A questão aborda o problema «Monogenismo ou Poligenismo?». A fim de o tratar devidamente, proporemos, antes do mais, a nomenclatura vigente no debate; a seguir, veremos um pouco do histórico da questão, para finalmente considerar o que se encontra respectivamente nas fontes da Revelação e nos documentos da ciência sobre o assunto.
Chama-se Monogenismo a doutrina que afirma ser todo o gênero humano descendente de um só casal.
Poligenismo vem a ser correspondentemente a tese de que a humanidade provém de vários casais. Se se admite que estes vários casais constituíam todos um única população oriunda em um só lugar ou «berço», tem-se o poligenismo monofilético (phylon = tronco, ramo, em grego). Dado que, ao contrário, se afirme ter o gênero humano aparecido em várias estirpes independentes umas das outras e em diversos lugares ou «berços», professa-se o poligenismo polifilético. Donde se vê que o monogenismo sempre supõe monofiletismo; o monofiletismo, porém, não acarreta necessàriamente monogenismo. Resumindo, tem-se a seguinte tabela:
Polifiletismo: muitos troncos (populações) e, consequentemente, muitos casais originários.
Monofiletismo: um tronco (população) originário
poligenismo: muitos casais a constituir um só tronco.
monogenismo: um só casal a constituir o único tronco originário do gênero humano.
Um pouco do histórico da questão
A Tradição cristã, baseando-se na narrativa de Gên 2-3, sempre afirmou que todo o gênero humano descende de um só casal: Adão e Eva.
A partir do séc. XVI, porém, novas teorias foram sendo disseminadas sobre o assunto.
Em 1655 um autor francês calvinista, Isaque de la Peyrère, afirmava haver no livro do Gênesis duas narrativas da criação do homem: no sexto dia (1,25-31), teriam sido criados os pré-adamitas, dos quais descendem os gentios ou não-israelitas, chamados pela S. Escritura «filhos dos homens». Após o repouso do sétimo dia, o Senhor teria criado Adão em estado infantil, do qual haveria extraído uma costela para formar o corpo de Eva (Gên 2,21-24); Adão e Eva seriam os progenitores do povo de Israel, progenitores que pecaram em nome de todo o gênero humano, fazendo que tanto os seus descendentes como os da linhagem pré-adamita nasçam contaminados pelo pecado original. — Esta tese foi sem demora condenada pela Igreja; contraria não somente ao dogma cristão, mas também às regras da sã exegese, não levando em conta que os textos de Gên 1 e Gên 2-3 visam, apenas sob diversos pontos de vista, os mesmos acontecimentos primordiais da história.
Mais tarde, Voltaire (+1778), na sua introdução a «Essai sur les moeurs», escrevia: «Só a um cego será licito duvidar de que os brancos, os negros, os albinos, os hotentotes, os lapônios, os chineses, os americanos constituem raças inteiramente diversas». Por «raças» Voltaire aqui .entendia espécies heterogêneas.
A tese poligenista ganhou voga no século passado com a descoberta de novos fósseis, fósseis que pareciam irredutíveis a um único princípio comum: a nomenclatura atribuída a tais ossadas insinuava mesmo que pertenciam a espécies humanas diferentes da nossa (dita «homo sapiens»); assim falava-se (e fala-se) do «homo capensis», «homo kanamensis», «homo steinheimensis», «homo modjokertensis», «homo helmei», etc. — Das raças atuais, havia quem reduzisse a branca ao chimpanzé, a amarela ao orangotango, a negra ao gorila…
Em 1910 H. Klaatsch distinguia quatro ramos humanos e não-humanos oriundos de um vivente pré-humano, o «Propithecanthropus hypotheticus» ; seriam : 1) os australianos e as raças vizinhas ; 2) o pitecantropo de Java e o gibão (macaco superior) ; 3) o homem de Neandertal, acompanhado dos pigmeus, do gorila e do chimpanzé; 4) o homem de Aurignac («homo sapiens»), do qual descendem tanto o gênero humano atual como o orangotango. Esta tese, gratuita como era (jamais se encontrou o mínimo vestígio do protopitecantropo !), em breve perdeu a sua voga.
