1. Introdução
Se você perguntar a qualquer cristão protestante qual é a base da fé dele, a resposta mais provável será algo como: “A minha única regra de fé e prática é a Bíblia”. Alguns vão usar termos técnicos, outros vão repetir slogans já prontos, mas a ideia é sempre a mesma: somente a Escritura, e nada mais, é a autoridade suprema para definir o que devemos crer e como devemos viver[1].
Esse slogan não é apenas uma frase bonita. Ele pretende garantir algo muito concreto: segurança. Quando o protestante diz “somente a Bíblia”, ele quer dizer que sua fé não está apoiada em tradições humanas, em opiniões de líderes religiosos, em decisões de concílios ou em documentos posteriores. Quer afirmar que sua fé se apoia na Palavra de Deus escrita, que é perfeita, verdadeira e livre de erro. A vantagem que ele imagina ter é mais ou menos esta: enquanto outros cristãos dependeriam de “instituições falíveis” ou de “tradições humanas”, o protestante teria algo sólido, fixo, definido, imutável: um livro, com começo, meio e fim, que pode ser lido, estudado e verificado.
Em termos práticos, o que se vende é uma espécie de imagem de fé “pura”: a Bíblia em uma mão, o crente na outra ponta, sem (ou quase sem) intermediários. Mesmo que essa imagem seja simplista, ela funciona muito bem na retórica. Quem poderia ser contra “somente a Palavra de Deus”? Quem ousaria dizer que prefere “Bíblia mais alguma coisa”? O slogan é forte justamente porque soa óbvio. E quando algo soa óbvio, as pessoas param de fazer perguntas.
Só que, se quisermos levar essa posição a sério, a primeira coisa que precisamos fazer é voltar a perguntar o que quase ninguém pergunta. Porque por trás da expressão “somente a Bíblia” existe uma pressuposição gigantesca, que normalmente passa despercebida: afinal, de que “Bíblia” estamos falando?
Um protestante comum abre o seu exemplar, vê ali 66 livros, e não tem dúvida nenhuma de que aquilo é “a Bíblia”. Gênesis até Apocalipse, nada mais, nada menos. Só que essa certeza prática esconde uma questão que é, ao mesmo tempo, simples e devastadora: como ele sabe que esses 66 livros, e somente esses 66, são de fato a Palavra escrita de Deus? Quem determinou que são exatamente esses, e não 65, 70 ou 73? Em que momento, e com base em que critério, essa coleção foi fixada? E, mais importante ainda, com que tipo de certeza ele pode afirmar que essa lista de livros está correta?
É aqui que entra a pergunta que quase nenhum protestante faz: “como eu sei quais livros pertencem à Bíblia?”. Não é uma pergunta curiosa ou filosófica no sentido abstrato. É uma pergunta absolutamente prática. Imagine, por um instante, que exista um único livro inspirado que foi deixado de fora do seu exemplar, ou um único livro não inspirado que foi incluído indevidamente. Isso significa que a sua suposta “regra infalível de fé” já não é mais uma coleção perfeitamente fiel daquilo que Deus de fato inspirou. Em outras palavras, se você erra na lista, já não tem mais segurança plena na regra.
Note que até aqui não estou discutindo doutrina católica, Tradição, Magistério, concílios ou qualquer outra coisa. Estou simplesmente perguntando algo que todo cristão, se levasse o próprio discurso a sério, deveria se perguntar: eu sei, com que tipo de certeza, que os livros que tenho na minha mão são exatamente aqueles que Deus quis inspirar, e nenhum outro?
Essa pergunta não aparece em sermões, em pregações, em estudos bíblicos, em devocionais. Muitos protestantes sinceros passam a vida inteira lendo a Bíblia sem jamais considerar que a lista de livros que eles recebem já é um “dado pronto”, e que esse “dado pronto” precisa de uma justificação. O problema é que, se essa justificação não existir, o slogan “somente a Bíblia” fica pendurado no ar.
Se você é protestante e está lendo isto, precisa entender uma coisa desde já: o objetivo deste artigo não é atacar a sua honestidade, a sua boa fé ou a sua vida espiritual. A questão não é se você é sincero. A questão é se a posição que você defende se sustenta quando é levada até suas últimas consequências lógicas. Isso vale também para o leitor católico, que talvez nunca tenha refletido seriamente sobre o problema do cânon. Não adianta usar o argumento do cânon como arma retórica se você não entendeu o que está em jogo.
O que vamos fazer aqui é bem simples, embora seja intelectualmente exigente: vamos pegar a afirmação protestante de que “a Bíblia, enquanto coleção concreta de livros, é a única regra infalível de fé”, e colocar essa afirmação sob exame. Vamos perguntar se, dentro da própria lógica protestante, é possível sustentar isso de forma coerente, sem apelar a truques, sem empurrar problemas para debaixo do tapete e sem ficar apenas repetindo frases decoradas.
Não vamos discutir, por ora, se a Bíblia é Palavra de Deus. Não é esse o ponto. O artigo não é sobre inspirar ou não inspirar, sobre se Deus falou ou não falou por escrito. Também não vamos defender a posição católica.
Este artigo não está defendendo o modelo católico positivo nem discutindo quando e como a Igreja definiu formalmente o cânon. O foco aqui é estritamente interno: verificar se o modelo protestante, tomando seus próprios princípios, consegue sustentar a pretensão de possuir uma “única regra infalível de fé” concretamente determinada.
Se você afirma que possui em suas mãos uma coleção concreta de livros que constitui, sozinha, a sua única regra infalível de fé, então você está se comprometendo com uma série de coisas que precisam ser examinadas. Entre elas, a mais básica é esta: você precisa saber quais são esses livros com um grau de certeza compatível com o status que você lhes dá.
O que está em jogo é a coerência interna da posição protestante: é possível defender que a Bíblia, entendida como lista de 66 livros, é a única regra infalível de fé, sem ser capaz de justificar infalivelmente a própria lista?
O objetivo não é vencer uma disputa de palavras, mas expor um ponto cego. Muita gente repete “somente a Bíblia” sem jamais se perguntar de qual Bíblia está falando e com que tipo de certeza afirma isso. Se você tiver coragem de seguir o raciocínio até o fim, vai perceber que o problema não é pequeno. E que a fidelidade a Deus, se for levada a sério, exige encarar esse problema de frente.
1.1 Um esclarecimento necessário: a quem chamo aqui de “protestante”
Antes de avançar, preciso deixar claro a quem este argumento se dirige.
Quando eu falar ao longo do texto de “protestante” ou “posição protestante”, não estarei me referindo a cada indivíduo que se diz evangélico, nem a todos os matizes históricos possíveis do protestantismo. Estarei mirando um modelo bem específico, que é, no entanto, o padrão em praticamente todo o ambiente reformado, evangélico e pentecostal contemporâneo:
- a Bíblia, entendida concretamente como a coleção de 66 livros, é a única regra infalível de fé;
- toda e qualquer instância eclesial na terra – concílios, sínodos, confissões, pastores, bispos, denominações – é sempre falível e não assistida infalivelmente por Deus em juízos doutrinários;
- logo, não existe, na terra, um órgão visível que possa definir de forma infalível o cânon, nem qualquer outra questão de fé.
Se você é reformado confessional, luterano, batista, presbiteriano, pentecostal ou de alguma igreja “bíblica” independente, e sustenta, em essência, 66 livros como única regra infalível + negação de qualquer magistério infalível na terra, então o argumento é dirigido a você, ainda que as suas formulações internas variem.
Sim, um reformado de linha mais clássica vai apelar com mais seriedade ao uso da Igreja antiga, às confissões históricas, ao consenso dos séculos. Um luterano pode falar em antilegomena. Um evangélico carismático vai falar direto do “Espírito que testifica no coração”. As retóricas mudam. Mas em todos esses casos, o ponto estrutural é o mesmo:
- a Escritura, sozinha, é a única regra infalível;
- a Igreja, como órgão visível, é sempre falível;
- não há, em lugar nenhum, uma autoridade instituída por Cristo com promessa de assistência infalível para definir o cânon.
É com esse modelo que o artigo está dialogando. Se alguém quiser escapar dizendo “mas a minha tradição reformada clássica fala da providência de Deus sobre o cânon”, ou “minha confissão não é bem assim”, ótimo. Que mostre, então, onde, dentro da sua própria estrutura, aparece uma instância visível, com promessa divina de não errar, que possa definir infalivelmente a lista de livros. Se não mostrar, continua dentro do alvo. Se mostrar, já deixou de ser protestante no sentido em que o sola Scriptura é normalmente entendido.
2. Conceitos básicos do debate
Antes de discutir se a posição protestante é coerente ou não, precisamos combinar o vocabulário. Muita confusão em debates entre católicos e protestantes nasce exatamente daí: mesmos termos, significados distintos.
Aqui eu não quero encher o texto de definições técnicas. Mas preciso de um mínimo de clareza para que você saiba exatamente o que está sendo questionado. Vamos começar pela palavra que parece mais óbvia de todas: “Bíblia”.
2.1. O que chamamos aqui de “Bíblia”: não só os textos, mas a coleção concreta de livros
Quando alguém diz “eu creio na Bíblia”, a frase parece clara. Mas, se você pensar dois minutos, vai perceber que existem pelo menos dois níveis aí.
