A atitude que convém a cônjuges católicos (e a seus interlocutores) em tal situação depende evidentemente do conceito cristão de matrimônio. Para o discípulo de Cristo, o casamento é um estado que ele assume por chamado de Deus, não pelo mero desejo ou pela necessidade de satisfazer à natureza; matrimônio, portanto, vem a ser tarefa, missão. Os atos da vida conjugal nesta perspectiva não são regidos pelos caprichos nem pela procura do gozo, mas pela Lei de Deus, que visa fazer desses atos o instrumento de santificação dos cônjuges e de procriação de novos cidadãos para o Reino de Deus. Destarte sacrifício e abnegação entram necessàriamente no programa de vida conjugal de um católico. Em particular, no que diz respeito à procriação, que é o fim primário do casamento, há de se fazer sentir essa exigência de heroísmo.
O Senhor Deus em sua sabedoria quis associar à função sexual ou aos atos da reprodução da espécie um certo prazer, como o associou também ao ato de comer, que visa a conservação do indivíduo. Esse deleite tem o sentido de mero estímulo para facilitar o preenchimento da função ou a consecução de determinado fim; não pode ser cobiçado como finalidade exclusiva; a reta ordem manda que o homem só consinta no prazer do ato conjugal caso aceite a possível fecundação que lhe está anexa; jamais, portanto, empregue meios artificiais para gozar sem ter que arcar com as graves responsabilidades da paternidade ou da maternidade. De resto, a idéia de que as funções da procriação são algo de que o homem não pode dispor a seu contento, mas de que deve prestar contas ao seu Autor, está tão arraigada na consciência dos povos que, explicita ou implicitamente, era afirmada nas religiões antigas; estas costumavam associar a fecundação a uma intervenção da Divindade e cercavam de respeito religioso tal função.
Destes princípios decorre que dois cônjuges católicos não dirão facilmente que não podem ter filhos. Verdade é que ninguém está obrigado a procriar (o preceito “Crescei e multiplicai-vos” se dirige à espécie humana, não a todo e qualquer indivíduo); aqueles, porém, que Deus chamou ao matrimônio são muito especialmente incumbidos desta função pelo Criador, e deste recebem a graça necessária para satisfazer a tal encargo. Por conseguinte, nem o comodismo nem o egoísmo covarde nem a vaidade serão motivos válidos para que um cônjuge ou um casal católico pense em “limitação de prole”.
Admita-se, porém, que motivos reais existam para dissuadir a procriação; tais seriam débil saúde da esposa, perigo de transmissão de doenças, penúria de recursos financeiros, dificuldades para educar a prole, etc. Em tais casos, os cônjuges católicos recorrem:
a) ou à continência total, que ao menos transitoriamente, em período de crise esporádica, poderá ser praticada sem grande dificuldade;
b) ou à continência periódica, regrada segundo a tabela de Ogino-Knaus ou conforme os métodos ainda mais recentes de medição da temperatura ou da glicose. Esses processos, indicando as fases em que a mulher é fecunda, possibilitam aos esposos escolher, para a realização do ato matrimonial unicamente os períodos de esterilidade natural.
Com efeito, a partir de 1928 os médicos K. Ogino, japonês, e H. Knaus, austríaco, fizeram estudos que hoje em dia permitem calcular quais os dias de infecundidade da mulher. Servindo-se deste recurso por motivo sério, os cônjuges não pecam, pois de modo nenhum mutilam a natureza para evitar a prole (e nisto se diferenciam daqueles que separam da consumação do ato o prazer anexo a este); praticam o comércio sexual em pleno acordo com as leis do organismo, aproveitando-se exclusivamente dos períodos de esterilidade natural. Esta exclusividade não lhes pode ser censurada desde que razões imperiosas o ditem; a Lei de Deus não exige “nascimentos em quota máxima”, nem “nascimentos sem discriminação”.
