A concepção segundo a qual todo pecado é fenômeno meramente patológico e inculpado, supõe não haver liberdade de arbítrio; o comportamento humano seria a expressão de fatores irracionais ou mecânicos. Ora tal sentença contrária à sã psicologia, como foi demonstrado em «P. R.» 5/1958, qu. 6. A criatura humana normal é dotada de livre arbítrio e, por conseguinte, de responsabilidade dos seus atos. Há, sem dúvida, casos doentios, nos quais o desequilíbrio fisiológico acarreta reações precipitadas do organismo, antecipando ou sufocando a deliberação da vontade; em tais situações a responsabilidade e a culpabilidade do agente são, como se compreende, diminuídas ou de todo tolhidas.
Não se devem, porém, generalizar tais casos… Nem todo pecador é um doente (se o fosse, não se deveria dizer que todos os homens são doentes?). Verdade é que em bom número de falhas morais ou pecados há circunstâncias atenuantes (nervosismo que impede ou reduz a capacidade de reflexão, tendências temperamentais, sugestões do ambiente, etc.); na prática, só Deus sabe com retidão julgar a consciência dos indivíduos que procedem mal. Isto não impede que detenhamos nossa atenção sobre o homem normal e procuremos fixar os princípios que devem reger o seu comportamento.
Vejamos então quais os fatores que possam induzir o homem mentalmente sadio ao pecado, ou seja, os fatores que acarretam tentações para o mal.
Donde provêm as tentações?
Três são as causas de tentações geralmente assinaladas pelos moralistas: o demônio, o mundo e a concupiscência desregrada; as duas primeiras são causas externas, a terceira é interna, ou seja, situada na própria natureza humana. Na realidade concreta, estas três fontes de tentações estão frequentemente associadas entre si, agindo em conjunto. É oportuno, porém, considerar cada qual separadamente.
O demônio
1. A. existência do demônio é fato que não padece dúvida aos olhos da fé cristã e que tanto os documentos profanos como fatos históricos comprovam com suficiente eloquência; cf. «P. R.» 6/1958, ou. 5; 32/1960, qu. 4.
O demônio não é um ser mau por si, mas um espírito que Deus criou bom e que abusou de sua liberdade para se rebelar contra o Criador. Este lhe concede atualmente certa interferência na história do gênero humano, interferência que o demônio explora para disseminar a desordem e a revolta, mas que o Criador aceita com um fim salutar: acrisolar as virtudes dos homens (cf. Eclo 2,1; Tg 1,12; 1 Pdr 5,8; Ef 6,11; 1 Cor 7,5; 2 Cor 2,11; 1 Tim 3,7; 2 Tim 2, 26). O sedutor, embora vise provocar os homens à ruína, deve, segundo o desígnio de Deus, servir à boa causa, pois, dos males que ele possa acarretar, a Providência dispôs tirar maiores bens.
No primeiro encontro que teve com os homens, o Maligno logrou a vitória: no paraíso tentou, sim, os primeiros pais (Adão e Eva), conseguindo que perdessem o domínio sobre si e a harmonia de que gozavam no estado de inocência (cf. Gên 3,1-6). Desde então a natureza humana é desordenada, trazendo em si mesma tendências contraditórias para o bem e para o mal ou, em outros termos, trazendo a concupiscência desregrada. — Visto ter o demônio provocado o primeiro pecado do gênero humano, pode-se dizer que ele é o tentador primordial e universal (todos os pecados no decorrer da história estão relacionados com a culpa de Adão e Eva e, por isto, também com a tentação suscitada pelo demônio no paraíso). Isto, porém, não quer dizer que o Maligno cause diretamente todo e qualquer pecado ocorrente no decurso dos séculos.
