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O Papado à luz das Tradições Judaicas

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O papado é uma doutrina que permeia profundamente a fé católica, e a figura de Pedro, como líder da Igreja, emerge como um símbolo forte e distintivo. Neste artigo, exploraremos a compreensão do Papado sob uma nova perspectiva: a da Cultura, do Conhecimento, e da Tradição dos judeus.

Vamos perceber como as tradições judaicas iluminam certos aspectos da nossa fé. Esta luz lançada sobre nossas convicções permite-nos compreender de maneira muito mais clara certas declarações feitas na Escritura e cridas pela Igreja. A figura de Pedro e o Papado serão de interesse particular neste estudo.

Estas descobertas e análises não apenas enriquecem nosso entendimento, mas também ajudam a formular uma defesa muito mais robusta do papado. Ao acrescentar uma série de informações ordenadas e considerar todos os outros argumentos em favor do papado — como a leitura de Mateus 16,18; as evidências da liderança de Pedro no Novo Testamento; o exercício dos primeiros bispos de Roma na era pós-apostólica —, colocamos ainda mais peso na defesa dessa doutrina que nos é tão cara.

A doutrina do papado é distintivamente católica. Enquanto algumas comunidades fora da Igreja possam aceitar outros aspectos da nossa fé, como a veneração a Maria ou a presença real de Cristo na Eucaristia, o papado permanece uma questão definitiva: Se você aceita o Papa, você é católico; se não aceita, não pode ser católico. A relevância deste tema é inegável, pois requer que conheçamos tudo o que estiver ao nosso alcance para aumentar a compreensão da nossa fé e defendê-la com vigor e força, seja esclarecendo mal-entendidos ou respondendo às críticas que nos são feitas.

O conteúdo deste artigo tem origem, antes de tudo, na mente e nas pesquisas do grande teólogo e apologista americano Brand Pitre, que há alguns atrás ministrou a palestra “Raízes Judaicas do Papado”. Agora com 48 anos, o dr. Pitre serviu como professor em várias universidades e seminários nos Estados Unidos e atualmente atua como Professor e Pesquisador da Sagrada Escritura no Augustine Institute, no Colorado. Sua contribuição à teologia católica é expressa em diversas obras, duas obras traduzidas aqui no Brasil pela editora Ecclesiae: “Jesus e as raízes judaicas da Eucaristia” e “Em defesa de Cristo”. Estas obras são recomendações essenciais, fornecendo material valioso para aqueles que buscam defender a fé, especialmente o último, que é uma Apologia dedicada aos Evangelhos, a Jesus, e à sua Divindade.

A figura de Pedro

Em uma análise da clássica passagem de Mateus 16,18, após Pedro ter confessado a divindade de Cristo, somos apresentados a palavras proferidas por Jesus que nos conduzem a uma exploração profunda da figura de Pedro como papa. Este estudo visa esclarecer quatro problemas fundamentais associados a essa figura, elucidados através do estudo das tradições antigas dos Judeus.

As palavras de Jesus a Pedro foram: “Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus. E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.”

Os quatro problemas fundamentais levantados pela figura de Pedro como papa são:

  1. A imagem da Pedra: Um símbolo poderoso que necessita de compreensão.
  2. A imagem das Chaves do Reino: O que representam essas chaves?
  3. O poder de Ligar e Desligar: Qual o significado deste poder?
  4. O Primeiro-Ministro Sacerdotal, do Livro de Isaías: Como essa imagem se correlaciona com Pedro?

A análise das imagens usadas por Jesus no diálogo com Pedro nos leva a entender questões culturais e tradicionais dos Judeus, tornando essas imagens mais claras. É vital compreender o contexto em que essas palavras foram pronunciadas e o que elas realmente significam.

