Socialismo, Comunismo e Coletivismo

«Socialismo, coletivismo e comunismo» são termos afins entre si por designarem um sistema econômico-social que atribui à coletividade o direito exclusivo de possuir os meios de produção e de controlar o uso dos mesmos; o sistema visa, pois, transferir dos indivíduos para a sociedade, representada em geral pelo Governo, a posse e a utilização dos bens produtivos.

A diferença que intercede entre os três vocábulos vem a ser principalmente de índole cronológica. «Comunismo» é o termo mais antigo. A palavra «Socialismo» tomou seu sentido técnico a partir do «Manifesto» de Robert Owen, publicado na Inglaterra em 1820: designava então as tendências opostas ao Capitalismo liberal. Quanto ao termo «Coletivismo», entrou na nomenclatura dos sociólogos por volta de 1850; hoje, porém, já não tem significado específico.

«Comunismo» em nossos dias é propriamente o sistema coletivista que Karl Marx (+1883) concebeu; impõe a seus adeptos exigências severas, apoiadas em ardentes concepções, que tocam as raias do messianismo e da mística. — O Socialismo seria um coletivismo mais atenuado em suas manifestações. Na prática, porém, torna-se difícil indicar a diferenciação dos dois sistemas econômico-sociais: o comunista (marxista) e o socialista. O uso dos termos varia muito segundo os autores. Basta lembrar que a Rússia comunista (marxista) se designa oficialmente como «União das Repúblicas Socialistas Soviéticas» (U.R.S.S.).

Nas linhas que se seguem, proporemos algo do histórico e das doutrinas do Socialismo; após o que, procuraremos formular um juízo adequado sobre o sistema.

1. Traços históricos e síntese doutrinária do Socialismo

1.1. Os problemas intensamente focalizados pelo Socialismo moderno não são de hoje nem de ontem.

Já na antiguidade pré-cristã a pobreza dos pequeninos e as suas relações com os ricos chamavam a atenção dos pensadores. Consequentemente, certos autores helenistas puseram-se a apregoar um ou outro elemento de solução semelhantes aos do Socialismo moderno: assim Platão (+347), nas «Leis», preconizava a imposição de deveres às classes possuidoras e a limitação das riquezas; Faléia de Calcedônia desejava o nivelamento das posses materiais de todos os cidadãos; outros autores, entre os quais Hipódamo de Mileto, propugnavam só fosse reconhecido o direito de propriedade às classes inferiores.

Já na era cristã, os antigos bispos (S. Basílio, S. Gregório de Nazianzo, S. João Crisóstomo…) admoestavam frequentemente os fiéis a utilizarem suas posses de modo a beneficiar os indigentes. Na Idade Média, os movimentos populares de reforma dos costumes (os dos Cátaros, por exemplo, Valdenses, Patários, Arnaldinos…), simultaneamente com doutrinas religiosas, faziam ouvir teses afins às dos socialistas atuais: igualdade das classes sociais e coletivismo…

1.2. Pode-se dizer, porém, que as primeiras páginas de inspiração socialista, no sentido moderno da palavra, se devem ao século XVI, período em que surgiram os inícios do regime capitalista: o modelo clássico de tais escritos é a «Utopia» , de Tomás Moro (1516): este autor, exasperado pela transferência para o domínio particular, de terras até então desocupadas ou entregues ao uso comum, descreveu uma sociedade ideal, estritamente fundada no coletivismo (Utopia vem da expressão grega ouk-tópos = sem lugar, não realizado na terra ; tal seria a cidade de T. Moro…).

No séc. XVIII fizeram-se ouvir outros acordes de socialismo devidos à nova configuração da vida pública: ia sendo atribuída importância crescente ao regime econômico da sociedade; as ciências de finanças tomaram caráter autônomo, independente da Moral; formou-se uma concepção do Estado inteiramente leiga, ou seja, estranha a Deus; o desenvolvimento das indústrias ocasionou a formação de uma classe operária sujeita às exigências dos grandes proprietários e capitalistas. O liberalismo econômico permitia a livre concorrência entre proprietários, provocando conflitos por vezes desumanos entre detentores do capital e assalariados.