É verdade que alguns antigos doutores e escritores da Igreja, como Orígenes (+254), Evágrio Pôntico (+399), Cassiano (+423), São Leão Magno (+461), Ps.-Dionisio (séc. VI), São João Damasceno (+749), admitiram intervenção direta do demônio em todos os pecados dos homens e, por conseguinte, em todas as tentações. Outros Padres antigos, porém, não aceitaram essa tese. Na Idade Média, São Tomás, com a sua grande autoridade, optou pela negativa, lembrando que há dentro da natureza humana mesma elementos suficientes para explicar as tentações que todo homem padece (há, sim, tendências múltiplas desregradas); por conseguinte, julga o S. Doutor, não é necessário recorrer ao demônio para dar conta de todo e qualquer conflito entre o bem e o mal que ocorra no íntimo da criatura humana (cf. S. Teol. 1114,3; I/II 80,4).
Seja lícito, porém, observar: embora o demônio não seja causa imediata de qualquer tentação, deve-se-lhe reconhecer influência muito ampla em não poucas das ciladas para o mal com que o homem se defronta nesta vida. Há casos em que a intervenção do Maligno é evidente: o tentador manifesta sua presença por vozes, clamores, estrépito, etc., como se dava frequentemente, por exemplo, na vida do Santo Cura de Ars. Contudo essas intervenções portentosas são raras: para suplantar os homens, principalmente em nossos tempos, o Maligno não precisa de recursos extraordinários; dissimulando-se sob as coisas mais corriqueiras possíveis, consegue seduzir com facilidade as criaturas. Admite-se que, com particular empenho, ele procura entravar ou desvirtuar os exercícios de piedade, pois a oração é a arma capital a que os homens (tanto os justos como os pecadores) podem recorrer para o debelar.
Doutro lado, não se deverá esquecer que a ação do Tentador fica sempre sujeita às disposições da Providência Divina; somente porque Deus o permite, e na medida em que o permite, é que o Sedutor pode atacar os homens. Por conseguinte, o demônio nunca há de tentar as criaturas de maneira superior à capacidade de resistência de cada uma, porque o Senhor Deus não o permite (cf. 1 Cor 10,13); as tentações estão envolvidas dentro de um plano harmonioso que terminará com a vitória do Bem sobre o mal (tudo que Deus faz ou permite, obedece a número, peso e medida, conforme Sab 11, 21).
Santa Teresa de Ávila, em seu estilo gracioso, zombava do demônio. Segundo a santa, o Maligno, embora seja muito perspicaz no setor da natureza, é tremendamente embotado ou obtuso para as coisas de Deus…; além disto, «es muy cobarde», afirma ela frequentemente (Caminho da perfeição 23; Vida, passim).
2. Pergunta-se agora: como procede o demônio quando tenta os homens por vias ordinárias?
Em primeiro lugar, observe-se que ele é incapaz de intervir de maneira direta e imediata em nossas faculdades superiores (a vontade e a inteligência). Com efeito, somente Deus pode agir diretamente sobre a vontade livre do homem, inclinando-a para onde bem Lhe agrade; fora do Criador, nenhum ser tem acesso dentro da livre vontade humana; por conseguinte, nenhuma criatura a pode mover por dentro, determinando ou constrangendo o livre alvitre. Na mais larga das hipóteses, o demônio pode indiretamente, ou seja, por meio dos sentidos, sugerir a alguém tome tal ou tal alvitre; contudo nunca lhe é dado penetrar dentro da vontade, coagindo-a fisicamente a abraçar uma decisão pecaminosa.
Mesmo nos casos de obsessão e possessão diabólicas (quando o demônio age de maneira muito íntima sobre as faculdades sensíveis de alguém), ele é incapaz de penetrar na vontade e a mover por dentro; caso o possesso (que conserve lucidez de suas faculdades mentais) não queira consentir em sugestões pecaminosas, não consentirá de maneira alguma. Acontece, porém, em muitos casos de possessão diabólica, que a perturbação dos sentidos ou o choque emocional são tais que a mente fica como que desligada e a vontade carece dos pressupostos necessários para exercer a sua liberdade; a pessoa deve então ser equiparada a um doente irresponsável; os atos desregrados que ela cometa, não são pecaminosos, porque não são atos voluntários (em tais casos, a livre vontade simplesmente não funciona; não se pode dizer que seja interiormente dirigida ou movida pelo demônio). Fica então de pé a afirmação: o Maligno não pode constranger o homem a pecar.
