(Por Karlo Broussard em Catholic Answers. Traduzido por Petter Martins.) Aqui está um argumento que você pode não esperar para a doutrina protestante central… e como derrotá-lo.
Os católicos costumam criticar a doutrina protestante da sola scriptura, dizendo que ela é autodestrutiva. O raciocínio geralmente segue algo assim: 1) a sola scriptura afirma que não devemos assentir a nenhuma doutrina como infalível, a menos que seja encontrada na Escritura; 2) a doutrina da sola scriptura em si não é encontrada na Bíblia; 3) portanto, não devemos assentir à sola scriptura como uma doutrina infalível.
Alguns protestantes são rápidos em contra-argumentar, no entanto, dizendo que o argumento acima deturpa a sola scriptura como se fosse em si uma doutrina cristã. Mas não é uma doutrina per se, assim vai o argumento. Em vez disso, é um prolegômeno, o que significa que é um princípio preliminar que é necessário ter em vigor para começar a aprender a doutrina cristã.
Como se chega a este prolegômeno? Por um simples processo de raciocínio:
Premissa 1: Dada a sua inspiração, os livros contidos na Bíblia são uma regra infalível para a fé e prática cristãs.
Premissa 2: Não há outras regras infalíveis para a crença e prática cristãs.
Conclusão: Portanto, a Bíblia é nossa única regra infalível para a crença e prática cristãs.
Que não devemos assentir a nenhuma doutrina relativa à fé ou moral como infalível é argumentado ser uma consequência “boa e necessária” da conclusão acima. Alguns chamaram esta doutrina de Suficiência da Escritura.
Portanto, dada a sua natureza prolegômena, parece que a sola scriptura — e a consequência “boa e necessária” da Suficiência da Escritura — está isenta de ser uma doutrina teológica que precisa ser provada a partir da Escritura, e, portanto, não é autodestrutiva.
Essa contra-argumentação isenta a sola scriptura da armadilha autodestrutiva? Bem, como diz o ditado, “there’s more than one way to skin a cat” — há mais de uma maneira de esfolar um gato — (Lembre-se, amantes de gatos: isso é apenas um modo de dizer!)
Alguns apologistas podem querer segurar os pés de um protestante no fogo e argumentar que a sola scriptura deve ser provada a partir da Escritura para passar em seu próprio teste. E dado que não pode, é autodestrutiva. No entanto, estou disposto a dar aos nossos amigos protestantes uma folga aqui e seguir com a tática do prolegômeno para argumentar.
Dito isso, a sola scriptura ainda não escapa da armadilha autodestrutiva, pelo menos para os cristãos que aceitam como inspirados todos os vinte e sete livros do cânon do Novo Testamento. E aqui está o porquê:
A conclusão acima — que a Escritura é nossa única regra infalível de crença e prática cristãs — impede um cristão de ter conhecimento infalível sobre se certos livros no cânon da Escritura (a lista de livros divinamente inspirados) são inspirados ou não.
Para ver isso, temos primeiro que considerar as maneiras pelas quais podemos ter conhecimento infalível de algo.
- Sentimos algo diretamente. Por exemplo, quando vejo a árvore lá fora, tenho uma experiência sensorial imediata e direta da árvore e, portanto, sei infalivelmente que a árvore existe (uma visão conhecida como realismo direto);
- Uma afirmação é reduzida a uma violação de um primeiro princípio, como o princípio da não-contradição (PNC) — isto é, que algo não pode ser e não ser sob mesmo aspecto, ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Se uma afirmação violasse o PNC, saberíamos infalivelmente que a afirmação é falsa porque o PNC não pode ser negado sem pressupor sua validade. Quando um princípio não pode ser negado assim, isso é um sinal seguro de que é verdadeiro.