As novas idéias e as míseras condições de vida na sociedade explodiram na Revolução Francesa de 1789.

Calcula-se que, nos tempos imediatamente anteriores a esta, havia 500.000 cidadãos errantes pelo território da França; Beer assegura que na segunda metade do séc. XVIII e em princípios do séc. XIX não menos de 2.280.000 hectares foram arrebatados aos pequenos agricultores na Inglaterra.

O séc. XIX foi o século das reivindicações. Os anos de 1820 e 1850 tornaram-se especialmente importantes na evolução das situações e das idéias. O estado de ânimos exacerbado passou a se exprimir numa série de veementes exigências dos operários, que vieram a constituir o sistema socialista contemporâneo: os trabalhadores, julgando-se iludidos pelas promessas de melhores condições de vida provenientes dos reis e poderosos da terra, resolveram finalmente propugnar por seus próprios esforços o levantamento de seu nível social. Não faltaram escritores de responsabilidade que, com suas afirmações, concorreram para exasperar a situação: Pierre J. Proudhon, por exemplo, num opúsculo fortemente antiburguês intitulado «Que é a propriedade?», respondia simplesmente ser esta um furto (1840).

A titulo de ilustração, ainda consignamos o seguinte: um inquérito realizado na Inglaterra em 1840 nos setores da indústria, principalmente na das minas, revelou que mulheres e crianças, algumas destas com seis anos de idade apenas, se empregavam nas minas, raramente trabalhando menos de onze horas por dia.

Durante todo o século XIX. aliás, a multiplicação das massas operárias constituiu fator de grande relevo para a difusão das idéias socialistas: a população da Europa cresceu, desde o principio do século XIX até 1914, de cerca de 180 milhões para cerca de 452 milhões; as massas concentraram-se cada vez mais nas grandes cidades, o que permitiu ao operariado ter uma visão da realidade até então menos conhecida.

O movimento de reivindicações tomou modalidades múltiplas, em alguns casos mesmo românticas: sonhavam alguns com um tipo de coletivismo irrealizável (vida comunitária e exagerada valorização da natureza); os discípulos de Owen chegaram a criar colônias coletivistas em Orbiston na Escócia, em Ralahire na Irlanda, em Queenwood no Hampshire; o próprio Owen fundou uma dessas colônias (New Harmony, 1825) nos EE.UU. da América…

1.3. E quais seriam as grandes linhas doutrinárias comuns às diversas formas de socialismo ?

— Antes do mais, seja mencionada a «socialização» dos meios de produção e troca, isto é, a transferência destes bens de propriedade particular para o domínio coletivo da sociedade. A fim de que a socialização assim concebida se torne eficaz, deve ser acompanhada de campanhas adequadas de educação, ética, estética, política.

Instaurando o regime do capital coletivo, o socialismo visa estabelecer um sistema de exploração, arrecadação e distribuição dos bens materiais que atinja a todos os cidadãos igualmente dentre da nação (ou até no plano internacional). Ficam destarte supressas a iniciativa particular no setor do trabalho e a livre concorrência entre produtores: compete à coletividade, representada naturalmente pelo Estado, o dever de controlar todo o sistema de produção de bens; para exercer esta sua função, o Estado pode valer-se de cooperativas e sindicatos. Tudo que o trabalho produza no interior da nação, toca direta e exclusivamente ao Estado; a este incumbe consequentemente a obrigação de fazer chegar a cada trabalhador a devida remuneração. Para efetuar isto, o Estado deve proceder a inquéritos que revelem quais as verdadeiras necessidades de cada cidadão; a seguir, o Governo estipula um programa indicando qual a cota de bens a ser atingida no decorrer do ano de trabalho, a fim de que se possa atender às indigências dos cidadãos em particular e ainda satisfazer às demais despesas que façam parte do orçamento nacional. O Estado deve mesmo procurar criar um fundo de reservas que possam ser devidamente utilizadas nos anos em que, por um acidente qualquer, a produção nacional venha a ser insuficiente para cobrir as despesas orçamentárias.