- Primeiro nível: “Bíblia” como Palavra de Deus escrita, de modo geral, sem entrar nos detalhes de quais livros, quantos, quais títulos. É a ideia de que Deus falou pela história, inspirou autores humanos, e essa revelação foi registrada por escrito.
- Segundo nível: “Bíblia” como um objeto concreto, que você segura na mão. Nesse nível, não estamos falando de uma ideia vaga de revelação escrita, mas de uma coleção específica de livros, com uma certa quantidade, uma certa ordem, com determinados títulos e conteúdos.
Neste artigo, quando eu usar a palavra “Bíblia” no contexto do protestante, estou me referindo a esse segundo nível: não à revelação escrita em abstrato, mas à coleção concreta de livros que está presente na Bíblia protestante comum, com os seus 66 livros. Gênesis até Apocalipse, passando pelos livros históricos, poéticos, proféticos, Evangelhos, cartas, etc.
Por que isso é importante? Porque o problema que estamos examinando não é se existe algo como “revelação cristã escrita”, mas se aquela coleção específica de livros, exatamente como aparece na Bíblia protestante, pode ser tratada como a única regra infalível de fé. Ou seja: o foco está na lista concreta.
2.2. O que é “cânon bíblico”: a lista oficial de livros considerados Palavra de Deus
No contexto bíblico, “cânon” é simplesmente isso: a lista dos livros reconhecidos como inspirados por Deus e, portanto, como Palavra de Deus escrita.
Não estamos falando aqui do conteúdo interno de cada livro, mas da pergunta anterior a isso: quais livros entram na lista e quais ficam de fora. O cânon é, por assim dizer, a fronteira. Dentro da fronteira, temos livros que um grupo cristão considera inspirados, normativos, sagrados. Fora da fronteira, temos livros que podem ser edificantes, interessantes, históricos, mas não são tratados como Escritura no mesmo sentido.
O cânon é o “catálogo oficial” de livros inspirados. Quando um protestante diz “Bíblia de 66 livros”, está afirmando um cânon específico. Quando um católico fala de 73 livros, está afirmando outro cânon. Em ambos os casos, a questão é a mesma: qual lista está correta?
E aqui aparece um detalhe importante: a própria Bíblia, enquanto conjunto de livros, não traz em lugar nenhum, de modo explícito, uma lista completa de todos os livros inspirados. Você não encontra, no final de Apocalipse, um índice dizendo: “Estes são, e somente estes, os livros inspirados por Deus”. Isso significa que a definição da lista de livros não é algo que vem pronto em forma de tabela dentro do próprio texto sagrado.
Portanto, toda comunidade cristã que diz “esta é a Bíblia” está, de algum modo, adotando um cânon. E, queira ou não, essa adoção envolve um juízo: esta lista está correta, aquelas outras estão erradas. É esse juízo que está em jogo quando discutimos o problema do cânon.
Repare também que o problema do cânon não é um detalhe secundário. Se um único livro inspirado for excluído, você está deixando de fora algo que Deus quis comunicar. Se um livro não inspirado for incluído como se fosse Palavra de Deus, você está dando a uma obra humana uma autoridade que ela não tem. Em ambos os casos, sua regra de fé fica comprometida.
2.3. O que o protestante quer dizer com “única regra infalível de fé”
Passemos agora para outra expressão chave: “única regra infalível de fé”.
Quando um protestante sério usa essa expressão, ele não quer dizer apenas que a Bíblia é importante, ou que é a principal fonte de doutrina. Ele quer dizer algo mais forte: que somente a Bíblia, enquanto Palavra de Deus escrita, é infalível, isto é, não pode errar. Todo o resto é subordinado, falível, corrigível. Tradições da igreja, confissões de fé, credos históricos, líderes, concílios, tudo isso tem uma autoridade limitada e condicional. A Bíblia, por sua vez, tem autoridade suprema e irrevogável[2].
“Regra de fé”, nesse contexto, significa o padrão normativo que decide, em última instância, o que é doutrina verdadeira e o que é doutrina falsa. É a medida última que aprova ou reprova qualquer ensinamento. Se algo contradiz a Bíblia, está errado. Se está de acordo com a Bíblia, pode ser aceito. Em outras palavras, a Bíblia é a instância final de apelação.
Quando alguém acrescenta a palavra “infalível”, está dizendo que essa regra não contém erro e não conduz ao erro. Se você seguir fielmente o que essa regra ensina, não será enganado em matéria de fé. E quando se acrescenta ainda “única”, reforça-se a ideia de exclusividade: não há outro padrão infalível ao lado da Bíblia. Não há outra fonte normativa, com o mesmo peso e a mesma autoridade.
Logo, quando o protestante diz que a Bíblia é “a única regra infalível de fé”, está afirmando que:
- Existe um conjunto determinado de livros, que ele chama de Bíblia.
- Esses livros, e somente eles, são inspirados por Deus e completamente livres de erro em matéria de fé.
- Nenhuma outra instância neste mundo, seja um concílio, um papa, uma tradição, uma confissão de fé, pode competir com a Bíblia em termos de autoridade infalível.
- Tudo, em matéria de fé e vida do cristão, que não esteja na Bíblia é, em princípio, falível.
Essa é a reivindicação. E é exatamente por ser uma reivindicação tão forte que ela exige uma base sólida. Se você diz que algo é sua “única regra infalível de fé”, você está dizendo que tudo o que você crê sobre Deus, Cristo, salvação, graça, sacramentos, juízo, céu e inferno, depende, em última análise, da correção e integridade desse padrão.
2.4. Duas coisas diferentes: a Bíblia em si e o meu conhecimento dela
Até aqui, falamos da Bíblia como coleção concreta de livros e do cânon como lista de livros inspirados. Agora precisamos fazer uma distinção indispensável: a diferença entre o que a Bíblia é em si mesma e a maneira como eu a conheço.
Muita confusão surge porque as pessoas misturam esses dois planos. Para o nosso argumento, precisamos mantê-los rigorosamente separados.
2.4.1. A Bíblia ser infalível em si
Quando dizemos que a Bíblia é infalível em si, estamos falando de seu estatuto ontológico, isto é, daquilo que ela é em sua própria realidade, independentemente da nossa percepção. A tese cristã clássica é esta: Deus não pode errar. Se Deus inspira um texto, esse texto, enquanto Palavra de Deus, não contém erro naquilo que Ele quer afirmar. A infalibilidade da Escritura deriva da infalibilidade de Deus[3].
Então, em si mesma, a Escritura, enquanto revelação divina escrita, é perfeita, verdadeira, livre de engano. Se existe um conjunto de livros efetivamente inspirados por Deus, esse conjunto é, em si, infalível, mesmo que ninguém na Terra saiba exatamente quais livros o compõem. É importante entender isso: a infalibilidade da Escritura não depende do nosso conhecimento dela[4].
Portanto, quando falamos da Bíblia “em si”, estamos tratando daquilo que ela é na ordem das coisas criadas e sustentadas por Deus: uma revelação escrita, inspirada por Ele e, por isso, infalível.
2.4.2. O plano do conhecimento humano
É uma coisa dizer: “Se Deus inspirou certos livros, eles são infalíveis em si”. Outra coisa, completamente diferente, é dizer: “Eu sei com certeza quais livros, e somente quais, Deus inspirou”.
Aqui já não estamos falando da infalibilidade da Escritura em si mesma, mas da certeza que eu, como crente, tenho sobre o conjunto de livros que compõe a Escritura. Em outras palavras, saímos do plano ontológico e entramos no plano epistemológico.
A pergunta passa a ser: com que tipo de certeza eu posso afirmar que estes e somente estes livros são Palavra de Deus escrita?
Certeza meramente provável? Certeza moral? Certeza absoluta? Certeza infalível (de fé)?
Veja como isso é decisivo para a discussão. Um protestante pode tentar evitar a questão dizendo algo assim: “Eu não preciso saber infalivelmente qual é o cânon. Basta saber que a Bíblia, como Palavra de Deus, é infalível”. O problema está justamente em confundir esses dois níveis. Ele afirma a infalibilidade da Bíblia “em si”, mas não encara o problema da certeza sobre o conjunto concreto de livros que ele usa como regra.
Só que a posição que ele defende não é simplesmente “há uma Palavra de Deus infalível em algum lugar”. A tese dele é mais forte: “esta coleção concreta de 66 livros, que eu tenho aqui, é a minha única regra infalível de fé”[5]. Ora, se ele não sabe infalivelmente que esses 66 livros são o conjunto completo e exato da Palavra inspirada, então o que ele possui, na prática, não é uma regra infalível de fé.
Note bem: a Bíblia, enquanto Palavra de Deus inspirada, pode ser infalível em si, independentemente de qualquer coisa. Mas isso não resolve, por si só, o problema de saber, com certeza infalível, quais livros concretos fazem parte dessa Palavra inspirada.
O nosso argumento vai se concentrar justamente nesse segundo ponto: se o protestante não pode justificar, dentro de sua própria lógica, um conhecimento infalível do cânon, então ele não pode, de modo coerente, tratar essa coleção de livros que ele tem como sua única regra infalível de fé.
2.5. Um esclarecimento necessário: tipos de certeza
Antes de avançar para o argumento formal, precisamos deixar claro: quando falamos em “conhecer infalivelmente o cânon”, que tipo de certeza estamos exigindo? Se você não distingue os tipos de certeza, corre o risco de achar que estamos pedindo um nível impossível de conhecimento, quase como se o cristão tivesse de ter acesso a uma espécie de visão direta de Deus.