Entrementes, porém, exegetas católicos procuravam conciliar a doutrina do poligenismo com a letra da Escritura Sagrada e as proposições da fé cristã. Em vista disto, lembravam que o nome hebraico «Adão», cujo significado é «homem», não se refere necessàriamente a um indivíduo apenas, mas pode muito bem designar o homem coletivamente entendido, ou seja, tantos indivíduos (e casais) quantos Deus tenha colocado na raiz do gênero humano atual. Aplicando esta observação, que filològicamente é aceitável, à exegese de Gên 2-3, tais comentadores não viam dificuldade em interpretar o texto sagrado no sentido poligenista. Quanto ao pecado de Adão, teria sido (como mais explicitamente diremos à pág. 336s) o pecado não de um só indivíduo, mas de toda a coletividade ou de todos os indivíduos que constituíam a humanidade nos seus primórdios.
A posição da fé cristã
Tal era o rumo das idéias entre não-católicos e católicos, quando em 1950 a autoridade da Igreja, julgando que o dogma cristão estava sendo afetado pelas novas teorias, houve por bem tomar posição nítida sobre o assunto. Aliás já em 1870, por ocasião do Concilio do Vaticano, fora preparado o texto de uma declaração conciliar contrária ao poligenismo; a declaração, porém, não chegou a ser promulgada, pois o Concilio foi imprevistamente suspenso em virtude da guerra franco-alemã.
Em agosto de 1950, quando já ardia a controvérsia, baseada em numerosos dados paleontológicos, o S. Padre o Papa Pio XII voltou ao assunto, publicando a encíclica «Humani generis», da qual interessa aqui a seguinte passagem:
«Quanto… ao poligenismo, …aos fiéis não é lícito abraçar uma opinião cujos fautores ensinam que depois de Adão existiram na terra verdadeiros homens que não tenham tido origem, por via de geração natural, do mesmo Adão, progenitor de todos os homens, ou então que Adão representa um conjunto de muitos progenitores. Não se vê de modo algum como estas afirmações se possam conciliar com o que as fontes da Revelação e os atos do Magistério da Igreja nos ensinam acerca do pecado original, que provém do pecado verdadeiramente cometido individualmente por Adão e que, transmitido a todos por geração, é inerente a cada um como próprio» (Acta Apostolicae Sedis 32 [1950] 576).
Como se vê, o Santo Padre rejeitava explicitamente qualquer teoria exegética que, recorrendo à filologia, tentasse interpretar, em Gên 2-3, o nome «Adão» (= homem) em sentido coletivo.
Doutro lado, porém, note-se que o texto da encíclica está redigido de tal modo que não exclui a existência de «pré-adamitas», ou seja, de verdadeiros homens (dotados de corpo semelhante ao nosso e de alma intelectiva) que tenham vivido na terra antes de Adão, o único pai do gênero humano atual; os pré-adamitas se teriam extinto por ocasião do aparecimento de Adão, não deixando descendentes, de sorte que todo homem atualmente envolvido na história deste mundo deve ser dito filho de Adão e Eva. Esta teoria é, de fato, compatível com as palavras da encíclica: «Aos fiéis não é lícito abraçar uma opinião cujos fautores ensinam que depois de Adão existiram na terra verdadeiros homens que não tenham tido origem, por via de geração natural, do mesmo Adão, progenitor de todos os homens».
A hipotética existência de «pré-adamitas» (a qual, como se compreende não depende da arbitrária exegese proposta por Isaque de la Peyrère no séc. XVII) constitui questão sobre a qual a S. Escritura e a fé cristã simplesmente não se manifestam, como também não se manifestam sobre a existência de habitantes em outros planetas. Trata-se de temas que não interessam diretamente a salvação dos homens aos quais foi dirigida a Revelação judaico-cristã, temas que por isto ficaram fora do âmbito desta Revelação.
A teoria dos «pré-adamitas», por muito fantasista que pareça, não deixa de ter o seu valor apologético: poderá sempre servir para conciliar com a fé católica as pessoas que julguem serem os resultados da paleontologia testemunhos evidentes do poligenismo ou do polifiletismo. A tais pessoas dir-se-á que a fé, restringindo o campo de suas declarações a Adão e seus descendentes, deixa margem a que se admitam muitos indivíduos humanos de troncos diferentes (polifiletismo), contanto que se afirme a sua extinção por ocasião do aparecimento de Adão. Ora os cientistas não têm dificuldade em reconhecer que certos tipos de viventes desapareceram após determinada evolução; do seu lado, a Igreja nunca intencionou precisar a época em que Adão tenha vivido (a respeito da aparente cronologia dos primórdios bíblicos, veja-se «P.R.» 17/1959, qu. 5). Na base destas considerações, vê-se que mesmo aos mais ardorosos defensores do poligenismo não é impossível a conciliação com a doutrina católica.
