religião, a autoridade eclesiástica, em vista do bem da fé e em circunstancias excepcionais, reconheceu a ruptura do vínculo anteriormente contraído. É o que atestam duas decisões relativamente recentes do Sto. Ofício (10 de julho e 5 de novembro de 1924).