Isso é falso. A tradição cristã, de modo geral, distingue pelo menos três níveis relevantes de certeza:
- Certeza meramente provável: É o nível mais baixo. Você olha as evidências e conclui que algo é “muito provavelmente verdadeiro”, mas admite tranquilamente que poderia estar enganado. Aqui entram muitas opiniões científicas em fase inicial, hipóteses históricas, julgamentos prudenciais do dia a dia.Exemplo: “Provavelmente vai chover hoje à tarde”. Você toma decisões com base nisso, mas sabe que pode ser surpreendido.
- Certeza moral: É um grau mais alto de segurança, suficiente para agir de forma responsável na vida prática. Você não tem uma garantia absoluta, mas as razões contrárias são tão fracas que seria irresponsável viver como se elas fossem relevantes.Exemplo: a certeza que você tem de que seus pais são, de fato, seus pais. Não é uma certeza deduzida matematicamente, mas é tão forte e tão enraizada que você estrutura a vida inteira sobre ela sem dúvida séria.
- Certeza de fé (ou certeza infalível de fé): Aqui estamos em outro patamar. É a certeza baseada diretamente na autoridade de Deus que revela. Quando cremos, por fé, em algo que Deus revelou, não dizemos apenas “é muito provável” ou “é moralmente seguro”, mas “é impossível que seja falso, porque Deus não pode enganar nem ser enganado”[6].Exemplo: a divindade de Cristo, a ressurreição, a existência da vida eterna. Não são meras probabilidades; são verdades às quais aderimos com fé divina, justamente porque Deus as revelou.
Essa distinção é decisiva para o nosso tema. Por quê?
Porque quando o protestante diz que a Bíblia é a sua “única regra infalível de fé”, ele não está falando de uma convicção meramente provável, nem de uma mera certeza moral. Ele está dizendo, na prática, que pode aderir à Bíblia, enquanto coleção concreta, com fé divina, isto é, com a mesma certeza com que crê que Cristo é Deus ou que Deus é Trindade.
Ora, a fé divina só pode se dirigir àquilo que Deus de fato revelou. Eu não posso ter fé no que é apenas provável que Deus tenha dito. Posso ter opinião piedosa, posso ter confiança humana, posso ter certeza moral. Mas não posso dizer honestamente: “creio com fé divina que Deus revelou X”, se eu não sei infalivelmente que X é objeto da revelação.
2.5.1 O que eu não estou exigindo
É importante deixar claro o que não estou exigindo. Não estou dizendo que, sem certeza de fé sobre o cânon, ninguém pode crer em Cristo ou ser salvo; estou dizendo apenas que, sem esse tipo de certeza, não faz sentido falar em “única regra infalível de fé” no sentido forte do termo. O que se tem é uma regra altamente provável, não uma regra infalível.
Também não estou dizendo que o cristão precisa ter uma espécie de visão direta de Deus, nem uma cadeia de argumentos históricos irrefutáveis, em que nenhum elo possa ser contestado, para poder aderir ao cânon com fé. Isso seria um perfeccionismo epistemológico ridículo.
Ninguém precisa de um tratado de história da Igreja para crer, com fé divina, que Cristo é Deus ou que Ele ressuscitou. O que acontece é outra coisa: Deus fala, por meio de sinais, de testemunhas e de uma autoridade assistida por Ele, e o crente, apoiado nessa palavra de Deus, pode dar um assentimento que ultrapassa a mera probabilidade humana. As mediações históricas podem ser falíveis; o fundamento último da fé, não.
Aplicado ao caso do cânon, isso significa o seguinte: eu não estou exigindo que o protestante tenha um conhecimento infalível de cada passo do processo histórico (e psicológico) que o levou à sua Bíblia de 66 livros. O ponto é outro. Se ele pretende aderir ao seu cânon com fé divina – isto é, se ele trata o conjunto de 66 livros como objeto de fé, e não apenas como hipótese muito provável – então, em algum lugar, precisa existir um fundamento que não seja mera opinião humana sobre a providência de Deus, mas a própria palavra de Deus garantindo aquele conjunto.
Em outras palavras: a exigência de certeza de fé recai sobre o objeto enquanto revelado (“estes livros são, e somente estes são, Palavra de Deus escrita”), não sobre cada mediação psicológica que o indivíduo percorre até chegar a esse objeto. E aqui está a questão decisiva:
- se Deus, em nenhum momento, garantiu à Igreja por meio de uma autoridade visível que este é o conjunto de livros inspirados,
- então, quando o protestante diz “creio com fé que estes 66 livros formam a Bíblia”, o que ele tem na mão não é fé divina, mas uma mistura de probabilidade histórica com decisão subjetiva de confiar nisso.
O que o argumento exigirá, portanto, não é uma infalibilidade microscópica de cada detalhe, mas um único ponto firme: ou há, em algum lugar, uma garantia divina objetiva sobre o cânon – mediada por uma autoridade que Cristo instituiu – ou não há. Se não há, falar em “fé” no conjunto determinado de livros é, no mínimo, impróprio. Se há, então já se admite, ainda que implicitamente, uma instância que fala com autoridade infalível sobre o cânon.
3. O argumento em forma simples
Agora que já combinamos o vocabulário básico, podemos colocar o argumento na mesa de maneira direta. São apenas três passos ligados logicamente. Se você aceitar as duas primeiras afirmações, a conclusão vem sozinha. Se você quiser rejeitar a conclusão, terá de mostrar onde exatamente nega as premissas.
3.1. Apresentação do argumento
Vamos retomar o que queremos demonstrar: Se o protestante não pode afirmar que conhece infalivelmente o seu cânon bíblico, então ele não pode, de modo coerente, tratar a coleção concreta de livros que ele chama de Bíblia como sua única regra infalível de fé.
Esse raciocínio se apoia em duas premissas principais e uma conclusão.
Primeira premissa:
P1. Para que uma coleção concreta de livros, como os 66 livros da Bíblia protestante, possa funcionar como única regra infalível de fé, é necessário que os crentes possam saber com certeza infalível quais livros pertencem a essa coleção. Em outras palavras, é preciso que o cânon seja infalivelmente conhecido.
Traduzindo em termos bem simples: se você diz que um conjunto de livros é a sua única regra infalível, então não basta que esses livros sejam inspirados em si mesmos; você precisa saber, sem possibilidade de erro, quais são esses livros. Se você estiver em dúvida sobre a lista, sua regra de fé, na prática, não é infalível para você.
Segunda premissa:
P2. O protestante nega que exista, na terra, qualquer instância visível, pública e dotada de autoridade infalível para dizer, de modo definitivo, quais livros pertencem ao cânon bíblico. Por isso, dentro da sua própria posição, ele não pode afirmar que conhece infalivelmente qual é o verdadeiro cânon.
Em termos mais diretos: o protestante rejeita a ideia de que exista uma Igreja ou alguma autoridade humana assistida infalivelmente por Deus para definir a lista de livros inspirados. Logo, tudo o que ele tem, em relação ao cânon, é um juízo humano falível, uma conclusão que pode estar certa, mas também pode estar errada. Não há, no seu sistema, um fundamento que garanta infalivelmente a lista.
Conclusão
C. Logo, o protestante não pode, de modo coerente, tratar a coleção concreta de livros que ele possui, os seus 66 livros, como sua única regra infalível de fé.
Ou seja: se ele não tem como saber infalivelmente qual é a lista de livros, ele pode continuar dizendo que a Bíblia é muito importante, que é a norma principal, que tem altíssima autoridade. Mas não pode, sem se contradizer, dizer que essa coleção concreta que ele tem nas mãos é para ele sua única regra infalível de fé no sentido forte da palavra.
3.2. Reforço da ideia central: o ponto não é se a Bíblia é Palavra de Deus, mas como o protestante sabe qual é a Bíblia
É aqui que muitos se confundem ou tentam desviar a conversa. Quando um católico levanta o problema do cânon, o protestante costuma responder com algo como: “Mas a Bíblia é Palavra de Deus, e isso é suficiente”, ou “eu creio que a Escritura é inspirada e infalível, e pronto”. Só que isso não toca o ponto em discussão.
O problema é: como você sabe quais são esses livros, e quais não são? Como você sabe que 2 Pedro é inspirada e a 1 Carta de Clemente não é? Como você sabe que o conjunto que você recebeu é completo, que não falta nada e não sobra nada? E, no caso específico do protestante, com que tipo de certeza ele pode responder a isso?
Veja que, se você confia que Deus falou por escrito, mas não sabe com clareza e certeza quais livros fazem parte dessa palavra escrita, então a sua relação concreta com a Escritura fica comprometida. Você não sabe se está diante da Palavra de Deus em sua extensão correta, ou se está lendo uma coleção mutilada ou adulterada.
É exatamente este o ponto. Dizer que “a Escritura é infalível em si” é uma coisa. Dizer que “esta coleção específica de livros que eu tenho aqui é infalível, e eu sei disso com certeza” é outra coisa, bem mais forte. E é essa segunda afirmação que a posição protestante precisa sustentar.
4. Por que uma regra infalível exige um cânon conhecido com certeza infalível (defesa de P1)
A primeira premissa dizia, em resumo, o seguinte: se alguém quer que uma determinada coleção de livros funcione como sua única regra infalível de fé, essa pessoa precisa saber com certeza infalível quais livros pertencem a essa coleção. Caso contrário, a própria ideia de “regra infalível” fica esvaziada na prática.