Quanto à inteligência humana, o demônio também não a atinge diretamente; é incapaz de conhecer os pensamentos íntimos de cada um; ele só percebe o que nos está na mente, através dos sinais sensíveis (palavras, gestos e atitudes) com que traduzimos nossas idéias; por conseguinte, se não manifestamos de algum modo as nossas intenções, ele não pode tomar conhecimento delas nem apreender nossos planos.
Como se vê, toda a ação direta do demônio sobre os homens fica reduzida ao setor da sensibilidade; ele age, sim, sobre os sentidos externos (vista, ouvido, tato…) e sobre a fantasia ou imaginação; e somente mediante impressões suscitadas nessas faculdades é que ele influi nas potências superiores (inteligência e vontade), incutindo assim as suas sugestões ao pecado.
Mais precisamente: o demônio pode induzir ao mal
– desenvolvendo ou mesmo suscitando nos sentidos (na vista, em particular) representações que tornem mais atraentes certos prazeres ilícitos;
– avivando as paixões (comodismo, afeto a uma criatura…) que desviem do dever de estado e do serviço de Deus;
– inspirando ou corroborando concepções que levem a pessoa a contentar-se com deleites meramente terrestres;
– perturbando a alma, principalmente na hora da morte, mediante a excitação de sentimentos de luxúria, ódio, escrúpulos, desespero, respeito humano…
– transformando-se em «anjo de luz», isto é, fazendo-se arauto de aparições e revelações, que a alma julga genuínas ou provenientes da parte de Deus (cf. 2 Cor 11,14);
– levando os fiéis a exageros ou a práticas exóticas em assuntos de piedade ou ascese — o que sujeita as almas a perda de tempo e quedas na vida espiritual;
– inspirando aos devotos indevida confiança em si mesmos e na sua opinião própria.
Ao mover os maus estímulos, o Maligno é terrivelmente hábil e sorrateiro; explora a constituição física e o temperamento de cada um: procura vulnerá-lo no respectivo ponto fraco, fomenta as mais leves tendências ao desequilíbrio latentes dentro da personalidade (assim o tentador concorre para fazer crer que ele não age nem existe, e que o pecado não é realmente senão o produto de um desajuste físico-psíquico).
O mundo
Em sentido largo, «mundo» vem a ser o conjunto das criaturas materiais que cercam o homem. Embora todas tenham sido criadas boas, compreende-se que nos possam desviar dos nossos deveres e do serviço de Deus, pois apresentam aos sentidos e às paixões bens que são capazes de satisfazer parcialmente ao homem, à revelia mesma da Lei de Deus.
Contudo o mundo é fonte de tentações principalmente quando tomado em sentido restrito, ou seja, segundo a linguagem do Novo Testamento (cf. Mt 18,7; Tg 4,4), maxime de S. João (cf. 15,8s; 16,8.33; 17,9-16; 1 Jo 2,15-17; 3,13; 4,5; 5,4.19). Designa então o conjunto dos homens apegados aos bens terrestres, avessos a Deus e aos valores eternos. Tais pessoas, seguindo como única norma de conduta os atrativos desregrados da natureza, seduzem ao mal não somente mediante suas palavras e seus conselhos, mas também e simplesmente pelos seus exemplos : concorrem para criar uma atmosfera em que talvez não se fale de pecado, mas em que se vive o pecado como se fosse uma realidade normal. Sua influência é tanto mais perniciosa quanto mais ela se encobre sob fórmula de aparente sabedoria e bom senso; «civilização» e «progresso» tornam-se destarte pretextos capciosos para se promover a descristianização da sociedade.
Não há dúvida, o mundo assim entendido é ocasião de tentações ao pecado. O demônio tem certamente seu interesse em utilizá-lo e, na verdade, não raro o utiliza, principalmente fomentando o chamado «mundanismo», ou seja, a mentalidade alheia a Deus e entregue aos prazeres dos sentidos.
É o mundanismo que São João caracteriza no versículo abaixo, ao referir-se a duas cobiças desregradas e ao fasto ou ao luxo de vida:
«Tudo que há no mundo, é cobiça da carne, cobiça dos olhos e soberba da riqueza» (1 Jo 2,16).