Quanto aos cidadãos que não produzem bens materiais, mas prestam serviços ao Estado na qualidade de funcionários graduados, militares, juízes, artistas, homens de ciência, etc., tais hão de perceber uma cota calculada de acordo com o número de horas que aplicam ao serviço do bem comum (esta norma, porém, é assaz precária, pois não se pode avaliar o trabalho intelectual, levando-se em conta apenas o número de horas empregadas em tal labor; as atividades liberais revestem-se de dignidade própria, que não pode deixar de ser reconhecida pela justiça humana).

O sistema socialista é por vezes também marcado por uma nota de forte nacionalismo: Rodbertus, Wagner, Brentano, Schmoller e outros mestres muito inculcaram a «nacionalização» (ou seja, a atribuição à nação representada pelo Estado) das grandes indústrias do pais; sendo assim, o termo «nacionalismo» hoje em dia é muitas vezes o rótulo sob o qual se afirma e propaga a campanha socialista.

Karl Marx e seus discípulos abraçaram as teses fundamentais do socialismo e as enquadraram, até as últimas consequências, dentro das concepções filosóficas do materialismo; deram mesmo ao socialismo o valor de uma concepção geral do mundo e do homem, cheia de dinamismo ou de poder de irradiação, que toca os arraiais da mística, exigindo o empenho da personalidade de cada marxista (Marx chamava justamente «socialismo utópico» o sistema de Saint-Simon, Fourier, Owen e outros, que pretendiam conseguir radical transformação da sociedade sem o recurso a meios violentos e revolucionários).

Para Marx. as formas de vida de uma época (a Religião, o Direito, as instituições políticas, os costumes sociais, em suma, a cultura) não são mais do que expressões das forças produtoras que dominam tal época; «não é a consciência do homem que determina o ser ou o modo de existência deste, mas vice-versa é a categoria social do homem que determina a consciência» (Prefácio à «Crítica da Economia política»). O regime capitalista, acrescenta o marxismo, alheou o homem a si mesmo; a revolução socialista concebida por Marx o restituirá a si…

Não nos detemos na explanação das idéias típicas do marxismo, pois isto já foi feito em «P. R.» 3/1958, qu. 1.

O que acabamos de expor já é suficiente para tentarmos proferir

2. Um juízo sobre o Socialismo

2.1. Na primeira metade do século passado, quando o socialismo foi tomando características marxistas, ouviu-se falar também de «socialismo cristão» e de «socialismo democrático». Na realidade, porém, a forma de socialismo que mais se divulgou, é acompanhada de filosofia materialista, que vem a constituir o clima no qual geralmente as idéias socialistas e marxistas são apregoadas. É, portanto, essa forma materialista que havemos de considerar aqui em primeiro lugar; a seguir, voltar-nos-emos para o chamado «Socialismo cristão».

Como então julgar o Socialismo comumente afirmado nos tempos modernos ?

a) Do ponto de vista filosófico, o Socialismo contemporâneo é manifestação da mentalidade laicista e materialista mais e mais divulgada a partir do séc. XVI. Os estudos de finanças foram de tal modo valorizados que geraram a concepção de que o homem se pode explicar totalmente a partir das suas funções econômicas; o tipo humano fundamental seria o «homo oeconomicus», do qual uma modalidade seria o «homo sapiens», caracterizado pelos seus valores intelectuais e morais.

Seja aqui recordada uma obra que muito inspirou o pensamento moderno referente ao homem. Em 1714, Bernard de Mandeville, filho dos «libertinos» do século XVI, publicou o escrito «The fable of the Bees» (A fábula das abelhas), onde fez a apologia dos vícios, insinuando que o amor ao bem-estar físico, à satisfação dos sentidos e aos prazeres da vida vem a ser o grande móvel que impele o gênero humano ao progresso e à civilização.

Conforme Mandeville, «as sociedades humanas chegarão à harmonia e ao equilíbrio, não por se constituírem de indivíduos cheios de altruísmo e sequiosos de solidariedade mútua, mas porque se comporão de egoístas consumados, a viver em luta contínua, constrangidos pelo antagonismo mútuo e pela violência das paixões dos adversários a aceitar soluções precárias que só atenderão a interesses particulares» (A Fanfani, Storia delia dottrine economiche. II naturalismo. Milano 1946, 12).