4.1. O que é uma “regra” na prática: exemplos concretos
Antes de falar de Bíblia, pegue a palavra “regra” na vida concreta.
No direito, o que é uma regra? É uma norma que diz o que é permitido, proibido ou obrigatório. O cidadão precisa saber qual lei está em vigor para poder ajustar sua conduta. Imagine um código penal que o cidadão nunca viu, cujo conteúdo ele não conhece, ou conhece apenas por ouvir dizer. Em tese, o código pode ser perfeito. Mas, para o cidadão, essa “regra” é quase inútil. Se ele não sabe qual é a lei, não consegue orientar sua conduta por ela.
Na medicina, pense em um protocolo clínico. Um protocolo é uma sequência de orientações sobre como diagnosticar e tratar uma doença. Se um hospital diz que segue “o melhor protocolo possível”, mas os médicos não sabem qual é exatamente esse protocolo, ou têm apenas uma ideia vaga, a regra não está realmente operando. Eles vão agir com base em suposições, improvisos, experiência pessoal. O protocolo pode ser excelente no papel, mas não guia de fato a prática.
Na vida cotidiana, o mesmo se aplica. Se você diz que segue uma dieta rigorosa, mas não sabe com clareza quais alimentos são permitidos, em que quantidades, em quais horários, sua “regra” de dieta é apenas nominal. Você pode repetir que “tem uma dieta”, mas, sem saber o conteúdo exato dela, na prática você vai comer segundo seus impulsos e suas estimativas.
O ponto comum em todos esses exemplos é simples: uma regra só funciona como uma única regra em determinada área se for conhecida com suficiente clareza por quem deve obedecer. Quando o conteúdo da norma é incerto, a normatividade dela enfraquece. Ela continua existindo, pode até ser perfeita em teoria, mas não guia de fato o comportamento do sujeito.
Guarde isso: regra, na prática, implica três coisas mínimas:
- Ela existe de fato.
- Ela tem um conteúdo determinado.
- Ela é conhecida, com suficiente clareza, por quem precisa segui-la.
Se você remove o terceiro ponto, o discurso sobre “regra” vira teoria vazia.
4.2. Se você não sabe exatamente qual é a norma, a norma não funciona plenamente como norma para você
Agora, aplique isso de modo mais técnico. Quando falamos de uma regra, falamos sempre de dois polos: a norma em si e o sujeito que se orienta por ela. O que nos interessa aqui é a relação entre esses dois polos.
Se o sujeito não sabe qual é o conteúdo exato da regra, acontecem algumas coisas óbvias:
- Ele não pode ter certeza de que está realmente obedecendo à regra.
- Ele não pode ter certeza de que não está violando algum aspecto da regra que desconhece.
- Ele não pode invocar essa regra como base absolutamente segura para justificar suas ações, porque sempre resta a possibilidade de que haja algo na regra que ele não viu ou não considerou.
Perceba: não basta que a regra exista; ela precisa ser identificável. Se eu digo “existe uma lei perfeita em algum lugar do universo”, isso não me resolve nada enquanto cidadão. Para que aquela lei funcione como norma para mim, eu preciso saber qual é, preciso ter acesso a ela, e preciso conseguir distingui-la de outras normas que não têm o mesmo valor.
E aqui entra um detalhe importante: quanto mais forte for a pretensão da norma, mais exigente é o grau de certeza necessário. Não é a mesma coisa confiar numa sugestão, numa opinião médica provável ou numa norma que você chama de “infalível”.
Se uma recomendação é apenas provável, você pode admitir margens de erro: “é o melhor que temos até agora”. Mas, se você afirma que certa norma é infalível, isto é, que não pode conter erro, então você está elevando o nível de exigência. Não é mais aceitável dizer “talvez seja isso, talvez não”, se você está tratando aquilo como padrão absoluto.
Aplicando isso ao nosso tema, a lógica é direta:
- Se a Bíblia, enquanto coleção concreta de livros, é chamada de “única regra infalível de fé”, então ela ocupa o lugar de norma suprema e absolutamente segura.
- Sendo suprema e infalível, não basta que exista “em algum lugar” uma coleção perfeita de livros inspirados; é preciso que o crente saiba qual é essa coleção.
- Se o crente não sabe com certeza quais livros compõem essa coleção, a norma pode ser perfeita em si, mas não funciona plenamente como norma infalível para ele.
Você pode tentar fugir, mas não tem escapatória: ou você assume que sabe com certeza qual é a norma, ou você admite que sua relação com ela é apenas provável, e que, portanto, toda a sua construção de fé repousa em algo cuja extensão não é absolutamente confiável.
4.3. Diferença entre uma norma perfeita “em si” e uma norma que pode ser usada com segurança
Já vimos, na seção 2.4, que uma coisa é a Escritura em si, outra é o modo como eu a conheço. A mesma distinção vale aqui.
Uma norma pode ser perfeita em si mesma, sem erro nem contradição. Isso, para a fé cristã, vale para a Palavra de Deus: tudo o que Deus de fato inspirou é, em si, infalível.
Mas, para mim que preciso seguir essa norma, isso não basta. Eu preciso saber, com segurança suficiente, qual é o conteúdo dessa norma. Se eu estiver enganado quanto à extensão da regra, posso tanto impor obrigações que Deus não impôs, quanto ignorar mandamentos que Ele de fato deu.
Em termos simples: entre a perfeição da norma em si e o uso seguro que faço dela existe uma ponte, que é o conhecimento. Se essa ponte é frágil, a perfeição da norma não me ajuda muito na prática. É exatamente isso que está em jogo quando se reivindica uma “regra infalível de fé”. Não basta que ela seja infalível em tese; é preciso que seu conteúdo seja suficientemente identificado para que eu possa aderir a ele com a mesma fé com que creio na sua infalibilidade.
4.4. Aplicando ao caso da Bíblia
O protestante afirma que a Bíblia é a sua única regra infalível de fé. Trata-se de uma reivindicação máxima. Não é apenas “regra importante”, nem “regra principal”, mas “única regra infalível”. Ou seja, não há outra norma ao lado dela que possua o mesmo grau de segurança.
O problema é o seguinte: essa Bíblia concreta, de 66 livros, só funciona como “regra infalível” se o protestante puder saber, com certeza adequada ao termo “infalível”, que exatamente esses 66 livros, e não outros, constituem a Palavra de Deus escrita.
4.4.1. Se não sei infalivelmente quais livros são Palavra de Deus, minha regra de fé fica “em aberto”
Tome o exemplo de um medicamento perfeito. Se você sabe que existe um remédio infalível, mas não sabe qual é o comprimido correto, sua segurança é teórica, não prática. Você pode repetir mil vezes que “há um remédio perfeito”, mas, se você não consegue apontar com certeza qual é, a sua vida não está de fato apoiada nele.
No caso do cânon, a situação é ainda mais grave, porque o protestante constrói toda a sua teologia sobre esse conjunto de livros. Se ele não sabe infalivelmente quais livros são Palavra de Deus, isso significa que:
- pode haver livros inspirados que ele não está usando;
- pode haver livros não inspirados que ele está tratando como se fossem Palavra de Deus;
- pode haver textos cuja autoridade ele exagera ou minimiza pela simples incerteza sobre o status deles.
Tudo isso significa que a “regra de fé” dele está aberta, não fechada. Não é uma medida totalmente determinada. É um conjunto admitido com graus variados de probabilidade, não com certeza infalível.
Alguém pode tentar aliviar o problema dizendo que “Deus é misericordioso” ou que “Ele não condenaria ninguém por causa de um erro de canon”. Mas isso não resolve a questão em discussão. Aqui não estamos medindo a misericórdia de Deus, mas a coerência da tese protestante sobre sua regra de fé.
Se o próprio fundamento normativo da fé protestante é apenas provável, se há um “talvez” pairando sobre quais livros fazem parte da Palavra de Deus, então tudo o que se constrói em cima disso herda essa incerteza.
4.4.2. A contradição de chamar isso de “única regra infalível”
Agora você precisa encarar a contradição de frente.
De um lado, o protestante afirma:
- “A Bíblia, como eu a tenho, é a minha única regra infalível de fé.”
De outro lado, pela própria negação de qualquer autoridade visível infalível para definir o cânon, ele é obrigado a admitir:
- “A lista exata dos livros que compõem essa Bíblia eu só posso conhecer de modo falível. Posso estar certo, mas também posso estar errado.”
Junte as duas coisas e veja o absurdo:
- A sua única regra infalível está baseada em uma lista de livros cuja relação ele não conhece infalivelmente.
- Ou seja, sua regra infalível repousa, na prática, sobre um critério falível.
- O que é apresentado como “base absolutíssima” está, na verdade, preso a uma incerteza inicial que contamina o conjunto.
Se você quer usar a palavra “infalível” com honestidade, isso é inadmissível. Uma regra infalível de fé exige necessariamente um conteúdo identificado com segurança correspondente. Não faz sentido dizer: “Minha norma é infalível, mas eu não sei, com certeza, qual é o conteúdo integral dessa norma”.
Isso é uma contradição clara. É como declarar: “Tenho um mapa perfeito, impossível de falhar, mas não sei se o mapa que está na minha mão é esse mapa perfeito ou uma cópia alterada.” Você pode ter fé, esperança, boas intenções. Mas não pode dizer que, na prática, está guiando sua vida por um mapa cuja identidade você não conhece com certeza.