Compreender a autoridade de Pedro sobre a Igreja nos conduz a várias observações:

  1. Aceitação da Autoridade de Pedro: Os primeiros cristãos aceitaram prontamente a autoridade de Pedro, o que é evidenciado por vários fatores, como:
    1. Porta-voz dos Apóstolos: Na grande maioria das ocasiões em que Pedro está presente, ele assume o papel de representante e porta-voz dos demais apóstolos, uma clara indicação de sua primazia.
    2. Presença marcante: Pedro é mencionado com uma frequência que supera todos os outros apóstolos, refletindo seu papel central e proeminente.
    3. Primeiro entre os Doze: Nas listas que enumeram os doze apóstolos, Pedro é sempre mencionado primeiro, denotando uma posição de destaque.
    4. Reconhecimento do Messias: Ele foi o primeiro a reconhecer Jesus como o Messias.
    5. O primeiro no Túmulo vazio: Após a Ressurreição de Jesus, Pedro foi o primeiro a entrar no Túmulo vazio.
    6. Líder em Pentecostes: Foi Pedro o primeiro a pregar depois de Pentecostes, iniciando o ministério público da Igreja.
    7. Realizador de Milagres: Ele também foi o primeiro a realizar milagres no início do ministério público da Igreja.
    8. Liderança no Concílio de Atos: No Concílio de Atos, a liderança de Pedro é inquestionável e suas palavras foram definitivas na resolução de uma questão fundamental.
  2. A Figura Sacerdotal de Pedro: Por que Pedro, desde o início da Igreja, foi visto como uma figura sacerdotal? Os Apóstolos foram chamados de sacerdotes no Novo Testamento? Não. Jesus falou sobre um novo sacerdócio? Não. Entretanto, Pedro e seus sucessores foram reconhecidos como sacerdotes, presbíteros e bispos desde o início da Igreja. Por que isso aconteceu?

É através do estudo das tradições judaicas que essas questões, de extrema importância, são respondidas. A compreensão dessas imagens e símbolos, embora complexa, é fundamental para entender a autoridade e a função de Pedro dentro da Igreja Católica.

As tradições judaicas

Com uma abordagem séria e fundamentada, é essencial que exploremos essas tradições, e compreendamos como elas influenciam não apenas o Judaísmo, mas também o entendimento do Cristianismo. Nossa jornada será guiada pelos escritos que o professor Pitre utiliza em sua exposição, dividindo-se em quatro grupos principais:

1. Mishná

A Mishná é uma coleção de tradições judaicas composta pelos rabinos do 1º ao 3º século d.C. Compilada por Rabino Judá, o Príncipe, por volta do ano 200 d.C, este compêndio pode ser comparado com nosso código de direito canônico ou até mesmo com nosso Catecismo. Trata-se de um conjunto de tradições vinculativas que os rabinos acreditavam sobre a Sagrada Escritura. A Mishná é vista como uma lente, ou uma luz, através da qual o Antigo Testamento deveria ser lido.

2. Talmude Babilônico

Este é uma ampla coleção de tradições e crenças dos rabinos da Babilônia que abrange do século 1º ao século 5º d.C. É algo semelhante à nossa Coleção Patrística, com uma extensão de cerca de 20 a 30 volumes. Os escritos de diversos rabinos revelam como os judeus daquela época acreditavam e interpretavam suas crenças.

3. Midrash Raba

Conhecido também como “o grande comentário”, o Midrash Raba é um antigo comentário rabínico dos livros do Antigo Testamento. Pode ser comparado à Catena Áurea, que é um compilado dos Evangelhos comentados pelos Santos Padres. É um acervo de comentários dos rabinos aos livros do Antigo Testamento, permitindo que entendamos como interpretaram certas passagens da Escritura.

4. Targum ou Targumim

Os Targumim são traduções e adaptações da Bíblia Hebraica para o aramaico, a língua do povo judeu. Essas versões equivalem aos Textos Bíblicos Oficiais da Igreja usados na Liturgia, como o Lecionário e o Evangeliário em nosso idioma, o Português. Entretanto, o professor Pitre salienta que essas traduções do Targum não são comuns. Elas também são interpretações dos textos, expandindo o significado e adicionando elementos da tradição judaica que esclarecem o texto hebraico original.

Essas tradições, ricas e profundas, oferecem um pano de fundo essencial para qualquer um que deseje aprofundar-se na fé cristã e na sua relação com suas raízes judaicas.

A pedra

Em Cesaréia de Felipe, localizada ao norte da Galileia, encontramos uma referência à pedra que traz significados importantes. Foi aqui que Jesus fez sua declaração sobre Pedro. O local era conhecido por abrigar um templo pagão, que muito provavelmente era dedicado ao deus Pan, a divindade da natureza, da caça, e do pastoreio.