A este propósito merecem atenção as palavras do grande teólogo contemporâneo Ch. Journet, o qual verifica não haver, nem por parte da fé, nem por parte da ciência, objeção contra a hipótese seguinte:
«Poder-se-ia dizer: Houve paralelamente vários casais humanos. Mas um só dentre eles, tendo sido sequestrado dos demais por uma providência especial, foi elevado ao estado de justiça original e é desta linhagem única, sempre protegida pela mesma providência, que todos nós descendemos.
O poligenismo então não seria verídico senão com relação à humanidade pré-adamítica; o monogenismo bíblico, ao contrário, valeria para todos nós» (Monogénisme de la Bible, em «Nova et Vetera» 26 [1951] 56).
Pergunta-se agora: quais os fundamentos da posição monogenista sustentada pela Igreja ?
A resposta é indicada pelo próprio Pontífice Pio XII no citado texto da encíclica «Humani generis»: o monogenismo está intimamente ligado aos dogmas do pecado original e da Redenção, de sorte que negá-lo seria, ao mesmo tempo, deturpar o sentido autêntico do depósito revelado. Em conseqüência, o monogenismo vem a ser o que se chama «um fato dogmático», isto é, uma verdade histórica, contingente, que nunca foi definida pelo magistério da Igreja, mas que não pode ser rejeitada sem perigo imediato de se cair em heresia.
Que afirmam, pois, os dois mencionados dogmas ?
A doutrina do pecado original ensina que todo homem nasce contaminado por uma culpa, que um indivíduo, Adão, pai de todo o gênero humano, contraiu pessoalmente e a todos transmite por via de geração. O Concilio de Trento (1545-1563) declarou explicitamente que o pecado de Adão é um ato único e se comunica a toda a descendência de Adão por via de geração, não meramente por imitação (sess.5ª, can. 2 e 3).
O dogma da Redenção acrescenta que, para restaurar o gênero humano violado pela culpa original, outro homem foi enviado a este mundo na qualidade de novo Princípio de vida para os demais: é o Cristo Jesus. Sendo assim, toda a ideologia cristã gira em torno dos dois eixos: Adão e Cristo, duas figuras com as quais o gênero humano inteiro é solidário, ora para à morte, ora para a ressurreição. Aliás já São Paulo delineia o paralelismo entre Adão e Cristo, em Rom 5,12.17-19; 1 Cor 15,21s. — Ora, assim como não se pode entender o segundo homem, Cristo, no sentido de uma coletividade, assim também não o primeiro; trata-se de dois indivíduos que, por sua obra pessoal, transmitem respectivamente morte e nova vida ao gênero humano. Daí a incompatibilidade do poligenismo com a doutrina católica. Esta, de resto, funda a sua posição monogenista ainda em outros textos bíblicos como
– At 17,26: «De um só (homem) fez (Deus) todo o gênero humano, para que habite sobre a face da terra», declara São Paulo no Areópago de Atenas.
– Sab 10,1: «Foi a Sabedoria que guardou o primeiro homem, formado por Deus para ser o pai do gênero humano, o único criado».
Por sua vez, os capítulos 2 e 3 do Gênesis insinuam que Adão e Eva eram dois indivíduos, um único casal. Assim o autor sagrado observa que o homem estava só, e Deus não o queria deixar solitário, pelo que decretou fazer-lhe uma mulher condigna (v. 2,18); entre os animais existentes, não se encontrava nenhum da mesma dignidade que Adão (v. 20); por conseguinte, Deus formou tal auxiliar condigna; vendo-a, Adão logo reconheceu que era da mesma natureza que ele (w. 21-23); «estavam ambos nus, Adão e sua esposa, sem que, por isto se enrubescessem» (v. 25). Finalmente em 3,20 o autor refere ter Adão dado à sua esposa o nome de Eva (= «vida» ou «vivente», em hebraico), «pois que se tornou a mãe de todos os viventes».
Estas passagens dão suficientemente a entender que todo o gênero humano provém de Adão e Eva, sendo estes um casal e não uma população inteira.
Eis as razões pelas quais a Igreja sustenta o monogenismo.
Para se entender melhor esta posição, vão aqui referidas algumas das tentativas feitas por autores católicos, antes da encíclica «Humani generis» (1950), para explicar o dogma do pecado original em sentido aparentemente compatível com o poligenismo ou mesmo com o polifiletismo.
