Hoje abordaremos um tema de vital importância e atualidade: o aborto sob a ótica da bioética. Este assunto, frequentemente envolto em debates intensos e opiniões divergentes, necessita de uma análise cuidadosa e fundamentada.
Muitos de nós possuem a convicção de que a vida humana inicia na concepção e, consequentemente, deve ser protegida. Contudo, frequentemente nos encontramos desprovidos dos argumentos necessários para fundamentar essa crença. Como defender nossas convicções com segurança e propriedade? Essa é a questão que nos move.
O objetivo desta exploração é fornecer um alicerce racional para nossa convicção sobre o início da vida humana. Neste contexto, adentramos o campo da apologética natural, utilizando exclusivamente a razão como nossa ferramenta. Deixamos de lado as discussões religiosas e focamos em argumentos lógicos e éticos.
O debate sobre o aborto se torna ainda mais pertinente em um cenário onde o Brasil enfrenta discussões sobre a legalização do aborto. Tais debates transbordam para escolas, universidades, locais de trabalho e reuniões familiares, tornando-se essencial estar preparado para dialogar com fundamentos sólidos, apresentando argumentos racionais contra o aborto, uma das maiores atrocidades que podemos cometer.
Muito do conteúdo apresentado foi inspirado pelo curso de bioética do Padre Lodi, além de experiências pessoais e discussões anteriores sobre o tema, incluindo um podcast gravado há alguns anos. A ideia é trazer e expandir esse conhecimento para o presente artigo.
Nosso estudo será dividido em quatro partes principais:
- Definindo a Vida;
- Entendendo a Bioética;
- O Direito Natural e Fundamental à Vida;
- Abordando Casos Particulares e Dilemas Morais.
Importante destacar que nossa abordagem não visa discutir o aborto sob o ponto de vista legal ou estatístico, nem mesmo comparar legislações internacionais ou debater decisões políticas. O cerne da nossa análise é determinar a moralidade do aborto: é um ato correto ou errado? Moral ou imoral? Essa é a questão central que procuraremos responder.
Ao longo deste artigo, buscaremos elucidar estas questões, navegando por argumentos racionais e éticos, na esperança de esclarecer e fundamentar as posições sobre um dos temas mais delicados e significativos da nossa sociedade.
O que é a vida?
Vida, em sua essência, é a capacidade inerente de um ser para agir por si mesmo. Esta capacidade de ação autônoma diferencia os seres vivos, como humanos, animais e plantas, dos não-vivos, como minerais e água. Um ser vivo é, portanto, tanto a causa quanto o fim de suas próprias ações, agindo independentemente.
As operações dos seres vivos
Os seres vivos são caracterizados por sete operações fundamentais:
- Nutrição: A habilidade de se alimentar e processar energia.
- Crescimento: A capacidade de aumentar em tamanho e complexidade.
- Reprodução: A habilidade de gerar novos seres vivos.
- Locomoção: O movimento voluntário de um lugar para outro.
- Sensação: A capacidade de perceber estímulos externos.
- Intelecção: A habilidade de compreender e raciocinar.
- Vontade: A capacidade de fazer escolhas conscientes.
Essas operações contribuem para o aperfeiçoamento do ser, definindo seu grau de complexidade e perfeição. Por exemplo, os seres humanos possuem todas essas operações, o que os coloca no ápice dessa hierarquia de perfeição.
Propriedades dos seres vivos
Os seres vivos possuem oito propriedades distintas:
- Individualidade: Cada ser vivo é um indivíduo único, com uma unidade intrínseca que o define.
- Autocontrole: A habilidade de manter a estabilidade (homeostase) em diferentes ambientes.
- Excitabilidade: Reação aos estímulos externos, como calor, luz, som e químicos.
- Tendência Evolutiva: Capacidade de crescer e evoluir mantendo a identidade individual.
- Reprodutividade: Habilidade de gerar outro ser vivo da mesma espécie.
- Hereditariedade: Transmissão de informações genéticas aos descendentes.
- Metabolismo: Conjunto de reações químicas para sustentar funções vitais.
- Mortalidade: A inevitabilidade da morte como um fim natural dos seres vivos.
A alma humana e a vida
No caso do ser humano, a complexidade é ainda maior devido à presença de uma alma espiritual, que transcende a matéria. A inteligência e a vontade, por exemplo, são atributos da alma e não meras funções cerebrais.