Mandeville tornou-se o precursor das teorias modernas que só levam em consideração os valores materiais da vida.

Ora a concepção de que o homem é primàriamente um animal econômico ou dependente da produção material desconhece simplesmente os verdadeiros valores do ser humano, que são os da inteligência e da vontade livre (cf. «P. R.» 5/1958, qu. 1 e 6).

No séc. XIX a mentalidade darwinista influiu também nos arautos do socialismo: o mecanicismo da sorte humana, marcada pela luta em prol da vida, sem que haja na história a intervenção de uma Providência Divina, inspirou de perto as idéias dos socialistas clássicos: estes consideravam primariamente o homem como um «indivíduo», isto é, como uma unidade dentro da massa humana material, não tanto como personalidade, ou seja, como criatura dotada de alma espiritual, imortal e chamada a se realizar na adesão incondicional ao Transcendente ou a Deus.

No século XVIII desapareceu da sociedade a própria idéia da finalidade. Seu lugar foi tomado pela idéia de mecanismo. A concepção de homens unidos entre si e de toda a humanidade unida em Deus por meio de obrigações mútuas nascidas de sua relação a um fim comum deixou de estar impressa no espírito dos homens… Vagamente concebida e imperfeitamente realizada, tal concepção fôra entretanto a chave de cúpula que dava consistência a todo o edifício social. Tudo que ficou, quando retiraram a chave do arco, foram os direitos e os interesses particulares, isto é, mais os materiais de uma sociedade do que propriamente uma sociedade» (R. H. Taunay, The acquisitive Society. London 1926. 13s).

As premissas laicistas e mecanicistas haviam de levar o socialismo não pròpriamente à neutralidade, mas, sim, à hostilidade frente a Deus: na realidade, tende logicamente a remover a Religião e a Moral religiosa, afastando-se de certas concepções éticas tradicionais, a fim de dar lugar à (formação de novo homem ou do pretenso homem «genial» beneficiado pelo novo regime econômico e social.

Era o que preconizava em 1902 Kautsky, socialista rigorosamente «cientifico»:

«Não devemos então supor que sob essas condições (socialistas) venha a nascer novo tipo de homem, que exceda os maiores tipos que a cultura tenha até agora criado? Um Super-homem, se quiserem, não como exceção, mas como regra» (citado por W. Sombart, Der proletarische Sozialismus I 323).

À guisa de ilustração, citamos também o seguinte testemunho, embora provenha do socialismo marxista propriamente dito: em 1924, Trotsky, companheiro de Lênin na campanha vitoriosa da Revolução russa, escrevia:

“O homem se torna incomparàvelmente mais forte, mais inteligente, livre. Seu corpo, mais harmonioso; seus movimentos, mais rítmicos; sua voz, mais musical…; as formas do ser adquirirão uma teatralidade dinâmica. A média humana se elevará até o nível de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx” (Literatur und Revolution 179).

Ora é vã qualquer concepção de grandeza humana independente de Deus. A Religião, ou seja, o reconhecimento e o culto do Criador constitui uma das mais espontâneas afirmações da inteligência humana, como atestam os documentos da pré-história, da etnologia e da geografia (cf. «P. R.» 19/1959, qu. 1).

De resto, não se torna difícil averiguar a incoerência da posição ateia afirmada pelo socialismo: o senso religioso é tão natural e incoercível no homem que o ateu não faz senão transferir para a matéria e os bens finitos deste mundo a adesão total que normalmente ele deveria dedicar ao invisível Absoluto ou a Deus.

«O comunismo dos mestres, tanto quanto o das massas, é uma espécie de religião, uma espécie de Igreja. Daí se deriva o ódio dos comunistas contra a Religião e especialmente contra a Igreja Russa. O ateísmo comunista é demasiado amigo da luta para ser simplesmente um ateísmo de incredulidade. Lênin tinha toda a razão quando dizia odiar a Deus como seu inimigo pessoal, pessoal, isto é, existente, e ele Lênin defrontando-o» (L. P. Karsawin, Das religioese Wesen des Bolschewismus, em «Der Stadt, das Recht und die Wirtschaft des Bolschewismus». Berlin 1925, 43).

