Pode-se afirmar que há indivíduos criminosos natos, como ensinava o jurista italiano César Lombroso? Existe uma constituição física própria dos delinquentes?
Em nossa resposta, apresentaremos primeiramente os dados biográficos e as idéias de César Lombroso; a seguir, procuraremos formular um juízo sobre a sua doutrina referente ao «criminoso nato».
1. Traços biográficos e idéias de Lombroso
1.1. César Lombroso nasceu de família judia em Verona (Itália) aos 18 de novembro de 1836. Em 1858 doutorou-se em Medicina na Universidade de Pavia, apresentando a tese «Ricerche sul cretinismo in Lombardia» (Pesquisas a respeito do cretinismo na Lombardia); desde então revelava interesse particular pelos estudos das doenças mentais e dos seus aspectos sociais. Tendo-se especializado em Pádua, Viena e Paris, foi chamado em 1862 a dar um curso de Psiquiatria na Universidade de Pavia, tornando-se de então por diante famoso neste ramo da Medicina. Em 1867 obteve a nomeação de professor extraordinário de Psiquiatria. Em 1871 passou a dirigir o manicômio de Pesaro. Em 1876 era professor ordinário de Medicina Legal e Higiene na Universidade de Turim, onde finalmente em 1905 lhe foi confiada a cátedra recém-instituída de Antropologia Criminal; pode-se mesmo dizer que Lombroso é o fundador desta disciplina, sumariamente explanada na sua obra «L’Uomo delinquente» (a partir -de 1875, várias vezes editada e traduzida). Nos últimos anos de sua vida, dedicou-se também à Metapsiquica e ao Espiritismo, vindo a falecer repentinamente em Turim aos 19 de outubro de 1909.
Lombroso gozava de personalidade entusiasta, apaixonada e aberta a largos horizontes. Costumava estar presente em toda parte (na Itália e no estrangeiro) onde suas idéias entrassem em séria discussão e com isso granjeou para si ardentes admiradores assim como ferrenhos adversários. Como quer que seja, desfrutou de grande autoridade entre os seus contemporâneos;
A posição doutrinária de Lombroso é, em principio, tributária da escola de Augusto Comte : de maneira muito mais sistemática e minuciosa do que seus antecessores, Lombroso pretendia reduzir o comportamento psíquico a fatores meramente biológicos ou materiais. Foi o que o” levou a conceber a famosa tese do «criminoso nato», que vamos agora fixar de perto.
1.2. Lombroso partia de um precedente já, de certo modo, estudado na Idade Média, a saber: há traços físicos que não raro acompanham e caracterizam tendências psíquicas delituosas do respectivo sujeito. Assim já São Boaventura (+1274) via em determinadas formas da cabeça os sinais de determinadas qualidades psíquicas; Frei Francisco Ximenez (séc. XIV) enumerou alguns sinais do corpo que denunciariam más inclinações da pessoa. No século XVIII, Lavater fundou a ciência dita «Fisionomia»; pouco depois, Gall, por sua vez, instituiu a «Frenologia»: estas duas disciplinas visavam estipular as relações existentes entre o tipo físico e o caráter moral do indivíduo; para Gall, os defeitos e as virtudes correspondiam ao aspecto exterior do crânio; chegou a admitir uma «bossa do assassínio» no crânio dos homicidas. Em meados do séc. XIX era o psiquiatra francês Morel quem enumerava as características somáticas que ele chamava «estigmas» do louco ou do delinquente; influenciado por suas convicções religiosas referentes à queda do homem, Morel asseverava ser o delinquente o tipo degenerado de um ser humano inicialmente perfeito.
Ora Lombroso em questões de antropologia inspirou-se imediatamente das idéias de Lavater, Gall e Morel; além disto, compartilhava o evolucionismo de Darwin, segundo o qual os seres vivos passam de tipos menos perfeitos para tipos mais perfeitos por motivos meramente mecânicos ou materiais. Desenvolvendo tais princípios, julgou poder concluir que existe um tipo de físico humano que por si mesmo leva o individuo ao crime ou, em outros termos, existe o tipo do «criminoso nato», ser predestinado ao crime por suas disposições congênitas, ser totalmente inculpado, mas também incorrigível, pois o crime para ele é algo de espontâneo e instintivo; o delito, asseverava Lombroso, «aparece… consequentemente… como um fenômeno natural, um fenômeno (diriam alguns filósofos) necessário, como o nascimento, a morte…» (L’Uomo delinquente m 5a. ed. pág. 518).