Interessantemente, esse templo apresentava paralelos com o Templo de Jerusalém, e um desses paralelos se encontrava numa pedra gigante, localizada no centro do templo. Essa pedra não era uma pedra qualquer, mas era a pedra fundacional em torno da qual o templo era construído, estabelecendo assim uma relação simbólica e física com o sagrado.

A presença dessa pedra fundacional não se restringia ao contexto pagão de Cesaréia de Filipe. De acordo com os rabinos, uma pedra semelhante, conhecida como “Evan Shetiyah”, estava situada no Templo de Jerusalém, bem no Santo dos Santos, o centro principal do templo, onde repousava a Arca da Aliança.

A Mishná, uma compilação de leis e tradições judaicas, nos fornece uma descrição dessa pedra, relatando rituais e simbologias. Quando o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos, ele encontrava essa pedra fundamental, sobre a qual o templo foi construído.

Notavelmente, após o exílio babilônico e o desaparecimento da arca, essa pedra continuou a ser um elemento central nos rituais, e o sangue da expiação era colocado sobre ela. Além disso, a “Evan Shetiyah” estava repleta de significados, ligada à oferta de Isaac por Abraão e vista como a pedra fundacional de todo a Criação. Hoje, essa pedra é conhecida e está sob domínio muçulmano, localizada no edifício conhecido como “o domo da rocha”, em Jerusalém.

Ao examinar essas tradições judaicas, o que podemos extrair em relação ao cristianismo? A afirmação de Jesus, “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”, ressoa de maneira singular aos ouvidos dos judeus. No aramaico, Pedro e Pedra são representados pela mesma palavra: Kepha. Essa semelhança linguística revela um simbolismo profundo.

Com essa declaração, Jesus não estava apenas formando uma nova assembleia. Ele estava edificando um novo templo, sobre uma nova pedra fundacional. Pedro se torna a “Evan Shetiyah” do Novo Templo e do Novo Testamento. A Igreja, onde o povo da Nova Aliança viria adorar a Deus, oferecendo o sacrifício de adoração na Santa Missa, está fundada sobre essa pedra.

As chaves

Em diversos contextos históricos e culturais, as chaves são empregadas como símbolos de autoridade. Em cerimônias públicas e entre figuras políticas, como prefeitos, as chaves muitas vezes representam poder e controle, constituindo um emblema que transcende sua função utilitária. Na tradição judaica, as chaves assumem ainda um outro significado, marcando a autoridade sacerdotal. Essa simbologia é testemunhada por Flávio Josefo e pela Mishná.

Os sacerdotes eram os detentores das chaves do templo. Composta por diversos grupos de sacerdotes, a classe sacerdotal utilizava a troca de chaves como um sinal para determinar o momento em que um grupo específico assumia suas funções no templo. Mas como um sacerdote sabia quando era sua vez de oferecer sacrifício? A entrega das chaves era o sinal. Essa entrega não apenas representava uma autoridade genérica, mas significava especificamente a autoridade sacerdotal para oferecer sacrifício.

A Mishná nos informa onde os sacerdotes guardavam essas chaves. Elas eram mantidas em uma laje de mármore no templo, fixadas a um anel com uma corrente. É relevante notar que nem todos os sacerdotes tinham acesso a essas chaves. Somente o “Sagan Hakohaneen,” o prefeito dos sacerdotes e sumo sacerdote sobre todos os outros, tinha essa autoridade. Estes são elementos fundamentais que devem ser cuidadosamente considerados.

O milagre das portas

No ano 70 d.C., o Templo de Jerusalém foi destruído, um evento que assinalou um ponto de inflexão na história judaica. Mas antes desse cataclismo, ocorreu um fenômeno que muitos interpretaram como um sinal divino. Flávio Josefo, o renomado historiador judeu, documentou este milagre nas suas obras.

Numa noite peculiar, os imensos e pesados portões de bronze do templo se abriram sozinhos, sem a ajuda ou interferência humana. Esse evento surpreendente causou grande alvoroço, e todos procuraram o prefeito dos sacerdotes, o detentor da autoridade no templo.

O que tornou este acontecimento ainda mais extraordinário foi o fato de que um dos portões que se abriu era tão pesado que precisava de 20 homens para ser fechado. No entanto, naquela noite, foi fechado sem dificuldade pelo prefeito dos sacerdotes, de forma quase sobrenatural.