- Uma afirmação sobre a realidade que é diretamente confirmada por um milagre (ou milagres). Dado que os milagres requerem poder divino, e Deus não pode confirmar a falsidade, a confirmação milagrosa nos daria conhecimento infalível de que a afirmação do profeta é respaldada por Deus e, portanto, é verdadeira.
- Uma afirmação é feita infalivelmente por alguém que recebeu autoridade para falar em nome de Deus, seja pelo próprio Deus ou por outro cuja autoridade é milagrosamente confirmada. Mesmo que tal pessoa não tenha uma confirmação milagrosa diretamente associada à sua afirmação, há uma transferência de autoridade divina que já foi estabelecida.
- Deus revela algo diretamente para você ou para mim.
Vamos agora considerar a qual desses um defensor da sola scriptura pode recorrer para ter conhecimento infalível sobre quais escritos dentro das tradições judaica e cristã são divinamente inspirados.
A primeira maneira obviamente não se aplica a esse tipo de coisa.
A segunda maneira funcionaria? Não! A negação da inspiração divina de um livro particular na Bíblia não viola o princípio da não-contradição. Não há contradição lógica, por exemplo, em dizer que o Evangelho de Marcos não é inspirado. Nem a afirmação da inspiração divina do documento cristão do primeiro século chamado Pastor de Hermas (que não é considerado inspirado pelos cristãos) implica uma negação do princípio da não-contradição. Portanto, nossa segunda maneira não vai funcionar.
E quanto à terceira maneira? Talvez Deus tenha abençoado alguns com este caminho. Mas suspeito que para a maioria dos protestantes, sua afirmação de que os livros no cânon da Escritura são inspirados não foi diretamente confirmada por milagres.
A quarta maneira é talvez a mais promissora. Para começar, temos Jesus. Certamente, ele é uma fonte de conhecimento infalível porque confirmou milagrosamente suas afirmações não apenas para ser um profeta que fala em nome do Pai, mas para ser Deus Encarnado.
Também temos os homens que Jesus nomeou para falar em seu nome (Cf. Lc 10,16), chamados apóstolos. E sua pregação (afirmações sobre a realidade) não só tinha o respaldo divino de Jesus, mas também tinha confirmação milagrosa (cf. At 2,1-42).
Mas a esperança desta opção para saber infalivelmente quais escritos judaicos e cristãos são inspirados vai apenas até certo ponto.
Para começar, a esperança não é concretizada por Jesus. Ele não nos dá uma lista detalhada de quais escritos judaicos ou cristãos ele julgou serem inspirados. Podemos ser capazes de decifrar um conhecimento geral e vago de quais escritos judaicos ele julgou serem inspirados (Mt 4,4/Dt 8,3; Mt 22,32/Ex 3,6), mas ele não vai muito além disso. Com certeza, não podemos discernir quais escritos cristãos são inspirados olhando para Jesus, porque ele nunca falou sobre tais escritos.
Mas temos seus apóstolos. Eles nos dizem algumas coisas que podem levar ao conhecimento infalível de quais escritos cristãos são inspirados. (Vamos deixar os escritos judaicos de lado para simplificar.) Pedro, por exemplo, se refere aos escritos de Paulo como “escritura” (cf. II Pe 3,16), o que significa que Pedro acreditava que eles eram divinamente inspirados. Isso cobre boa parte do Novo Testamento.
Outro exemplo é a citação de Paulo de um trecho do Evangelho de Lucas (Lc 10,7) em I Timóteo 5,18, que Paulo introduz como “pois a Escritura diz“. Isso nos diz que Paulo acreditava que pelo menos este trecho de Lucas é divinamente inspirado. E suponho que podemos ser generosos e inferir da afirmação de Paulo que todo o Evangelho de Lucas também é inspirado.
O problema, no entanto, é que os apóstolos não dizem nada sobre o resto dos escritos que os cristãos acreditam ser divinamente inspirados — ou seja, o cânon do Novo Testamento (para católicos e protestantes). Por exemplo, eles não nos dizem que o Evangelho de Marcos é inspirado, o que é especialmente um problema porque ele nem mesmo era um apóstolo.