4.5. Não se trata de perfeccionismo, mas de coerência com a própria ideia de “regra infalível”
Um protestante pode reagir dizendo: “Tudo bem, eu não conheço o cânon com certeza infalível. Também não conheço infalivelmente minha própria santidade, nem minha interpretação da Bíblia. Deus não exige certeza matemática para salvar alguém. Basta uma fé sincera”.
Mas essa resposta erra o alvo. Aqui não estamos discutindo quais são as condições mínimas para Deus salvar alguém em situação de ignorância sincera. A questão é outra: faz sentido, conceitualmente, chamar de “única regra infalível de fé” um conjunto de livros cuja extensão é reconhecida apenas com probabilidade humana?
Não é perfeccionismo exigir que uma “regra infalível de fé” tenha, em algum ponto, uma garantia divina proporcionada a esse título. Perfeccionismo seria exigir certeza absoluta de cada interpretação, de cada detalhe histórico. Mas não essa não é a exigência. O que está em jogo é o seguinte:
Se o protestante pretende tratar aquele conjunto concreto de 66 livros como objeto de fé divina, então precisa haver um ato de Deus, reconhecível na história da Igreja, pelo qual Ele se compromete com essa lista. Sem isso, o que ele tem não é fé propriamente dita no cânon, mas confiança piedosa num processo histórico que ele mesmo admite ser falível de ponta a ponta.
Portanto, a crítica não é que o protestante não atinge um ideal impossível de certeza subjetiva. A crítica é que seu sistema não oferece nenhum ponto objetivo em que Deus garanta o seu cânon como objeto de fé. E, sem isso, a expressão “regra infalível de fé” aplicada a um conjunto de livros apenas provável vira retórica vazia.
4.6 Por que um processo apenas “confiável” não basta
Um protestante mais treinado em filosofia pode reagir a P1 de outro modo. Ele não vai dizer que tem uma certeza interior que é infalível, mas simplesmente que não precisa disso:
“Para que a Bíblia seja minha regra infalível de fé, não é necessário que eu tenha um conhecimento infalível e refletido do cânon. Basta que Deus, em sua providência, tenha usado um processo confiável para me entregar o cânon correto. Mesmo que eu não consiga justificar isso internamente de forma infalível, o processo em si pode ser objetivamente seguro”[7].
Traduzindo: ele tenta aplicar ao cânon um tipo de raciocínio externalista. Meu conhecimento do cânon seria verdadeiro e, em certo sentido, “garantido” por Deus, ainda que eu não tenha uma consciência clara do porquê.
Esse discurso até faz algum sentido se estivéssemos falando de uma crença comum, como “minha memória é, em geral, confiável” ou “meus sentidos não me enganam sistematicamente”. O problema é que aqui não estamos falando de qualquer crença. Estamos falando do objeto formal da fé, ou seja, daquilo que é proposto como revelado por Deus e recebido com fé divina.
Para que uma crença seja objeto de fé divina, não basta que ela seja verdadeira “de fato” por trás das cortinas. É necessário que haja, ao menos em princípio, um fundamento revelado que autorize o crente a aderir àquela proposição “porque Deus falou”, e não apenas porque “parece que Deus deve ter feito assim”.
É exatamente esse fundamento que a tese protestante não consegue dar. Ela pula do “provavelmente foi assim que Deus conduziu as coisas” para “sei, com fé, que é este o cânon”, sem apresentar nenhum ponto em que Deus tenha efetivamente proposto esse cânon como revelado.
Você pode até acabar com o cânon correto por uma mistura de tradição e providência, mas isso é outra coisa. Acertar a lista de livros não é o mesmo que poder dizer: “creio nesta lista porque Deus a propôs como revelada”. Sem esse passo, a sua relação com o cânon continua no nível de probabilidade piedosa, não de fé divina — isto é, permanece epistemicamente indistinta de qualquer outra reconstrução histórica bem argumentada.
5. Por que, na lógica protestante, o cânon não pode ser conhecido infalivelmente (defesa de P2)
Agora precisamos mostrar por que a segunda premissa é verdadeira. Recorde a formulação:
P2. O protestante nega que exista, na terra, qualquer instância visível, pública e dotada de autoridade infalível para dizer, de modo definitivo, quais livros pertencem ao cânon bíblico. Por isso, dentro da sua própria posição, ele não pode afirmar que conhece infalivelmente qual é o verdadeiro cânon.
Você precisa enxergar isto com clareza: não é um ataque externo, é uma consequência interna.
5.1. A negação de uma autoridade visível, pública e infalível na terra
O protestantismo clássico nasce com um gesto de ruptura: nega que exista, na terra, uma autoridade visível (fora da Bíblia) que possa falar com caráter definitivo e infalível em matéria de fé[8]. Em termos católicos, isso significa recusar o Magistério da Igreja, especialmente na forma de concílios ecumênicos e do Papa quando define solenemente uma doutrina.
O discurso é conhecido. A Igreja é considerada falível, sujeita a erro. Concílios podem errar. Papas podem errar. Pais da Igreja podem errar. A única instância que não pode errar é a Palavra de Deus escrita. Daí o famoso princípio: somente a Escritura é a única regra infalível de fé[9].
Isso parece muito bonito enquanto fica no plano abstrato. A Bíblia de um lado, tudo o mais reduzido a auxiliares falíveis. Só que essa negação do magistério infalível não é neutra. Ela tem consequências.
Ao negar uma autoridade visível, pública, com promessa divina de assistência especial para guardar a fé, o protestante se coloca praticamente sozinho diante da Escritura. Ele se cerca, no máximo, de teólogos, confissões de fé, sínodos e denominações; quando muito, de algo da tradição e dos Pais da Igreja. Mas tudo isso é, por definição, falível. Em última instância, nenhum desses órgãos pode dizer: esta é, com certeza infalível, a lista dos livros inspirados.
Logo, desde o ponto de partida, já temos um dado fixo: para o protestante, na terra não há nenhum órgão com autoridade divina para dizer, de forma definitiva, qual é o cânon. Não há tribunal último, não há instância de recurso final. O máximo que há é consenso mais ou menos amplo, tradição humana mais ou menos respeitada, mas tudo isso muito abaixo do nível de infalibilidade.
Grave isto: se nenhuma instância visível pode falar infalivelmente sobre o cânon, qualquer afirmação sobre o cânon será, dentro da visão protestante, fruto de juízos falíveis.
5.2. O processo histórico do cânon
A essa altura, alguns tentam reagir com uma espécie de romantização: como se o cânon tivesse sido algo óbvio desde sempre, como se o povo de Deus simplesmente tivesse “reconhecido” de maneira imediata e uniforme todos os livros desde o começo. Isso não é honesto com a história.
Houve livros recebidos sem grande resistência, como os quatro Evangelhos e a maior parte das cartas paulinas; houve livros contestados durante bastante tempo, como Hebreus, Apocalipse, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas, além dos deuterocanônicos do Antigo Testamento; houve escritos usados liturgicamente e depois postos de lado, como a Didaqué, o Pastor de Hermas e a Primeira Carta de Clemente. Em vários casos, cartas e livros foram discutidos e debatidos durante séculos[10].
Isso basta para destruir a imagem ingênua de um cânon reconhecido imediatamente, de forma automática, sem qualquer discussão. O reconhecimento de quais livros são inspirados e normativos exigiu tempo, reflexão, controvérsia, critérios e discernimento.
Some a isso o que já vimos: a própria Escritura não contém um índice inspirado dos seus livros. Em algum ponto, inevitavelmente, é preciso sair do texto bíblico e recorrer a fatos históricos, testemunhos, critérios e decisões eclesiais.
Dentro dessa realidade, levanta-se a pergunta: quem, afinal, decide? Em que momento a questão é resolvida? Com que autoridade se põe um ponto final na disputa, para que os fiéis possam saber, com segurança, o conteúdo do cânon?
5.3. A questão epistemológica
Se você usa apenas meios falíveis, você não chega a uma conclusão infalível.
5.3.1. Premissas falíveis + juízos falíveis não produzem conclusão infalível
Pense em termos simples. Seu conhecimento sobre o cânon, dentro da lógica protestante, depende de quê?
- Depende de sua leitura da história: quais comunidades usaram quais livros, em que período, com qual autoridade.
- Depende da avaliação de testemunhos de antigos escritores cristãos, que podem interpretar livros, elogiar, duvidar, questionar.
- Depende do exame de supostas “marcas de inspiração” no texto: profundidade doutrinal, coerência com o restante da fé cristã, uso litúrgico, etc.
- Depende de concílios e decisões eclesiásticas, que, na ótica protestante, são sempre falíveis.
Cada passo é, por definição protestante, falível. Nem a história é lida de maneira infalível, nem os Pais da Igreja são infalíveis, nem as igrejas locais são infalíveis, nem os sínodos são infalíveis. Tudo é passível de revisão.
Como é que, a partir dessa cadeia de elementos falíveis, você pretende obter uma conclusão infalível do tipo: “estes livros são, com certeza absoluta, o conjunto exato da Palavra de Deus escrita”?
Isso é logicamente impossível. Uma conclusão só pode ser infalível se, em algum ponto da cadeia, houver um princípio ou uma instância com garantia de não errar naquele juízo. Caso contrário, tudo o que você obtém é, na melhor das hipóteses, uma certeza moral alta, ou uma forte probabilidade, mas nunca infalibilidade.