A alma humana, criada diretamente por Deus, é independente do corpo e imortal, subsistindo mesmo após a morte física. Esta compreensão filosófica sobre a alma é crucial para apreciar a dignidade transcendente da natureza humana.
Implicações para o debate sobre o aborto
Compreender a vida, especialmente a vida humana, é fundamental para qualquer discussão sobre o aborto. Se ignorarmos a essência da vida, como poderemos decidir eticamente sobre a interrupção de uma gravidez?
A lei pode proteger a vida em formação de uma tartaruga, mas paradoxalmente, debates sobre a proteção da vida humana intrauterina são frequentemente marcados por incoerências e falta de fundamentação racional.
Compreendendo a bioética
Bioética é a ramificação da ética que foca no comportamento humano em relação à vida e à saúde. Diferente de outras ciências que estudam como o homem se comporta, a ética, e por extensão a bioética, investiga como o homem deve se comportar, fundamentada na razão natural.
A base da ética
O princípio fundamental da ética é “o agir segue o ser” (agere sequitur esse). Isso significa que as ações humanas devem estar alinhadas com nossa natureza racional. Os princípios éticos são descobertos através da razão natural, como os imperativos de não matar, não mentir, não roubar e não cometer adultério.
O que são atos humanos
Um ato humano é qualquer ação realizada com vontade e entendimento. Para que um ato seja considerado humano, é necessário que a pessoa compreenda seu propósito e o escolha livremente. Assim, atos como andar, comer, trabalhar, roubar, entre outros, são considerados humanos quando realizados de forma consciente e voluntária. Em contrapartida, funções involuntárias como o bater do coração ou a respiração não são consideradas atos humanos, pois carecem de vontade e liberdade.
A moralidade dos atos
A moralidade é a qualidade boa ou má dos atos humanos. Atos bons são aqueles em conformidade com a reta razão, enquanto atos maus desviam-se dela. A moralidade de um ato humano depende de três elementos:
- O ato em si mesmo.
- A intenção por trás do ato.
- As circunstâncias que o envolvem.
Para um ato ser moralmente bom, esses três elementos devem ser igualmente bons. Da mesma forma, um ato é considerado mau se qualquer um desses elementos for negativo. Isso nos leva à compreensão de que a intenção nunca justifica meios imorais, e que as circunstâncias, embora possam atenuar ou intensificar a responsabilidade, não alteram a natureza moral do próprio ato.
A influência das circunstâncias
As circunstâncias são aspectos externos que podem agravar ou amenizar a bondade ou maldade de um ato. Por exemplo, a gravidade de um roubo pode variar de acordo com o valor roubado, mas isso não altera o fato de que roubar é um ato imoral. Circunstâncias podem afetar a responsabilidade do indivíduo, mas nunca transformam um ato injusto em justo ou vice-versa.
Direito à vida: fundamentos éticos e morais
O direito inalienável à vida do ser humano é fundamentado em sua dignidade intrínseca como pessoa. Segundo a definição clássica de Boécio, uma pessoa é uma “substância indivídua de natureza racional”. Isso significa que a pessoa existe por si mesma, é indivisível em sua essência e possui uma natureza racional.
A pessoa humana em diferentes estágios
Importante ressaltar que esta definição de pessoa abrange o ser humano em todos os estágios de desenvolvimento, desde a concepção até a morte natural. A racionalidade não necessita estar em constante operação (ou em ato) para qualificar alguém como pessoa. Assim, mesmo durante o sono, em casos de deficiência mental, ou no estágio fetal, a dignidade da pessoa permanece integral.
Não existe ‘gradação’ de pessoa
É crucial entender que não existe uma ‘gradação’ no que diz respeito a ser pessoa. Uma pessoa é sempre uma pessoa, independentemente de sua capacidade de exercer ou manifestar suas faculdades racionais em determinado momento.
Direitos humanos fundamentais
O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos humanos. É a base para todos os outros direitos, como liberdade, segurança, propriedade e educação. A existência de um homem é pré-requisito para a possibilidade de desfrutar de qualquer outro direito. Aqui, falamos do direito natural, que é inerente à condição humana, e não meramente de leis ou regras estabelecidas por uma sociedade ou país.
Violação do direito à vida
Qualquer violação do direito à vida é, na sua forma mais extrema, um ato de homicídio. Este é um ponto crucial na discussão sobre o aborto, pois coloca a questão da proteção à vida humana em seus estágios mais iniciais como um princípio ético e moral fundamental.