Mais precisamente: o criminoso nato seria vítima de uma forma de epilepsia oculta e atávica ou degenerescente, isto é, de epilepsia que o faria regredir para formas de corpo e de comportamento rudes e primitivas próprias de seus antepassados. As convulsões epilépticas no delinquente nato estariam representadas por impulsos violentos e irresistíveis a cometer o crime. O tipo do criminoso nato poderia ser observado em embrião no comportamento de certos animais irracionais, de homens selvagens e de crianças em geral: assim Lombroso pretendia elaborar a «embriologia do crime»; o delinquente constituiria uma faceta intermediária entre o selvagem e o louco.
Os traços típicos do criminoso nato seriam:
– quanto ao corpo: testa estreita e fugidia, prognatismo, mandíbula volumosa, assimetrias do crânio e da face, orelhas em asa, malares salientes, braços compridos, face glabra;
– quanto ao comportamento geral: insensibilidade à dor e ao remorso, crueldade, vaidade, carência de senso moral, etc.
Consequência lógica destas idéias é que, segundo Lombroso, não se deveria falar de «punição» infligida aos criminosos, mas, sim, de «medidas de defesa» da sociedade em relação a estes. Os delinquentes não teriam culpa moral, mas seriam perigosos para o bem comum, de sorte que nos casos mais graves se lhes deveria aplicar a própria pena de morte (de tal modo era evidente, para Lombroso, a sua incorrigibilidade!). O critério, pois, e a medida para se reprimir o crime não seriam a culpa do delinquente, mas o grau de perigo que este acarreta para a sociedade.
1.3. Além do criminoso nato, Lombroso admitia, sempre na base de caracteres somáticos, o criminoso louco ou alienado, o criminoso de ocasião, o criminoso por paixão, assim como o criminaloide ou criminoso acidental! — Paralelamente ao delinquente nato, haveria também a «prostituta nata» — tese esta ainda mais sujeita a discussão do que a anterior.
O psiquiatra italiano aplicou seus princípios outrossim ao estudo dos homens de gênio. Estes seriam vítimas de psicose de índole degenerativa, devendo por conseguinte ser considerados à luz da patologia mental.
Eis em grandes linhas a posição doutrinária de Lombroso. Como se compreende, provocou vivas discussões, principalmente em assembleias e congressos. Encontrou, porém, numerosos discípulos (Garofalo, Ferri, Di Tullio…), de modo que ainda hoje é representada por certa corrente de pensadores, os quais se inspiram do positivismo jurídico.
Entre outros, pode-se notar o nome de Nicéforo, que em 1902 propôs a sua teoria da «criminalidade latente»: o delito não seria senão a ascensão do «Eu inferior» (sede do comportamento atávico, primitivo, carregado.de agressividade, egoísmo, misantropia) ao nível do «Eu superior» (sede dos sentimentos evoluídos da pessoa).
Faz-se oportuno agora formular
2. Um juízo sobre a teoria de Lombroso
2.1. A distinção entre «criminoso» e «doente» ou entre «réu» e «irresponsável» já foi objeto de estudo e demonstração em «P. R.» 5/1958, qu. 6.
Quanto às idéias de Lombroso em particular, estão hoje ultrapassadas pelos resultados de pesquisas modernas. Tornou-se evidente que não existe tipo somático específico nem de criminoso nem de gênio; aos traços morfológicos assinalados por Lombroso não se pode atribuir o valor de caracterização que o estudioso italiano lhes atribuía, pois está comprovado que existem pessoas integralmente honestas portadoras dos «estigmas» de criminosos enumerados por Lombroso, como também há malfeitores requintados que, do ponto de vista morfológico, nada de característico apresentam.