Para os judeus e os escribas da época, o significado deste milagre era inquietante. Interpretaram-no como um aviso de que a segurança do templo estava em perigo. O portão aberto era uma vantagem para os inimigos, um sinal de vulnerabilidade. Infelizmente, suas preocupações se concretizaram quando os romanos derrubaram os portões e incendiaram o templo.

A questão proposta pelo dr. Pitre leva-nos a uma reflexão profunda sobre o significado teológico deste milagre. Será que Jesus sabia que isso aconteceria enquanto estava com Pedro, conforme narrado em Mateus 16? Quando Jesus proclamou: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela,” Ele estava ciente sobre as chaves, os portões e o templo?

O milagre das chaves

No momento trágico da destruição do Templo de Jerusalém, um outro milagre surgiu, capturando a imaginação e a fé dos que o presenciaram. Conta-se que os sacerdotes, desesperados e abatidos com a devastação que se alastrava sobre o templo, pegaram as chaves deste sagrado lugar e as lançaram ao céu.

O que ocorreu em seguida é de uma beleza e significado indescritíveis: Surge no céu a figura de uma mão que recebeu as chaves que eles tinham jogado. Este evento misterioso está relatado em diversos documentos da época, conforme indicado por vários estudiosos. Alguns escritos não detalham a aparição da mão, mas confirmam que, quando as chaves foram atiradas para cima, elas não desceram mais.

O significado deste milagre vai além do puro simbolismo. Se você é um cristão que veio do judaísmo, ou um dos Apóstolos e está familiarizado com essas tradições, a compreensão deste evento adquire uma dimensão ainda mais profunda.

A edificação da Igreja e o sacerdócio do Novo Testamento

Nos escritos sagrados, encontramos muitas passagens que revelam a sabedoria e o plano divino de Jesus Cristo. Entre essas revelações, o episódio em que Jesus prediz a destruição do templo em Marcos 13 destaca-se não apenas por sua natureza profética, mas também pela sua conexão profunda com a edificação da Igreja e o estabelecimento do sacerdócio do Novo Testamento.

Jesus sabia muito bem que, após a sua morte, ressurreição e ascensão, o templo seria destruído quarenta anos mais tarde. Com essa consciência, Ele edificou a sua Igreja sobre Pedro, tornando-o a nova “Evan Shetiyah”, a pedra fundamental de Seu novo templo. Assim, Pedro se tornou o novo “Sagan Hakohaneen”, o prefeito dos sacerdotes deste novo templo.

Note que não era preciso dizer a palavra “sacerdote” ou chamar Pedro de novo “Sagan Hakohaneen”, pois tudo já está contido na imagem das chaves, que seria naturalmente entendido por todos os inseridos no contexto daquela época.

Este ato simbólico tem profundo significado sacerdotal, como argumenta o professor Pitre. Os primeiros padres da igreja interpretam essa passagem de Mateus 16, sobre as chaves de Pedro, em termos sacerdotais. Não se trata apenas de uma concessão de autoridade, mas de uma investidura sacramental.

Muitos teólogos dizem que é neste momento (Mt 16,18) que Jesus estabelece o sacerdócio do Novo Testamento. Ele dá a Pedro a autoridade não apenas para governar e pastorear o Seu rebanho como um Rei, mas também para oferecer o sacrifício como um sacerdote. O sacrifício do Novo Testamento, que Jesus vai instituir na Última Ceia, é aquele que todos os sacerdotes vão oferecer, desde Pedro até os nossos dias.

Jesus está criando um ofício singular. Um ofício de liderança, autoridade e sacerdócio que não morre com Pedro, mas que perdurará até o fim dos tempos. Este ofício transcende as limitações humanas e se manifesta na continuidade da Igreja, em sua missão e em seu testemunho.

Ligar e desligar

A primeira dimensão que merece atenção é o poder de “ligar e desligar” que os fariseus detinham no primeiro século. Esta era uma expressão comum entre os rabinos, evidenciando autoridade, tão claramente que Flávio Josefo, o historiador judeu, usou essa mesma expressão para descrever a autoridade dos fariseus.

Em suas palavras, “os fariseus, um grupo de judeus conhecidos pela excelência em sua nação na observância religiosa, e como expoentes exatos da lei, se tornaram, portanto, reais administradores do estado, livres para banir e revocar, para desligar e ligar, a quem desejassem. Em suma, a autoridade real lhes pertencia.”