Temas relacionados
Embora questões como pena de morte, legítima defesa e conflitos armados também se relacionem com o direito à vida, esses temas requerem uma discussão mais aprofundada e específica, ultrapassando o escopo deste artigo.
O início da vida humana: perspectivas biológicas e éticas
A concepção, que é a união do óvulo (gameta feminino) com o espermatozoide (gameta masculino), marca o início da vida humana. Como destacado por Elios Sgreccia, renomado especialista em bioética, a fertilização resulta na formação de um novo ser biológico, o zigoto. Esse novo ser carrega um projeto genético único, determinado pela fusão dos 23 pares de cromossomos dos gametas. Neste ponto, emerge uma nova vida individual, distinta de qualquer outra.
O primeiro dado incontestável, esclarecido pela genética, é o seguinte: no momento da fertilização, ou seja, da penetração do espermatozóide no óvulo, os dois gametas dos genitores formam uma nova entidade biológica, o zigoto, que carrega em si um novo projeto-programa individualizado, uma nova vida individual. As duas respectivas células gaméticas têm em si um patrimônio bem definido, o programa genético, reunido em torno dos 23 pares de cromossomos […] Esses dois gametas diferentes entre si, diferentes das células somáticas dos pais, mas complementares entre si, uma vez unidos ativam um novo projeto-programa, pelo qual o recém-concebido fica determinado e individuado. Sobre essa novidade do projeto-programa resultante da fusão dos 23 pares de cromossomos não existe a menor dúvida, e negá-lo significaria rejeitar os resultados certos da ciência.
ELIO SGRECCIA, Manual de Bioética; I – Fundamentos e Ética Biomédica, São Paulo: Loyola, 1996.
Desenvolvimento embrionário
O desenvolvimento embrionário, que começa imediatamente após a fecundação, é caracterizado por três propriedades fundamentais: coordenação, continuidade e gradualidade.
- Coordenação: Desde a formação do zigoto, ocorre uma série de atividades moleculares e celulares, todas guiadas pela informação genética contida no genoma.
- Continuidade: O ciclo vital iniciado na fertilização prossegue sem interrupção, seguindo um processo contínuo e ininterrupto.
- Gradualidade: O embrião passa por várias etapas, desde a forma unicelular até a configuração final mais complexa. Este processo de desenvolvimento gradual assegura que o embrião mantenha sua identidade e individualidade em todas as fases.
Implicações biológicas e éticas
Este entendimento biológico confirma que, desde o momento da concepção, existe um ser humano único e individual. A continuidade e individualidade do embrião ao longo de seu desenvolvimento são evidências claras de sua identidade como ser humano desde a concepção. Este fato biológico fornece uma base sólida para argumentos éticos contra o aborto, destacando a existência de vida humana desde os estágios iniciais de desenvolvimento.
Aborto: uma análise ética e moral
O aborto é caracterizado como a morte deliberada e direta de um ser humano na fase inicial de sua existência, desde a concepção até o nascimento. Independentemente do método utilizado – seja por aspiração, curetagem, envenenamento salino ou cesariana – o aborto sempre resulta na terminação intencional de uma vida humana.
Imoralidade Inerente do Aborto
A imoralidade do aborto é evidente quando analisamos sob a perspectiva da razão natural. Não é necessário recorrer à teologia ou à escritura sagrada para compreender que:
- Violação do Direito à Vida: O aborto encerra intencionalmente uma vida humana, desrespeitando o direito fundamental à vida.
- Desrespeito à Dignidade Humana: A vida humana possui uma dignidade inerente em todos os estágios. O aborto nega essa dignidade, tratando a vida como descartável.
- Contradição ao Princípio de Não-Maleficência: Um princípio básico da ética é não causar mal. O aborto viola claramente este princípio.
- Fins Não Justificam os Meios: Mesmo objetivos como aliviar o sofrimento não podem justificar a ação de tirar uma vida humana.
- Violação do Princípio de Justiça: Se defendemos direitos iguais à vida para todos, escolher terminar uma vida por conveniência pessoal contradiz esse princípio.
- Desumanização e Coisificação: O aborto reduz o ser humano a um objeto descartável, o que é eticamente e moralmente inaceitável.