1) O gênero humano, diziam alguns polifiletistas, provém de múltiplos troncos, sendo que o primeiro casal ou os primeiros casais de cada um desses troncos pecou.
Admitida esta hipótese, ter-se-iam muitos pecados originais — o que é contrário à unidade do primeiro pecado, afirmada constantemente pela doutrina católica e inculcada pelo Concilio de Trento Além disto, em tal caso poder-se-ia concluir que o pecado era inevitável, pois que os múltiplos homens da primeira camada humana o cometeram sem exceção.
2) O gênero humano, diziam os monofiletistas poligenistas, provém de um só tronco, que compreendia muitos casais; todos estes se associaram num único pecado coletivo.
Esta hipótese salvaguarda melhor a unidade do pecado original; supõe, porém, os pecados pessoais de muitos varões a concorrer para a realização do pecado coletivo, a que contraria à doutrina de que o pecado da origem é o pecado de um só varão — Adão. Além disto, tal hipótese dá a entender, como a anterior, que o primeiro pecado era inevitável.
Sendo assim, um terceiro grupo de autores preferiu asseverar que
3) O gênero humano constava de muitos casais, sim. Mas um só destes pecou. Contudo quis Deus responsabilizar todos os demais indivíduos, embora não tenham pecado.
Neste caso Deus haveria cometido injustiça, pois teria atribuído arbitràriamente uma culpa a indivíduos que não haveriam pecado nem haveriam herdado uma natureza humana pecaminosa.
Em consequência, não se vê como conciliar o poligenismo com a doutrina do pecado original. Esta, como foi dito atrás, ensina que os primeiros pais cometeram um pecado único, o qual se transmite aos descendentes de Adão e Eva por via de geração; é justamente por herdarem a natureza humana destituída dos dons paradisíacos que deveriam ter, que os filhos de Adão aparecem disformes aos olhos de Deus, ou seja, contaminados pela culpa original.
A resposta das ciências naturais
Independentemente das várias teorias pelas quais enveredam no tocante às origens do gênero humano, os homens de ciência concordam em admitir as duas seguintes proposições:
1) As diversas raças humanas não constituem diversas espécies, mas uma só espécie humana (ou um só «syngámeon»).
O mais claro indício da unidade de espécie vigente entre os homens é a possibilidade de cruzamento dos mais variados tipos entre si: existem populações inteiras oriundas da união de indivíduos pertencentes a raças muito diversas uma da outra; tais são os «Boers», povo enérgico e vigoroso, que descende do matrimônio de holandeses com hotentotes;… os habitantes da Griqualândia (África do Sul), filhos de europeus e bosquimãs. Quanto aos caracteres somáticos que marcam cada raça, verifica-se que não constituem diferenças absolutas, mas que há uma escala de matizes entre eles, desde o branco róseo dos noruegueses, por exemplo, até o branco escuro dos abissínios; desde o amarelo muito claro dos chineses setentrionais até o amarelo carregado, quase chocolate, dos chineses meridionais; também as formas do nariz, dos olhos, do crânio, dos cabelos se alinham em escala gradativa através das diversas raças. O psiquismo é outro indício de unidade entre os homens: embora em todas as raças existam indivíduos mais, e outros menos inteligentes, todos são capazes de raciocinar e discutir na base dos mesmos princípios da lógica (os princípios de identidade, de contradição, de causalidade…); possuem o mesmo senso inato de pudor, proferem a mesma linguagem instintiva, agem segundo as mesmas tendências à verdade, ao bem e ao belo, desenvolvendo de maneira uniforme a sua civilização e indústria; nas mais diversas regiões, os homens recorrem aos mesmos tipos de instrumentos, variando apenas a matéria com que os confeccionam; ainda recentemente descobriram-se na Austrália e na África do Sul indivíduos que vivem isolados do mundo, mas utilizam instrumentos absolutamente idênticos aos que foram encontrados nas camadas mais remotas da idade da pedra.
Ora, se todos os indivíduos humanos constituem um só «syngámeon» ou uma só espécie, é lógico admitir que essa espécie tenha um só «berço» ou se derive de um só tronco, pois a ciência verifica que cada espécie de viventes possui um único lugar de origem, donde aos poucos se foi difundindo sobre a terra, por migrações (daí a nomenclatura da botânica e da zoologia). É o que incute o monofiletismo humano, tornando de todo improvável o polifiletismo (vários troncos na origem do gênero humano) e a ologênese (surto simultâneo dos homens em diversas regiões do globo, à semelhança de gotas de geada).