O mundo deseja satisfazer à carne, à curiosidade e à vaidade ostensiva.
Resta ainda assinalar nesta ordem de coisas
A concupiscência desregrada
Por assim dizer, o adversário no 1 do homem, adversário sem o qual o demônio e o mundo nada obteriam, é o homem mesmo, ou seja, a desordem de aspirações da natureza humana decaída; numa palavra: a concupiscência desregrada.
Em que consiste propriamente tal desordem?
Por experiência sabemos que não raro as faculdades inferiores do homem desejam bens sem dúvida atraentes, mas contrários aos que a sã razão e a fé indicam como verdadeiros valores do homem. Em consequência, os sentidos externos, a imaginação e os afetos sensíveis (as paixões) dão origem a um arsenal de tendências que perturbam o juízo da razão e continuamente ameaçam sobrepujá-lo, fazendo que o indivíduo proceda de maneira oposta à voz da consciência; esse arsenal é o que o Concílio de Trento chama «fomes peccati», estopim do pecado.
Tal fonte de tentações é por si suficiente para suscitar dentro do indivíduo uma luta constante, a fim de que a desordem não prevaleça em seu comportamento moral.
A propósito vêm as palavras de São Tiago: «Cada qual é tentado por sua própria concupiscência, que o atrai e arrasta» (1,14).
Um dos princípios básicos da vida espiritual ensina que «sentir a concupiscência» ou a solicitação ao pecado não é pecado, enquanto o individuo não consente ou não dá sua adesão a tal solicitação. Na prática, não é sempre fácil distinguir entre «sentimento» e «consentimento», dado o íntimo entrelaçamento das atividades da alma”. A fim de evitar os casos de dúvida ou perplexidade, procure cada um evitar tudo que de longe possa excitar as paixões desregradas. Quem brinca com o fogo. pode vir a ser vítima do fogo; sofrerá então à revelia sua, e com lamentos profundos…, mas não sem culpa própria. Assim não queira o homem sinceramente sequioso de perfeição brincar com o fogo da concupiscência, dando aos seus sentidos liberdade descontrolada! Poderá vir a sofrer em consequência disso, não, porém, sem culpa ou pecado da sua parte.
É certo que o demônio e o mundo excitam a concupiscência em cada pessoa, embora a cobiça possa por si mesma entrarem conflito contra a sã razão. Aliás, demônio, mundo e concupiscência, frequentemente se concertam entre si para provocar a ruína do homem. Difícil é por vezes assinalar a parte própria de cada um desses três agentes na provocação de uma tentação.
O fato de que a concupiscência de cada indivíduo é sempre a fonte imediata das tentações, explica que cada um seja tentado de modo próprio, ou seja, de acordo com o seu temperamento pessoal. Assim o problema de consciência de cada um parece não ter igual em outra criatura; muitos são levados então a crer que seu caso é por isto insolúvel… Não o creiam; embora tenha cada um seu caso próprio, estejam todos certos de que os remédios da Misericórdia Divina se adaptam a todas as indigências possíveis.
Por reconhecer nas crises de consciência os traços próprios da personalidade do respectivo sujeito, não poucos estudiosos julgam poder resolvê-los pelo recurso exclusivo à Medicina. Ora tal esperança ficará sempre vã; a psiquiatria e a ciência humana, nos casos de pessoas moralmente desequilibradas, só atingem a periferia, e não o âmago do problema. A não ser que o paciente seja totalmente anormal ou tarado, imprescindível será sempre a ascese ou o domínio do sujeito sobre si mesmo. Em vez de relegar o paciente para a categoria dos «doentes vítimas» e dispensá-lo de qualquer esforço na luta, procurem o educador e o médico despertar no paciente a consciência de que justamente ele não é vítima e de que pode reagir e vencer. Os indivíduos que certos psicólogos, de maneira mole e cômoda, dão por vítimas (procurando apaziguá-los como se não tivessem que lutar), esses mesmos podem tornar-se heróicos vencedores de si mesmos; podem, em uma palavra, recuperar-se.