A Condenação da Igreja ao Aborto
A Igreja, alinhada com a razão natural, condena o aborto, seja como um fim em si mesmo ou como meio para alcançar um fim. Não importa a nobreza do objetivo, como aliviar o sofrimento ou salvar uma vida, os meios imorais (neste caso, o aborto) nunca são justificáveis.
Intransigência Moral do Aborto
É essencial enfatizar que o aborto é inaceitável em qualquer circunstância. As discussões políticas, as leis ou os mitos propagados por organizações pró-aborto não alteram a natureza moral do ato. Mesmo que todas as estatísticas ou argumentos a favor do aborto fossem verdadeiros, isso não mudaria o fato de que o aborto é moralmente errado.
Disclaimer
Este artigo não visa julgar ou menosprezar as mulheres que enfrentam situações difíceis, mas sim abordar a questão do aborto sob o aspecto de sua natureza moral. As circunstâncias podem influenciar a responsabilidade de quem comete o aborto, mas nada pode justificar ou tornar moralmente aceitável a morte deliberada e direta de um ser humano em desenvolvimento.
Respostas a casos concretos e dilemas morais
Pode-se matar a criança para salvar a vida da mãe?
Não é lícito moralmente matar uma criança, nem mesmo para salvar a vida da mãe. A moralidade não permite fazer um mal (matar a criança) para alcançar um bem (salvar a mãe). O valor da vida da mãe e do bebê é igual e intrínseco, não dependendo de critérios como saúde, idade ou capacidade intelectual.
E se a mãe precisa de tratamento médico que pode resultar na morte da criança?
Se a morte da criança é um efeito secundário não intencional de um tratamento necessário para a mãe, como uma cirurgia cardiovascular, pode ser eticamente tolerável. No entanto, este efeito secundário só pode ser aceito se o bem alcançado for proporcionalmente superior ao mal causado e se não houver alternativas seguras para a criança.
E a gravidez em caso de estupro?
Mesmo em casos de estupro, o aborto é moralmente errado. As circunstâncias, por mais graves que sejam, não alteram a moralidade do ato de abortar. Assim como não se pode justificar o assassinato de uma pessoa nascida de um estupro, também não se pode justificar o aborto nesses casos.
E se a criança estiver doente?
Abortar uma criança por estar doente, mesmo gravemente, é inadmissível. Independentemente da gravidade da doença ou da expectativa de vida após o nascimento, cada criança merece ser acolhida e amada. Abortar com base em diagnósticos de doenças é uma forma de eugenia, inaceitável moralmente.
E no caso de anencefalia?
Mesmo no caso de anencefalia, onde a criança apresenta uma condição grave, o aborto não é justificável. A vida tem seu valor intrínseco, independentemente do desenvolvimento cerebral ou da expectativa de vida pós-nascimento. Cada vida é digna e merece respeito, independente de sua condição.
Conclusão
Chegamos ao fim de nossa discussão, e é importante enfatizar que nosso foco não esteve nos aspectos políticos e sociais do aborto. Reconhecemos a complexidade e a sensibilidade que envolve a decisão de uma mulher em situação de gravidez indesejada ou de risco. Entretanto, é crucial compreender que o aborto não deve ser visto como uma opção viável.
As razões para esta conclusão são claras:
- A inviabilidade de justificar o mal com boas intenções: Um ato intrinsecamente mau, como o aborto, não pode ser justificado por uma finalidade nobre. Não se pode alcançar o bem através de ações imorais.
- Oposição à lei natural e divina: Como Santo Tomás de Aquino salientou, leis humanas que contradizem a lei natural e divina não são verdadeiras leis, mas corrupções. Legalizar o aborto seria uma afronta a esses princípios fundamentais.
- Necessidade de conscientização: Em vez de tornar o aborto mais acessível, a sociedade deve esforçar-se para educar sobre os aspectos negativos do aborto. Mulheres em situação de vulnerabilidade precisam de aconselhamento e apoio para entender as consequências de tal ato.
- Aborto como corrupção: O Cardeal George Pell destaca que o aborto corrompe tudo que toca – a lei, a medicina e os conceitos de direitos humanos. Essa corrupção começa no coração humano e se espalha por toda a sociedade.
O aborto, longe de ser uma solução, transforma a mulher em mãe de um filho perdido. É uma realidade trágica que necessita de abordagem cuidadosa e compassiva. Devemos nos esforçar para oferecer alternativas, apoio e compreensão àquelas que enfrentam decisões difíceis, sempre preservando o valor e a dignidade de todas as vidas envolvidas.