Contudo poder-se-ia objetar: encontraram-se fósseis humanos assaz diferentes uns dos outros, dentro, porém, do mesmo período geológico; são fósseis tidos como contemporâneos entre si, mas aparentemente independentes uns dos outros. Não insinuarão o polifiletismo? — Em resposta, far-se-á observar que muito relativa é a contemporaneidade desses fósseis: cada um dos períodos geológicos em que se situam, compreende dezenas ou centenas de milênios; ora bastam apenas algumas dezenas de séculos para que uma espécie de viventes emigre do seu berço de origem e se propague pelo globo, sofrendo os consequentes fenômenos de adaptação, evolução ou degenerescência. E, note-se bem, tal prazo (dezenas de séculos) escapa à observação experimental dos geólogos; uma diferença de cinco ou seis mil anos entre estrados da terra já não pode ser verificada, tendo que ser negligenciada (a Paleontologia não saberia dizer se o sinantropo de Pequim e o homem de Kanam na África, pertencentes ao pleistoceno inferior, foram contemporâneos entre si; não se pode determinar em que termos o pleistoceno inferior da África corresponde ao pleistoceno inferior de Pequim e ao da Inglaterra). Em consequência, os geólogos são obrigados a dar por estratigraficamente contemporâneos fósseis que outrora existiram à distância de alguns milênios uns dos outros!
2) Uma vez admitido o monofiletismo, a ciência não pode diretamente provar o monogenismo, mas também nada tem a lhe objetar.
O fenômeno que mais voga dá ao poligenismo, é a existência das diversas raças humanas, que a alguns observadores parecem irredutíveis a um só casal primordial.
Pois bem; levem-se em conta os elementos que explicam a diversificação das raças.
Esta se deve não somente a fenômenos de adaptação do indivíduo às diversas circunstâncias de clima, alimentação, trabalho, etc., fenômenos que em geral se processam lentamente, supondo sempre número relativamente grande de sujeitos. As divergências raciais se elucidam outrossim por um fator que só recentemente tem sido estudado: o mutacionismo, isto é, modificações ocorridas nos genótipos, portanto no período embrional do indivíduo, as quais motivam variação brusca e hereditária da espécie. Ora sabe-se que tais «mutações» se realizam em número restrito de indivíduos da mesma espécie (em uma ninhada grande, os indivíduos mutantes são «indivíduos raros»); é o que torna bem compreensível a tese de que numa camada numerosa de antropoides o Criador haja determinado infundir a dois apenas (um casal) uma alma intelectiva, humana, dando a esses antropoides (seres até então não humanos) os caracteres essenciais da natureza humana e fazendo que então começasse uma estirpe mutante, a estirpe humana, da qual, por via de monogenismo, procede o gênero humano atual. Segundo as leis de Mendel referentes à hereditariedade, um novo tronco (phylon) de viventes pode ter origem por combinação de cromossomas, não somente a partir de pouquíssimos, mas até a partir de um só indivíduo. Longe, portanto, de contradizer às ciências naturais, o monogenismo professado pela fé cristã é de certo modo ilustrado por estas.
A respeito das raças humanas e da sua formação veja-se «P. R.s 4/1957, qu. 2; E. Bettencourt, Ciência e Fé na história dos primórdios, AGIR (3a. ed.), cap. VI e Apêndice IV.
Ponderadas todas as opiniões dos autores, conclui-se que, com os dados de que atualmente dispõe, a ciência é impotente para provar qualquer das duas teses contrárias: poligenismo ou monogenismo. É sobre este fundo de incerteza que se faz ouvir a voz da Revelação cristã, professando o monogenismo estrito: esta profissão procede de um argumento superior aos de ordem natural, mas de modo nenhum contradiz à ciência; apenas vem dar resposta a uma questão que esta por si só não pode resolver; a infusão da alma humana, espiritual, a uma porção de matéria destinada a ser corpo humano é algo que a geologia e os fósseis não registram, por conseguinte algo que ficará sempre subtraído à observação dos cientistas.
Eis as. razões pelas quais o cristão professa o monogenismo do gênero, humano, sem receio de estar errando ou mesmo de estar destoando das expressões mais abalizadas do saber contemporâneo.
A propósito cf. E. Bettencourt. Ciência e Fé na história dos primórdios (ed. AGIR), cap. VI.