Se todos os instrumentos são falíveis, a conclusão também é falível. Se a conclusão é infalível, isso só pode ser porque, em algum ponto, há um instrumento mais do que humano, isto é, uma instância com promessa divina de não errar naquele juízo.
5.3.2. Sem órgão infalível, não há como chegar a certeza infalível de lista
Aqui está o núcleo da segunda parte do argumento. Se você nega a existência de um órgão infalível na terra para resolver a questão do cânon, você está, de fato, renunciando à possibilidade de conhecer infalivelmente a lista de livros inspirados.
Você pode até conseguir um alto grau de probabilidade. Pode reunir estudos históricos, comparar manuscritos, analisar o uso litúrgico, ouvir o testemunho de séculos. Em algum momento, alguém faz um juízo: “com base nisso, considero estes livros inspirados”. Tudo isso aumenta a confiança. Mas nada disso, por si só, produz certeza infalível.
Se não existe nenhum ponto da cadeia em que Deus se comprometa a guardar um juízo de forma infalível, então não existe, na terra, um ato humano sobre o cânon que possa ser chamado, honestamente, de infalível.
Por isso, quando o protestante diz “eu sei que estes 66 livros são, infalivelmente, a Palavra de Deus escrita”, ele está afirmando mais do que sua própria teologia permite. Seus princípios só lhe dão direito de dizer “segundo os melhores indícios, creio que estes 66 livros são a Bíblia”. A palavra correta seria “provavelmente” ou, no máximo, “moralmente certo”, não “infalivelmente conhecido”.
Se ele quiser manter a linguagem de infalibilidade, terá de introduzir algo que contradiz o próprio protestantismo: uma instância visível, uma Igreja, ou algum tipo de órgão que, assistido por Deus, tenha autoridade para definir o cânon de forma definitiva, de modo que se possa dizer: aqui, Deus não permitiu erro.
Sem isso, tudo o que resta é uma sucessão de juízos humanos falíveis tentando apontar para um conjunto de livros que, em si, pode ser infalível, mas cuja extensão concreta permanece, para nós, sem garantia infalível.
5.4. Conclusão parcial: na própria lógica protestante, o cânon só pode ser conhecido como provável, não como infalível
Agora, reúna as peças.
- O protestante nega qualquer autoridade visível, pública e infalível na terra para definir o cânon.
- A história mostra que o cânon não veio pronto em forma de lista clara, e que houve controvérsias reais sobre diversos livros.
- A própria Escritura não traz, em seu interior, um índice completo e inspirado de todos os livros inspirados.
- Portanto, o conhecimento do cânon, para o protestante, depende de uma combinação de fatores falíveis: estudos históricos, testemunhos antigos, uso litúrgico, critérios teológicos, decisões de igrejas e sínodos falíveis.
- Premissas falíveis, combinadas com juízos falíveis, não podem produzir, sem milagre, uma conclusão infalível.
- Logo, dentro da lógica protestante, o máximo que se pode ter é um cânon altamente provável, nunca um cânon infalivelmente conhecido.
Se o protestante insiste em dizer que seu cânon é conhecido infalivelmente, ele está, na prática, reivindicando para si alguma forma de assistência divina especial que a sua própria teologia nega à Igreja.
Se, por outro lado, ele for intelectualmente honesto e admitir que o seu cânon é apenas conhecido como provável, então precisa abandonar a pretensão de ter uma “única regra infalível de fé” concretamente determinada em 66 livros.
Você percebe o ponto onde isso nos deixa: o sola Scriptura, na forma como é proclamado, promete mais do que a lógica do próprio sistema pode entregar. Ela promete a posse de uma regra infalível, mas, ao recusar um órgão infalível para definir o cânon, só consegue oferecer um conjunto provável.
E a fé cristã, se for levada a sério, não pode depender, em sua base, de um “provavelmente”.
6. As principais tentativas protestantes de escapar (e por que fracassam)
Depois que você mostra o problema do cânon com um mínimo de clareza, protestante inteligente não fica em silêncio. Ele reage. E normalmente reage com alguns argumentos padrão, que aparecem em livros, aulas, palestras e debates.
Nós vamos analisar as principais tentativas de “escapar” do problema. Você vai perceber que, em todas elas, há um padrão: começam com alguma frase aparentemente profunda, mas, quando examinadas com rigor, desmoronam. Em geral, ou caem em subjetivismo, ou confessam abertamente que o cânon é apenas provável, não infalivelmente conhecido.
6.1. “A Bíblia se autentica sozinha”
6.1.1. O que essa tese pretende dizer
Uma das respostas mais comuns é a ideia de que a Bíblia teria uma espécie de “autoautenticação”. Às vezes a frase vem assim: “A Escritura traz em si mesma as marcas de ser Palavra de Deus” ou “A Bíblia autentica a si mesma aos olhos do crente”[11].
O que se quer sugerir é o seguinte: não precisamos de uma autoridade externa dizendo quais livros são canônicos; basta olhar para a própria Escritura. Ela teria qualidades intrínsecas que a distinguem de qualquer outro texto: sublimidade doutrinal, unidade interna, poder espiritual, beleza moral, profundidade, etc.
A conclusão implícita é: se você estiver disposto, se for sincero, se tiver o coração bem disposto, você “reconhece” esses livros como inspirados. Seria algo análogo a reconhecer a luz do sol: ela não precisa de um certificado. Ela se mostra.
Isso soa bonito. Fala à intuição. Mas não responde ao problema real.
6.1.2. O problema do critério: quais marcas eu uso para reconhecer um livro inspirado?
Vamos supor, por um momento, que Deus tenha dado mesmo à Escritura marcas internas que a distinguem de qualquer outro escrito. Ainda assim, surge a pergunta: quais são, de forma concreta, essas marcas?
Você precisa de um critério claro, não de uma sensação vaga. Senão, cada um decide o que lhe parece “divino” segundo o próprio gosto.
Perguntas que imediatamente aparecem:
- O que exatamente eu devo procurar em um livro para dizer que ele é inspirado?
- Unidade doutrinal? Mas muitos livros edificantes, escritos por santos, têm grande unidade e profundidade.
- Beleza literária? Então o livro mais bem escrito seria o mais inspirado?
- Poder de tocar o coração? Então qualquer texto que provoque impacto espiritual teria o mesmo status?
- Coerência com o resto da fé cristã? Mas para saber “o resto da fé cristã” eu já pressupus um conjunto de doutrina, que, em grande parte, vem justamente da Escritura. Isso vira círculo vicioso.
Sem um critério objetivo, definido com clareza, “marcas de inspiração” viram apenas uma forma sofisticada de dizer “o que me parece ser de Deus”. Isso não é suficiente para fundamentar uma regra infalível de fé para toda uma comunidade cristã.
Buscar os critérios nos próprios livros também seria ineficiente, já que eles mesmos são o objeto da discussão.
Além disso, mesmo que você defina alguns critérios, quem garante que você os aplicou corretamente? Que você não errou na avaliação? De novo, cai no problema anterior: premissas falíveis, juízo falível, conclusão falível.
6.1.3. Crentes sinceros que não chegam às mesmas conclusões: o critério não é público nem objetivo
A prova de que essa tese falha está na realidade histórica e na situação atual. Houve (e há) cristãos sinceros, piedosos, oração, estudo, amor a Deus, que:
- chegam a cânones diferentes do Antigo Testamento;
- têm dúvidas sobre determinados livros;
- aceitam ou rejeitam certos textos com base em critérios supostamente “bíblicos” ou “espirituais”.
Se a Bíblia se autenticasse “sozinha” de modo inequívoco, como a luz do sol, por que cristãos sérios discordam sobre o cânon? Por que alguns, na história, duvidaram de Hebreus, Apocalipse, Tiago, enquanto outros os defendiam?
O fato de haver divergência entre pessoas sinceras mostra que essa “autoautenticação” não funciona como critério público, objetivo, normativo. No máximo, funciona como uma experiência subjetiva: “este livro fala ao meu coração de modo especial”. Isso pode ser espiritualmente valioso, mas não define cânon com certeza infalível.
Em resumo: a ideia de que “a Bíblia se autentica sozinha” não elimina a necessidade de um juízo externo e autorizado. Você continua precisando de alguém que diga, com autoridade: este livro realmente possui as marcas da inspiração, aquele não. Sem isso, a autoautenticação vira apenas uma forma elegante de espiritualizar a preferência pessoal ou o consenso humano.
6.2. “O Espírito Santo mostra ao crente quais livros são inspirados”
6.2.1. A sedução da resposta “espiritual”
Outra reação comum é apelar diretamente ao Espírito Santo: “É o Espírito quem testemunha aos nossos corações quais livros são inspirados. Não precisamos de um magistério infalível, porque o próprio Deus guia a sua Igreja, internamente, pelo Espírito”[12].
É uma resposta atraente, porque ninguém quer parecer que está diminuindo a ação do Espírito Santo. O católico crê profundamente que o Espírito guia a Igreja. O problema não é a invocação do Espírito. O problema é o uso que o protestante faz dessa invocação.
Se você diz que o Espírito Santo garante que a Igreja reconheça o cânon certo, infalivelmente, você está, na prática, atribuindo à Igreja, enquanto corpo visível na história, uma assistência especial de Deus num juízo concreto: o juízo sobre o cânon. Isso é, essencialmente, o que o catolicismo chama de Magistério assistido pelo Espírito. O protestante, porém, não quer admitir isso. Quer o resultado, sem aceitar a estrutura.