Desçamos agora a uma apreciação direta do programa econômico do socialismo.

b) Do ponto de vista econômico, uma observação de importância primordial deve ser feita às idéias socialistas.

Não é fácil manter o equilíbrio dentro de uma nação em que as iniciativas dos particulares em matéria de economia são extintas, cedendo ao monopólio do Governo; no regime socialista, ao Estado, e somente a este, compete solucionar as crises de produção e de penúria, prever os extraordinários e contratempos, ocupar-se com as necessárias reservas de capital e com o emprego do mesmo… Este monopólio, na prática, acarreta desvantagens mais do que benefícios. Torna-se destarte inevitável deixar certa liberdade de trabalho e de consumo aos indivíduos, a fim de que haja interesse e colaboração da parte de todos na consecução do bem comum e não seja a personalidade humana reduzida ao nível de autômato, maquinalmente dirigido por uma instância superior.

Quanto ao direito que todo indivíduo tem à propriedade particular, já o explanamos em «P. R.» 23/1959, qu. 5.

A julgar pela experiência de certas nações contemporâneas «socializadas», o ideal visado pelos grandes mestres do socialismo ainda não foi atingido, nem parece próximo de se realizar: o socialismo tinha em vista, sim, libertar os cidadãos do constrangimento das condições econômicas burguesas e da engrenagem a que os prende a organização capitalista. Ora nos regimes socialistas tal libertação não se verifica: dada a índole totalitária desses governos, observa-se que sob eles o indivíduo continua a viver em função do capital,… do capital não já dos proprietários particulares, mas do Estado; este vem a ser o novo e grande capitalista que escraviza…

Tal resultado, penoso e decepcionante como é, torna-se inevitável desde que não se dê lugar a outros valores que os da matéria, na conceituação do homem e de sua verdadeira felicidade.

2.2. Eis, porém, que nos últimos tempos, em certas nações, como a Alemanha Oriental, a Áustria, a Inglaterra, o Japão, têm-se esboçado movimentos socialistas que propõem afastar-se do marxismo e só apresentar reivindicações conciliáveis com os princípios cristãos; entre outras coisas, renunciariam à socialização dos meios de produção, respeitando o direito à propriedade particular. É compreensível que tais programas tenham chamado a atenção do mundo e, em particular, dos cristãos.

Ora, atendendo a tal estado de coisas, o jornal «Osservatore Romano» (Vaticano) de 7/8 de janeiro de 1960 publicou um artigo de primeira página, não assinado, em que chama a atenção para a impossibilidade de ser alguém, ao mesmo tempo, bom católico e verdadeiro socialista. Eis os principais pontos focalizados por esse documento:

Depois de expor a situação de dúvida que se criou em virtude da moderação de socialistas contemporâneos, o autor encaminha a solução citando longamente a encíclica «Quadragesimo anno» do S. Padre Pio XI (1931), encíclica da qual sejam também aqui transcritos alguns tópicos mais salientes:

«Nos tempos de Leão XIII (fins do séc. XIX) podia-se dizer que o socialismo era um só; propugnava princípios doutrinais bem definidos e unidos num sistema; agora, ao contrário, vai dividido em dois partidos principais, que discordam as mais das vezes entre si, são mesmo inimigos encarniçados, mas, não obstante, não se afastam do fundamento anticristão que caracteriza o socialismo.

Com efeito, um partido do socialismo… se precipitou no comunismo, o qual ensina e propugna dois pontos, não já por vias ocultas ou por rodeios, mas abertamente e com todos os meios…: a mais aguçada luta de classes e a abolição absoluta da propriedade particular.