O recurso à tabela de Ogino-Knaus foi, a princípio, impugnado por alguns moralistas católicos que o julgavam “obra de morte, derrogação ao preceito divino”. Não resta mais dúvida, porém, a seu respeito, desde que o Santo Padre se pronunciou numa alocução à União Católica Italiana das Parteiras em 29 de outubro de 1951. Eis o trecho que nos interessa:
“Podem os cônjuges ser dispensados dessa obrigação positiva (de procriar) mesmo por muito tempo, até mesmo pela duração inteira do matrimônio, por motivos sérios, como os de indicação médica, eugênica, econômica, social. Donde se segue que a observância das épocas fecundas pode ser lícita sob o aspecto moral e, nas condições indicadas, o é realmente. Entretanto, se consoante um juízo razoável e justo, não há semelhantes motivos graves, quer pessoais, quer decorrentes das circunstâncias exteriores, a vontade, nos esposos, de evitarem habitualmente a fecundidade da sua união, embora continuem a satisfazer plenamente a sua sensualidade, só pode provir de uma falsa apreciação da vida e de motivos estranhos às regras da sã moral.
Contudo talvez insistais agora, observando que, no exercício da vossa profissão, vos achais às vezes diante de casos muito delicados, em que não se pode exigir se corra o risco da maternidade e em que mesmo esta última deve ser absolutamente evitada, casos em que,por outro lado, a observância dos períodos agenésicos ou não proporciona segurança suficiente ou não pode ser praticada por outros motivos. E perguntais como é que então ainda se pode falar de um apostolado a serviço da maternidade.
Se segundo o vosso juízo, seguro e experiente, as condições requerem, absolutamente um “não”, isto é, a exclusão da maternidade, seria um erro e um mal impor ou aconselhar um “sim”. De fato, trata-se aqui de fatos concretos e, por conseguinte, de uma questão não de teologia, mas de medicina; ela é, pois, da vossa competência. Mesmo nesses casos extremos toda manobra preventiva e todo atentado direto à vida e ao desenvolvimento do gérmen são proibidos em consciência e excluídos;… um só caminho fica aberto: o da abstenção de toda atividade completa da faculdade natural. Aí o vosso apostolado obriga-vos a ter um juízo claro e seguro e uma. calma firmeza.
Mas objetar-se-á que uma tal abstenção é impossível, que semelhante heroísmo não é praticável… E, para provar isso, aduz-se o seguinte raciocínio: Ninguém é obrigado ao impossível e nenhum legislador razoável pode ser suspeito de querer obrigar por sua lei mesmo ao impossível. Mas, para. os esposos, a continência de longa duração é impossível. Logo não são obrigados à continência; a Lei Divina não pode ter este sentido.
Assim de premissas parcialmente verdadeiras tira-se uma consequência falsa. Para disto nos convencermos, basta inverter os termos do raciocínio: Deus não obriga ao impossível. Ora Deus obriga os esposos à continência, se a sua união não se pode efetuar segundo as regras da natureza. Logo nestes casos a continência é possível….
Por conseguinte, no exercício da vossa profissão e no vosso apostolado, não vos deixeis perturbar por esse termo pomposo de impossibilidade. É fazer injúria aos homens e às mulheres do nosso tempo considerá-los incapazes de um heroísmo continuo. Hoje em dia por muitos motivos… o heroísmo exerce-se em grau e em medida que nos tempos passados se teriam acreditado impossíveis“.
(Pode-se ler o discurso por inteiro na “Revista Eclesiástica Brasileira” XII [1952] 193-208).
As palavras do Santo Padre, suficientemente claras, dispensam comentários. Em última análise, constituem uma exortação a que os cônjuges cristãos nutram entre si o espírito de fé, diferente da mentalidade do mundo.
Ainda se pode observar que a doutrina exporta nadarem que ver com o Malthusianismo, como é comumente entendido: restrição da natalidade mediante o emprego de meios artificiais. De resto, o ministro anglicano Roberto Malthus. em seu livro “An essay on the. principie of population” (1798), mostrava-se preocupado com as desoladoras condições econômicas em que viviam os povos e propunha-se remediar ao mal pela diminuição do número de nascimentos; não entendia, porém, de modo nenhum o uso de meios anticoncepcionais, mas apenas a abstenção de relações sexuais anteriores ao casamento, a continência por parte dos cônjuges que não pudessem gerar ou educar filhos sadios de corpo e alma; Malthus chegava mesmo a aconselhar o celibato casto. O verdadeiro arauto e sistematizador do controle de natividade é, antes, o filósofo e matemático N. Caritat, marquês de Condorcet, fautor e, depois, vítima da Revolução Francesa; a ele se deve a doutrinação concernente ao emprego dos meios anticoncepcionistas.