Então, para escapar dessa conclusão, ele costuma mudar o foco: em vez de dizer que o Espírito garante um juízo infalível da Igreja como corpo visível, ele diz que o Espírito testemunha diretamente ao coração de cada crente ou da “igreja” num sentido mais difuso.
6.2.2. Se o Espírito fala a todos, por que não há consenso e unidade?
Se a tese é que o Espírito fala interiormente aos crentes para que eles reconheçam o cânon, duas coisas deveriam acontecer, se isso fosse critério infalível:
- Haveria um consenso real e universal entre os crentes verdadeiros sobre o cânon.
- Divergências sérias e persistentes sobre o cânon seriam sinal claro de que alguém está resistindo ao Espírito ou ouvindo outra voz.
O que vemos é o contrário. Ao longo da história, houve dúvidas reais sobre vários livros do Novo Testamento. Até hoje há desacordos sobre o cânon do Antigo Testamento entre católicos, ortodoxos e protestantes, todos invocando o mesmo Espírito. Dentro do próprio mundo protestante, há grupos que questionam livros específicos e, claro, alegam estar sendo guiados pelo Espírito.
O reformado mais sofisticado tenta fugir do puro subjetivismo apelando à “Igreja invisível”: seria o corpo dos verdadeiros crentes, ao longo da história, que, guiado pelo Espírito, teria recebido o cânon correto. Isso só desloca o problema para outro lugar.
A “Igreja invisível” não se reúne em concílio, não publica lista, não excomunga quem rejeita determinados livros. Quem decide, na prática, quais comunidades e decisões expressam a voz dessa Igreja invisível são órgãos visíveis: sínodos, teólogos, tradições denominacionais. E todos eles, para o próprio protestante, são falíveis.
No fim das contas, apelar ao Espírito sem um critério visível e normativo não resolve nada. Apenas mascara, com linguagem espiritual, um fato simples: o reconhecimento do cânon, no protestantismo, continua sendo uma sequência de juízos humanos revisáveis.
6.3. “Temos um cânon falível de livros infalíveis”
6.3.1. O slogan explicado em linguagem simples
Alguns protestantes mais honestos epistemologicamente admitem que não podem reivindicar certeza infalível sobre o cânon. Então apelam para uma fórmula como esta: “Temos um cânon falível de livros infalíveis”[13].
O que isso quer dizer, em termos claros?
- Os livros que estão na Bíblia são, em si mesmos, infalíveis, porque são Palavra de Deus inspirada.
- Porém, a lista que temos, o cânon como tal, pode estar errado. Podemos ter incluído algum livro não inspirado, ou deixado de fora algum livro inspirado.
- Ainda assim, continuamos afirmando que os livros que realmente são Palavra de Deus são infalíveis em si.
É uma tentativa de salvar alguma coisa: reconhece a fraqueza do cânon, mas mantém a infalibilidade dos livros que, em teoria, Deus inspirou.
6.3.2. A consequência real: a regra de fé passa a ser apenas provável
Só que, se você aceitar essa fórmula, precisa ter coragem de aceitar a consequência. Se o cânon é falível, isto é, se a lista pode estar errada, então:
- você não sabe com certeza se a Bíblia que tem na mão é a coleção exata de livros inspirados;
- você não pode ter certeza de que não está deixando de fora alguma revelação escrita que Deus quis para a sua salvação;
- você não pode ter certeza de que não está incluindo como Palavra de Deus algo que é apenas palavra humana.
Resultado: a sua regra de fé deixa de ser algo absolutamente seguro em sua extensão como objeto de fé. O que ele tem é, no máximo, uma forte certeza moral de que seus 66 livros são o conjunto correto – o que é bem diferente de poder dizer que Deus mesmo garantiu essa lista, de modo que a adesão a ela seja um ato de fé na revelação, e não apenas um ato de confiança em reconstruções históricas.
A fórmula “cânon falível de livros infalíveis” pode parecer sofisticada, mas significa, traduzida, o seguinte: “cremos que Deus inspirou certos livros infalíveis, mas não sabemos com certeza de fé quais são eles, nem se os temos todos”. Chamar isso de “regra infalível de fé” é distorcer o sentido das palavras.
6.3.3. Como isso destrói a ideia de “única regra infalível de fé”
Aqui a contradição volta em cheio. O protestante quer manter duas afirmações:
- A Bíblia é a única regra infalível de fé.
- O cânon da Bíblia é falível.
Mais uma vez, junte as duas e veja o absurdo:
- Sua única regra infalível de fé é uma coleção de livros cuja extensão ele admite não conhecer com certeza infalível.
- Logo, na prática, sua única regra infalível se apoia numa lista que pode estar errada.
- Isso não é “regra infalível”. Isso é regra provável com fronteiras incertas.
Se você assume que o cânon é falível, a única formulação coerente seria algo do tipo: “A Palavra de Deus escrita, enquanto tal, é infalível. Mas eu, por não saber infalivelmente qual é a extensão dessa Palavra, não posso dizer que possuo, concretamente, uma regra infalível de fé”.
Só que, se ele disser isso com todas as letras, sola Scriptura desaba como fundamento. O protestante perde justamente aquilo que mais queria preservar: um princípio firme, sólido, ao qual tudo o mais se submete.
6.4. “O consenso da Igreja antiga resolve”
6.4.1. O apelo ao consenso patrístico
Outra linha de fuga é apelar ao que chamam de “consenso da Igreja primitiva” ou “consenso dos Pais”. A ideia geral é: não precisamos de um magistério infalível; basta ver o que a Igreja antiga usava e reconhecia como Escritura. O consenso histórico resolveria o problema do cânon [14].
À primeira vista, parece uma solução equilibrada: nem subjetivismo individual puro, nem magistério infalível. Algo como: “vamos seguir o que todos os cristãos sérios seguiam no início”.
Mas, de novo, você precisa examinar isso com um mínimo de precisão.
6.4.2. Os fatos: divergências reais sobre certos livros
A primeira dificuldade é que esse tal “consenso” não é tão simples assim. Existem fatos históricos incômodos:
- O primeiro deles é que não há consenso entre as igrejas apostólicas e históricas até hoje sobre o cânon bíblico. O mundo ortodoxo e as igrejas orientais usam livros diferentes nas suas bíblias [15].
- Nem todos os livros do Novo Testamento foram aceitos de modo pacífico e universal desde o início. Alguns foram discutidos e contestados [16].
- Alguns escritos que hoje não estão no cânon foram lidos e usados com grande reverência por certos autores e comunidades [17].
- No Antigo Testamento, o uso da versão grega (Septuaginta) com seus livros deuterocanônicos é uma realidade para muitos cristãos antigos, enquanto as coleções hebraicas posteriores têm outra composição [18].
Na melhor das hipóteses, você pode falar em maiorias, tendências, uso mais ou menos difundido. Mas isso está longe de ser a mesma coisa que um ato autoritativo e infalível definindo o cânon.
Mesmo que você conseguisse, de algum modo, identificar um consenso expressivo, ainda teria de responder a outra pergunta: o simples fato de muitos antigos pensarem de certa maneira transforma automaticamente essa opinião em critério normativo infalível?
Se sim, o protestante está, de fato, atribuindo à Tradição uma força muito maior do que admite em teoria. Se não, volta ao mesmo problema: opinião majoritária continua sendo opinião falível.
6.5 “Deus é soberano, Ele não deixaria a Igreja errar no cânon”
Neste ponto, um reformado mais atento costuma apelar a uma fórmula que parece piedosa e, à primeira vista, resolver o problema:
“Deus, em sua providência, guiou a Igreja de tal forma que, embora todos os meios humanos sejam falíveis, o resultado final é o cânon correto. Não precisamos de um órgão infalível. Basta confiar que Deus, soberano, conduziu a história ao desfecho certo.” [19]
A estratégia é clara: admitir que todas as etapas humanas são falíveis, mas afirmar que Deus, por trás de tudo, garantiu o acerto. A pergunta, porém, continua em pé: com que tipo de certeza o protestante pode afirmar que Deus de fato fez isso, e que o resultado histórico concreto a que ele chegou é o cânon correto?
Aqui é preciso distinguir duas coisas que, se você misturar, mata a discussão:
- O que Deus poderia ter feito em sua providência.
- O que Deus de fato revelou ter feito, de modo que isso possa ser objeto de fé.
É claro que Deus poderia, se quisesse, conduzir silenciosamente a história a um cânon perfeito, sem jamais prometer explicitamente isso a ninguém. Mas possibilidade abstrata não é motivo de fé. Fé divina não se apoia em suposições sobre o que Deus poderia ter feito, mas em palavra de Deus sobre o que Ele fez ou prometeu fazer.
A pergunta que deve-se fazer é a seguinte: onde, exatamente, Deus disse à Igreja que, apesar de não haver órgão infalível na terra, Ele garantiria, ainda assim, de maneira invisível e inverificável, que o resultado final do processo histórico do cânon seria impecável?
Em que momento, com que ato, com que promessa identificável, Ele se comprometeu com a lista protestante de 66 livros, de tal forma que o crente possa dizer: “creio com fé divina que este conjunto é o cânon”?