Um protestante poderia contra-argumentar e dizer que Marcos era o escriba de Pedro. E dado que Pedro era infalível por virtude de sua autoridade apostólica, segue-se que o conteúdo de Marcos é infalível por virtude de Pedro. Mas Pedro nunca nos diz, através de Marcos, que o conteúdo do Evangelho de Marcos é divinamente inspirado. Isso é o que estamos procurando aqui.
Além disso, nenhum apóstolo jamais nos ensina quando ele mesmo ou os outros apóstolos estão sob inspiração divina. Então, só porque Pedro está por trás do conteúdo do Evangelho de Marcos, isso não significa necessariamente que ele é inspirado.
Além disso, pegue a epístola aos Hebreus, cujo autor não é definitivamente conhecido. Sendo este o caso, não podemos agrupá-la com os escritos de Paulo que Pedro chama de “escritura”. Claro, um estudioso pode colocá-la junto com as epístolas de Paulo, mas, no final das contas, realmente não sabemos. E nenhum apóstolo jamais nos diz que ela é inspirada, muito menos apostólica. Então, nossa quarta maneira não vai funcionar para nos dar conhecimento infalível sobre a inspiração divina da carta aos Hebreus.
E quanto à epístola de Tiago? Nenhum apóstolo jamais nos diz que a epístola de Tiago é divinamente inspirada. Essa crença não parece, aparentemente, até Orígenes no meio do terceiro século (Comentário sobre Romanos 4.8.2). A epístola de Tiago é definitivamente apostólica. Mas, novamente, nenhum apóstolo jamais nos diz que tudo o que um apóstolo escreve automaticamente é divinamente inspirado.
Agora, lembre-se de que a segunda premissa acima afirma que não há outras fontes infalíveis para a doutrina cristã além da Escritura. Em outras palavras, a autoridade infalível que os apóstolos tinham não está mais disponível para nós como cristãos porque todos eles morreram. De acordo com os protestantes, os apóstolos não transferiram sua autoridade infalível para outros homens. Isso significa que ficamos apenas com a Escritura como nossa regra infalível para a fé e prática cristã, como afirma a conclusão do raciocínio acima.
Então, se fôssemos tomar este quarto caminho, a natureza divinamente inspirada de alguns escritos judaicos e cristãos estaria além do que poderíamos saber infalivelmente — isto é, não poderíamos saber infalivelmente se alguns livros pertencem ao cânon cristão da Escritura.
Só resta uma opção: revelação pessoal de Deus.
O problema aqui é que a maioria dos cristãos não iria tão longe a ponto de afirmar que receberam revelação direta de Deus quanto a quais escritos são inspirados. Talvez eles afirmem que têm uma “queimação no peito”, para pegar emprestado o jargão dos mórmons, mas isso não é suficiente para ter conhecimento infalível. Como diz o profeta Jeremias, “o coração é enganoso acima de todas as coisas” (Jr 17,9-10).
Então, no final das contas a sola scriptura acaba sim sendo autodestrutiva, mas apenas de uma maneira diferente de como a maioria das pessoas pode pensar. A conclusão do raciocínio acima — que a Escritura é nossa única regra infalível para a crença e prática cristã — bloqueia qualquer tipo de conhecimento infalível sobre se certos livros no cânon cristão da Escritura — por exemplo, Marcos, Hebreus e Tiago — são inspirados ou não. não.
Um cristão pode se safar com uma sola scriptura na qual ele aceita uma “scriptura” que carece de alguns dos escritos judaicos e cristãos contidos nas bíblias cristãs. Mas o que ele não pode se safar é uma sola scriptura para a qual a “scriptura” inclui todos os escritos judaicos e cristãos comumente aceitos entre os protestantes como divinamente inspirados.