… Mais moderado é o outro partido, que conservou o nome de socialismo: não só professa repelir toda e qualquer violência, mas, embora não repudie a luta de classes e a abolição da propriedade particular, abranda-a ao menos com atenuações e medidas… Dir-se-ia que o socialismo se dobra de algum modo e se aproxima daquelas verdades que a tradição cristã sempre e solenemente ensinou, pois não se pode negar que as suas reivindicações se aproximem, por vezes e muito de perto, das que, com muita .razão, propõem os reformadores cristãos da sociedade…

Que dizer, porém, do socialismo, dado que, no tocante à luta de classes e à propriedade particular, ele se tenha realmente moderado e corrigido, a ponto de não haver mais nada que se lhe possa censurar sobre esses dois pontos? Porventura terá o socialismo, com isso, renunciado subitamente à sua índole anticristã? Aí está a questão que mantém suspensas muitas almas. Não poucos são os católicos que, bem conhecendo como os princípios cristãos não podem ser nem abandonados nem apagados, parecem dirigir os olhares para esta Sé Apostólica e pedir ansiosamente que decidamos se tal socialismo emendou seus erros a tal ponto que, sem prejuízo de algum princípio cristão, possa ser admitido e de algum modo aprovado. Para satisfazer, de conformidade com a Nossa solicitude paternal, a esses desejos, declaramos o que se segue: o socialismo, quer seja considerado como doutrina, quer como fato histórico, quer como ação, se permanecer verdadeiramente socialismo, mesmo depois de ter cedido lugar à verdade e à justiça sobre os pontos de que falamos, não se pode conciliar com os ensinamentos da Igreja Católica, visto que o seu conceito de sociedade é de todo contrário à verdade cristã.

Com efeito, segundo a doutrina cristã, o fim para o qual o homem dotado de natureza sociável se acha sobre a terra, é que, vivendo na sociedade e sob uma autoridade social ordenada por Deus, cultive e desenvolva plenamente todas as suas faculdades, para louvor e glória do Criador, e, cumprindo fielmente os deveres de sua profissão ou vocação, qualquer que seja, chegue à posse da felicidade temporal e também eterna. O socialismo, ao contrário, ignorando por completo essa tão sublime finalidade do homem e da sociedade, supõe que a sociedade humana não tenha sido instituída senão para o exclusivo bem-estar (material)».

Segundo a concepção socialista, «os homens são obrigados, no tocante à produção material, a se submeter inteiramente à sociedade; o objetivo de se conseguir maior abundância de riquezas que possa servir às comodidades da vida, é tido em tanta consideração que se lhe devem postergar os bens mais elevados do homem, especialmente a liberdade, sacrificando-se tudo às exigências de uma produção mais eficaz. A sociedade, pois, como é imaginada pelo socialismo, não pode existir, nem se pode conceber, sem o emprego de coação realmente excessiva; doutro lado, porém, ela goza de licença não menos falsa, por lhe faltar uma verdadeira autoridade social, visto que esta não se pode fundar sobre as vantagens materiais e temporais, mas só pode vir de Deus, Criador e Fim de todas as coisas.

Dado que o socialismo, como todos os erros, contenha algo de verdade…, não obstante ele se funda sobre uma teoria da sociedade que lhe é própria e que é incompatível com o autêntico Cristianismo. Socialismo religioso e socialismo cristão, pois, são termos contraditórios; ninguém pode ser bom católico e ao mesmo tempo verdadeiro socialista».

A essa citação o autor do artigo acrescenta o seguinte comentário:

«Nos casos que focalizamos, estamos diante de partidos que repudiam mais ou menos explicitamente as posições clássicas do socialismo dito científico e parecem quase renunciar à solicitação dos meios de produção e troca, a fim de apresentar, no setor econômico social, reivindicações que, ao menos em teoria, nada mais tem que repugne a verdade católica. Resta, porém, o nome, resta a inspiração… Esse novo socialismo que… se recusa a se deixar ligar pelos princípios de Marx ou de Engels para não se tornar uma seita, não declara qual é a sua nova regra de conduta, nem como atualmente ele se distingue do individualismo liberal…

Mostramos, à luz do ensinamento da Igreja, que o socialismo, mesmo em suas modalidades mais temperadas, mesmo que repudie Marx, a socialização e a luta de classes, não se pode conciliar com a profissão de catolicismo, e que ninguém pode ser bem católico e, ao mesmo tempo, verdadeiro socialista».

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