O protestante não tem resposta sólida para isso. Ele não aponta nenhum ato concreto de Deus, reconhecido pela Igreja, em que o Senhor tenha definido o cânon. O que ele tem é uma leitura teológica da história: olha para trás, vê que a comunidade à qual ele pertence usa 66 livros, considera isso plausível e, então, decide atribuir a isso a providência de Deus.
Só que isso é exatamente o contrário da fé.
Na fé, eu parto de uma palavra de Deus e, a partir dela, interpreto a história. Na reconstrução providencialista protestante, faz-se o inverso: parte-se de um estado de coisas histórico, supõe-se que Deus o aprovou e chama-se essa suposição de “fé na providência”.
Sem uma promessa concreta de Deus sobre o cânon, o protestante não tem mais do que uma convicção teológica pessoal de que Deus, provavelmente, guiou o processo de forma correta. Isso pode ser piedoso, pode ser sincero, mas epistemologicamente continua sendo uma opinião provável, não um motivo de fé divina.
Conclusão: apelar à “providência de Deus sobre o cânon”, sem uma autoridade instituída por Cristo para definir esse cânon, não eleva o conhecimento do protestante acima do nível de probabilidade. Só reveste de linguagem devota o mesmo problema: todo o caminho é falível, e não há nenhum ponto em que se possa dizer “aqui Deus garantiu, de modo reconhecível, a lista de livros”.
6.6 Tentativas frustradas
Se você observar com calma, verá que todas as tentativas protestantes de “escapar” convergem para o mesmo ponto: nenhuma delas fornece aquilo que a própria tese protestante exige, que é um conhecimento infalível do cânon.
- A autoautenticação cai no vago.
- O apelo ao Espírito cai no subjetivismo.
- O “cânon falível de livros infalíveis” confessa que a regra é só provável.
- O consenso da Igreja antiga concede, na prática, uma autoridade à Tradição que o sistema protestante não deveria conceder.
- A confiança na soberania de Deus para a resolução do cânon carece de fundamento revelacional para que seja objeto real de fé.
Não é preciso alongar mais. O argumento desenvolvido ao longo do texto conduz o leitor a um ponto simples.
7. Conclusão
Nós partimos de uma tese protestante bastante clara: a Bíblia, entendida como a coleção concreta de 66 livros da edição protestante, é a única regra infalível de fé. Tomamos essa tese a sério e perguntamos apenas o que ela exige para ser coerente.
O resultado foi o seguinte:
- Se essa coleção concreta de livros pretende ser, para o crente, uma regra infalível de fé, então não basta que os livros, em si, sejam inspirados; é necessário que o crente possa saber com certeza, proporcionada ao termo “infalível”, quais livros pertencem a essa coleção. Não faz sentido falar em regra infalível se a própria extensão da regra é conhecida apenas como algo provável.
- Ao mesmo tempo, o protestante, por princípio, nega a existência na terra de qualquer autoridade visível, pública e infalível que possa definir o cânon. Para ele, todo juízo eclesial é, em última análise, falível. A consequência inevitável é que o cânon, tal como ele o possui, só pode ser conhecido como fruto de um processo humano falível, no máximo altamente provável, nunca infalível.
Postas lado a lado, essas duas constatações não se conciliam. Se o cânon é apenas provável, a Bíblia, enquanto coleção concreta de livros, não pode funcionar, para o protestante, como uma única regra infalível de fé.
Ele pode continuar tratando a Escritura como norma suprema, como fonte principal, como autoridade máxima em relação a qualquer instância humana. O que ele não pode, sem distorcer as palavras, é afirmar que possui, de fato, uma regra de fé infalível, claramente determinada em um conjunto fechado de 66 livros.
A partir daqui, a questão já não é repetir slogans, mas decidir o que fazer com essa tensão.
Ou se aceita viver com uma “Bíblia” que é, no fundo, apenas provavelmente correta em sua extensão, e então se abandona, por honestidade intelectual, a linguagem de “regra infalível de fé”;
Ou se admite que a própria noção de cânon seguro aponta para uma forma de autoridade que o esquema protestante, em sua forma clássica, simplesmente não consegue justificar.
Em qualquer dos casos, o slogan “somente a Bíblia” deixa de ser uma fórmula de conforto e passa a ser um convite incômodo a reexaminar a própria base em que a fé está assentada. A pergunta permanece: de qual Bíblia se está falando, e com que tipo de certeza se afirma isso. Quem quiser ser intelectualmente honesto não pode simplesmente fingir que essa pergunta não existe.
Referências
- Confissão de Westminster, 1.4 e 1.6;
Confissão Batista de 1689, 1.1;
Confissão Belga de 1561, 4;
39 Artigos de Religião Anglicana de 1563, 6;
Fórmula de Concórdia de 1577, Declaração Sólida, Resumo Abrangente;
Confissão Batista de Londres de 1689, 1;
Robert Godfrey — O que queremos dizer com Sola Scriptura, em Sola Scriptura! The Protestant Position on the Bible, por Don Kistler;
James R. White, Scripture Alone: Exploring the Bible’s Accuracy, Authority, and Authenticity (Minneapolis: Bethany House, 2004), pp. 27–28;
Norman Geisler & Ralph E. MacKenzie — “What Think ye of Rome”, em normangeisler.com. - Confissão de Westminster 1.10 e 31.3;
Derek Thomas — “The Bible: Infallible and Inerrant (School of Theology Series: Lecture 5)”, Christian Study Library, 2014;
Burk Parsons — “Which Christ?” (em https://learn.ligonier.org/articles/which-christ, acessado em 19 nov. 2025);
International Council on Biblical Inerrancy — The Chicago Statement on Biblical Inerrancy (1978). - Católicos e protestantes concordam com esta afirmação.
Dei Verbum 11 (Vaticano II);
Confissão de Westminster, 1.4, 1.5 e 14.2;
B. B. Warfield — The Inspiration and Authority of the Bible (https://www.monergism.com/…);
Norman L. Geisler — The Jesus Quest: The Danger from Within (Grand Rapids: Baker, 1983), p. 30. - Confissão de Westminster, 1.4–5;
Confissão Batista de 1689, 1.4–5;
Observação: católicos também concordam, mas partindo do próprio cânon. - Praticamente todas as confissões de fé protestante que falam da inspiração, autoridade e infalibilidade da Escritura, listam o cânon de 66 livros. Isso significa claramente que não se está falando de uma Escritura abstrata, mas de um conjunto delimitado de livros que deve ser crido, sem acréscimos e sem falta, como sua única regra infalível de fé.
- Concílio Vaticano I — Constituição dogmática Dei Filius, cap. III (DS 3008);
Catecismo da Igreja Católica, 156;
João Paulo II — Encíclica Fides et Ratio (1998), n. 72;
Confissão de Westminster, 18.2;
Francis Turretin — Institutes of Elenctic Theology, Fourth Topic, Thirteenth Question, XIX (https://www.monergism.com/…). - James R. White — The Roman Catholic Controversy, pp. 50–51;
James Swan — “The Canon as Infallible Sacred Tradition” (https://www.aomin.org/…). - A. A. Hodge — “The Rule of Faith & Practice” (https://www.monergism.com/…);
Keith A. Mathison — “Our Only Infallible Rule” (Tabletalk Magazine, 2024);
Gavin Ortlund — What It Means to Be Protestant: The Case for an Always Reforming Church, cap. 5. - Ibid.
- Michael J. Kruger — “The Biblical Canon”, The Gospel Coalition (https://www.thegospelcoalition.org/…);Catholic Encyclopedia — “Canon of the New Testament” (https://www.newadvent.org/…);
Lee Martin McDonald expõe resumidamente as controvérsias a cerca do cânon bíblico em seu A Origem da Bíblia: Um guia para perplexos. - Michael Kruger é hoje talvez o autor mais explícito na formulação moderna da tese da “Escritura auto-autenticável”. No livro Canon Revisited ele desenvolve a ideia de que o cânon é conhecido por meio das qualidades divinas dos livros, do testemunho do Espírito e da recepção pela Igreja, mas o ponto de partida é que as Escrituras “manifestam” seu caráter divino em si mesmas;
Van den Belt faz o mapeamento histórico desta mesma ideia na tradição reformada e define claramente o caráter auto-convincente das Escrituras em seu Autopistia: The Self-Convincing Authority of Scripture (https://www.academia.edu/…). - Confissão Belga de 1561, 5; Matt Marino — “Canon and Canonicity 101” (https://www.reformedclassicalist.com/…).
- R. C. Sproul — Grace Unknown: The Heart of Reformed Theology, p. 58.
- Roger Nicole — “The Canon of the New Testament”, em The Relationship Between Scripture and Tradition in the Early Church, pp. 25–26 (https://www.academia.edu/…);
F. F. Bruce — “The Canon of the New Testament”, em The New Testament Documents: Are They Reliable?, 5ª ed., cap. 3 (https://www.bible-researcher.com/…);
Michael J. Kruger — “How Can Christians Know We Have the Right Books in the Bible?” (Text & Canon Institute). - “Biblical canon” — Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Biblical_canon).
- Lee Martin McDonald — A Origem da Bíblia: Um guia para perplexos, cap. 7.
- Ibid., cap. 5.
- Ibid., caps. 3, 4 e 5.
- Roger Nicole — “The Canon of the New Testament”, Journal of the Evangelical Theological Society 40/2 (1997), pp. 199–206 (https://etsjets.org/…);
Phillip G. Kayser et al. — Has God Indeed Said? (https://leanpub.com/…).
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