Não há, portanto, raça de criminosos nem constituição física de delinquentes. Em outros termos: pode haver «indivíduos delinquentes», mas não há «tipos delinquentes». O que quer dizer: há pessoas que herdam desequilíbrio de hormônios e de metabolismo, em virtude do qual agem precipitadamente ou contra a razão; tornam-se assim criminosas, mas criminosas, em grau maior ou menor, inculpadas, porque são joguetes de reações irrefletidas. Há, portanto, anomalias congênitas, em virtude das quais alguns indivíduos caem no crime (naturalmente, com culpabilidade atenuada ou talvez mesmo nula).
Não existem, porém, dados científicos para concluir que tais predisposições se transmitem de maneira fixa, de sorte a constituir um tipo racial definido e estável, regido pelo determinismo de leis biológicas e destituído de liberdade de arbítrio. Esta deverá ser sempre levada em consideração; o homem sadio pode, principalmente com o auxilio da graça de Deus (que a ninguém abandona), corrigir as más tendências de sua natureza assim como as perniciosas sugestões do seu ambiente.
Lombroso, observando casos individuais, foi vítima da tendência a generalizar precipitadamente.
Eis, no setor dos gênios, alguns espécimes dessa tendência:
O cientista italiano apresenta a estatura muito alta ou multo baixa, assim como a magreza, quais características frequentes dos homens de gênio. A seguir, analisa 1.100 homens da história ditos «geniais» e dentre estes aponta apenas 78 muito baixos, 23 muito altos e 45 magros!
A esterilidade seria outra nota frequente nos homens de gênio. Todavia entre os 1.100 casos estudados, Lombroso só pôde indicar 50 casos de esterilidade. Camões aparece apenas com um estigma do gênio: era celibatário…
2.2. Vários dos adversários de Lombroso, prendendo-se ainda ao determinismo e materialismo do séc. XIX, tentaram explicar a criminalidade por influência exclusiva do ambiente social: o delinquente seria vítima do seu meio, vítima irresponsável, que se poderia recuperar mediante a técnica humana da reeducação, sem apelo às normas da consciência e aos valores morais. Ora também esse determinismo sociológico é errôneo, por negar radicalmente a liberdade de arbítrio humano.
Na verdade, tanto os fatores biológicos hereditários como as influências do ambiente contribuem para explicar o comportamento do indivíduo criminoso; contudo não hão de ser tomados como fatores absolutos.
É sobre estes princípios muito mais objetivos que se baseia a nova «Antropologia Criminal», divergente da antiga «Antropologia criminal». Em última análise, Lombroso granjeou ao menos o grande mérito de chamar a atenção dos juristas para as condições subjetivas do criminoso, mostrando que não se podem julgar os delitos apenas segundo os danos materiais ou visíveis acarretados, nem apenas segundo a gravidade da transgressão da lei ou da ordem objetiva; os legistas compreenderam melhor que as circunstâncias peculiares em que se ache um delinquente por ocasião do seu crime, podem merecer mitigação das penas estipuladas pelo direito. Quebrou-se assim o binômio unicamente considerado pelos juristas de outrora: delito e pena; já agora se levam em conta a pessoa e as condições subjetivas do delinquente, para se poder definir o tipo do delito e da pena.
2.3. Infelizmente, verifica-se que, embora o nome de Lombroso e a nomenclatura por ele utilizada já estejam ultrapassados, a teoria do «criminoso nato» suscitou uma mentalidade ainda hoje assaz difundida: permanece, sim, tanto nas elites intelectuais como nas camadas mais modestas da sociedade, a tendência a negar a culpabilidade moral, e a substituí-la pelo fator «doença» ou «estado patológico»; tal processo é muito cômodo, porque, uma vez tachado de doente, o transgressor da lei é naturalmente dispensado de fazer violência a si mesmo ou de se coibir mediante disciplina moral; o pretenso fator «doença» e a categoria «enfermo» servem de pretexto para a moleza ou para a condescendência com a natureza desregrada. A responsabilidade da regeneração, em tais casos, é transferida da consciência do indivíduo para a ciência dos médicos e a técnica dos psiquiatras; «não adianta remar contra a natureza doente; antes, torna-se prejudicial», pensam não poucos… muito erradamente!