Sobre a dissecação de cadáveres

É verdade que até o fim da Idade Média a Igreja proibiu a dissecação de cadáveres, entravando assim o progresso da Medicina?

1. Partindo de premissas remotas, notaremos primeiramente em nossa resposta que a Igreja, de modo geral, dedica grande respeito ao corpo humano, mesmo depois de morto. A razão profunda desta estima é o mistério da Encarnação, mediante o qual a carne humana foi dignificada ao extremo e destinada a configurar-se ao corpo glorioso de Cristo. O pensamento cristão a tal respeito acha-se bem resumido no seguinte trecho de discurso do Papa Pio XII a esportistas italianos:

«Em verdade, a Igreja sempre deu provas de solicitude e reverência para com o corpo humano, que o materialismo. em seu culto idolátrico, jamais concebeu. Isso é muito natural. O materialismo só vê, só reconhece, no corpo, a carne material, cujo vigor e beleza nascem e florescem para definhar e morrer à semelhança da erva dos campos que se torna cinza e lama. Muito diversa é a concepção cristã. Segundo esta, o Senhor fez o corpo humano como obra prima entre as criaturas visíveis. Ele o destinou a crescer aqui na terra e a se expandir imortal na glória do céu… Não foi Deus quem tornou mortal o nosso corpo, mas, sim, o pecado. Por causa do pecado, o corpo, tirado do pó, deve voltar ao pó; o Senhor, porém, de novo o tirará deste para lhe restituir a vida. Mesmo reduzidos ao pó, a Igreja respeita e honra os cadáveres, destinados a ressuscitar um dia» (Alocução proferida aos 20 de maio de 1945).

2. Quando o Cristianismo, com esta sua concepção otimista do corpo, se difundiu pelo mundo, encontrou entre os médicos antigos a praxe (violada apenas em casos relativamente raros) de não se dissecarem cadáveres humanos para estudos de anatomia. Crenças religiosas (embora muito diferentes das crenças cristãs) inspiravam tal atitude dos médicos pagãos.

Sabe-se que ocasionalmente no séc. IV a. C. um ou outro estudioso se entregou ao estudo da anatomia dissecando cadáveres. No séc. III a. C. as escolas de Alexandria no Egito, tendo por expoentes Herófilo e Erasistrato, praticaram tal arte, como que por privilégio ou exceção — exceção que se explica pelo fato de que os egípcios, para embalsamar seus mortos, já costumavam infligir-lhes incisões e talhes.

Chama a atenção em particular o caso do sábio helenista Galieno de Pérgamo (130-200), o qual, junto com Hipócrates, é tido como um dos mais notáveis médicos da antiguidade; conforme os autores, sua influência na história da medicina se terá exercido até o séc. XVII. Rigoroso como era em seus estudos, Galieno procurou elevar a arte da medicina ao nível de verdadeira ciência. Contudo, por respeito ao costume vigente, só praticou a dissecação de animais irracionais, especialmente do macaco; por muito que lamentasse tal restrição, Galieno não pôde deixar de a observar.

3. Em tais circunstâncias, compreende-se que os médicos cristãos nada tenham inovado: como os seus colegas não cristãos, abstinham-se de utilizar cadáveres humanos para estudos de anatomia. Ainda no séc. XII a Escola de Salerno (Itália), que se tornou famosa por seus progressos em medicina, logrou mais exatos conhecimentos de anatomia mediante a dissecação sistemática do porco, animal considerado como sendo «interiormente» o mais semelhante ao homem.

4. Finalmente no séc. XIV a praxe começou a ser alterada; as autópsias iam sendo mais e mais praticadas, abrindo assim a via à dissecação sistemática dos cadáveres.

Diz-se que o Grão-Conselho de Veneza, por decreto de 27 de maio de 1308, autorizava uma dissecação por ano, sem parecer considerar tal concessão como algo de inovador (alguns historiadores, porém, corrigem a data de 1308 para 1368). Sabe-se que em janeiro e março de 1316 na cidade de Bolonha, o famoso Mondino dei Luzzi, retalhou e examinou dois cadáveres de mulheres, consignando logo seus métodos e suas observações num pequeno tratado de anatomia.

O novo costume se foi implantando sem resistência do magistério da Igreja. Atribui-se ao Papa Bonifácio VIII uma condenação da dissecação; na verdade, porém, este Pontífice não fez senão publicar a bula «De sepulturis», na qual proibia, se fizesse ferver o cadáver de pessoas falecidas fora de sua pátria a fim de se levar apenas o esqueleto para o respectivo torrão natal. Em 1345, Guido de Vigevano refere-se a uma proibição eclesiástica de dissecação; parece, porém, que não se tratava senão de uma medida disciplinar emanada do bispo de Paris.

Um traço significativo da época é-nos, antes, atestado por um manuscrito da Biblioteca colombina: descrevendo a vida universitária, o cronista narra como as autoridades eclesiásticas mandaram abrir o crânio de um estudante que acabara de morrer em orgia; a dissecação fôra praticada no intuito de se comprovar aos colegas do defunto a veracidade da afirmação do sábio árabe Avicena segundo a qual todos os excessos sexuais se produzem com detrimento para o cérebro!

Dentre as Universidades, a que primeiramente adotou a praxe da dissecação de cadáveres, foi a de Bolonha. Em Paris as primeiras operações desse tipo só se verificaram em 1407, tornando-se comuns apenas a partir de 1477. Nesses séculos XIV/XV não era propriamente a ideologia religiosa que entravava tal tipo de estudos, mas, sim, o mau ânimo dos cirurgiões contra os médicos; aqueles não raro se enfureciam contra estes, acusando-os de ensinar anatomia aos barbeiros, pseudo- concorrentes dos cirurgiões!

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