Esta não era apenas uma autoridade simbolizada pelas chaves, mas também por esse poder distintivo de ligar e desligar, precisamente o que foi entregue a Pedro em Mateus 16. É importante notar que, embora outros apóstolos tenham recebido essa autoridade, apenas Pedro recebeu as chaves, sugerindo uma subordinação dos outros apóstolos a Pedro nesse aspecto.

Esta expressão também lança luz sobre o papel de Pedro. Em Mateus 16, Pedro recebe a mesma autoridade para interpretar as Escrituras que os sacerdotes, escribas e fariseus tinham no primeiro século. O Capítulo 23 de São Mateus destaca isso, onde Jesus reconhece a autoridade dos fariseus e instrui os discípulos a obedecer a eles.

A autoridade dos fariseus

Ele afirma, “Os escribas e os fariseus sentaram-se na cátedra de Moisés. Observai e fazei tudo o que eles dizem”. Mas, a despeito dessa autoridade, Jesus, que é Deus, lhes tira essa autoridade e a confere a Pedro, declarando, “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós fechais aos homens o Reino dos Céus.” (v.13).

A autoridade dos fariseus e dos escribas era manifesta através da interpretação autorizada da Escritura — a interpretação autorizada da Lei. Eles tinham a autoridade de cátedra, o poder de ligar e desligar, e as chaves, que fecham ou abrem o Reino de Deus. É revelador que, antes da manifestação pública da Igreja depois de Pentecostes, os discípulos deveriam obedecer ao ensino dos fariseus, embora não devessem agir como eles. Isso é o que Jesus ordena.

Ligando os pontos

A Cátedra de Moisés representa uma autoridade de ensino, uma tradição que é levada adiante na figura do Papa, que se assenta na cátedra de Pedro quando ensina com autoridade. O uso da palavra “cátedra” aqui é significativo e se conecta com a tradição judaica da autoridade espiritual e ensino.

Mateus 23 aborda a crítica aos fariseus, que “atam pesados fardos nos ombros dos outros”, contrastando com Mateus 16, onde é dito: “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus”. Estas palavras – “atar” (Mt 23), “ligar e desligar” (Mt 16) – possuem a mesma raiz grega: desmeuousin — “atar”; deses — ligar; dedemenon — desligar. Esta conexão linguística é fundamental para entender o significado por trás destas palavras.

Mateus 23 também menciona “Vós fechais aos homens o Reino dos Céus”, e Mateus 16 afirma “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus”. Mais uma vez, observamos uma correlação entre as palavras gregas para “chaves” e “fechar”, ambas compartilhando a mesma raiz etimológica e semântica: kleíete — “fechais”; kleidas — “chaves”.

Será que tudo isso é mera coincidência? Ou será que São Mateus, inspirado pelo Espírito Santo, escolheu cuidadosamente estas palavras para expressar a autoridade que antes era dos judeus e que seria passada a Pedro? É notável que o professor Pitre traga um comentário protestante que ecoa esta compreensão:

“A opinião majoritária dos exegetas modernos… [é] que Pedro, como uma espécie de rabino supremo ou primeiro-ministro do reino, recebe em Mt 16, 19 a autoridade de ensino, ou seja, o poder de declarar o que é permitido (cf. o rabínico ‘sha’ra’) e o que não é permitido (cf. o rabínico ‘a’sar’). Pedro pode decidir, por decisão doutrinária, o que os cristãos devem e não devem fazer. Essa é a compreensão tradicional da Igreja Católica Romana, com a ressalva de que Pedro teve sucessores. Essa interpretação de ligar e desligar em termos de autoridade de ensino parece-nos correta… Pedro é a autoridade mestra (o professor autoritativo) sem igual”

W. D. Davies e Dale C. Allison, O Evangelho segundo São Mateus, 2:638-39.

Depois de séculos de debates, através do conhecimento das tradições judaicas, várias verdades sobre Pedro e sua autoridade têm sido descobertas e aceitas até mesmo por muitos estudiosos protestantes. Este estudo não só realça a rica tapeçaria linguística e teológica presente nas Escrituras, mas também reafirma a continuidade e coerência do pensamento católico ao longo dos séculos.

Primeiro-Ministro Sacerdotal

A relação inquestionável entre Mateus 16 e Isaías 22 foi reconhecida ao longo da história da Igreja, a tal ponto que, no domingo em que Mateus 16,18 é lido no Evangelho da Santa Missa, a primeira leitura, do Antigo Testamento, é sempre Isaías 22.

Para compreender plenamente essa conexão, devemos começar com uma leitura detalhada de Isaías 22, a partir do versículo 20:

“Naquele dia, chamarei meu servo Eliaquim, filho de Helcias. Eu o revestirei com a tua túnica, o cingirei com o teu cinto, e lhe transferirei os teus poderes; ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá. Porei sobre seus ombros a chave da casa de Davi; se ele abrir, ninguém fechará, se fechar, ninguém abrirá; eu o fixarei como prego em lugar firme, e ele será um trono de honra para a casa de seu pai.”

Is 22,20-23

Aqui, o relato de Isaías destaca o papel de Eliaquim como o “mordomo-chefe” do Reino de Israel. Ele representa uma figura equivalente ao primeiro-ministro moderno, e a passagem ilustra várias de suas responsabilidades e autoridades:

  1. Um Governo Paternal: Eliaquim é descrito como “um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá”. Seu papel é não apenas governar, mas cuidar do povo como um pai cuida de seus filhos.
  2. A Autoridade das Chaves: A frase “Porei sobre seus ombros a chave da casa de Davi” simboliza o poder e a autoridade conferidos a Eliaquim. As chaves têm uma conotação de controle e domínio, um poder que não pode ser desafiado por outros.
  3. O Poder de Ligar e Desligar: Esta expressão, “se ele abrir, ninguém fechará, se fechar, ninguém abrirá”, alude a uma autoridade inquestionável em tomar decisões vinculativas.
  4. Um Lugar de Honra e Primazia: O texto indica que Eliaquim será “um trono de honra para a casa de seu pai”, simbolizando uma posição de destaque e respeito.

A Dimensão Sacerdotal

O que torna a figura de Eliaquim ainda mais intrigante é a sua autoridade sacerdotal. O Dr. Pitre argumenta que essa autoridade não era apenas real, de governo, mas também sacerdotal. Por que?

O versículo 24 fornece uma pista: “Dele estarão pendentes todos os membros de sua família, os ramos principais e os ramos menores, toda espécie de vasos, desde os copos até os jarros”. Os vasos mencionados são aqueles usados para oferecer sacrifícios no templo, e a autoridade para oferecer esses sacrifícios pertencia aos sacerdotes.

Eliaquim, portanto, não era apenas Primeiro Ministro real, ele também ocupava um cargo sacerdotal. Ele tinha responsabilidades que se estendiam além do governo civil, alcançando a esfera religiosa. Essa dualidade de papéis pode ser comparada com a figura de Davi, que não era apenas rei, mas também sacerdote segundo a ordem do rei Melquisedeque.

A compreensão de Eliaquim como Primeiro Ministro e Sumo-Sacerdote serve como uma chave interpretativa para a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, bem como uma compreensão profunda da natureza do governo e da autoridade dentro da tradição judaico-cristã.

Uma tradição judaica

Em uma análise meticulosa da passagem de Isaías, começando no versículo 15 até o 22, o prof. dr. Pitre faz referência a uma tradição judaica contida no Targum (ou Targumim). Esta tradição oferece uma luz penetrante sobre como os judeus interpretaram a escritura em questão:

Vá até este guardião, a Sobna, que é nomeado [responsável pela casa], e você dirá a ele: O que você fez aqui e por que age dessa maneira, preparando um lugar para você aqui?” Ele preparou o seu lugar nas alturas [fixou a sua residência na rocha]. “Eis que o Senhor te lança fora, um homem poderoso é expulso, e a vergonha te cobrirá. [Ele tirará de você o turbante] e cercará você de inimigos como um muro circundante… ali você morrerá, e ali suas gloriosas carruagens retornarão envergonhadas, porque [você não guardou a glória da casa de seu mestre]. E eu vou te expulsar do seu lugar e te derrubar [do seu ministério]. E acontecerá naquele tempo que exaltarei meu servo Eliaquim, filho de Hilquias, e [vesti-lo-ei com o teu manto, e o cingirei com o teu cinto], e porei na sua mão a tua autoridade; e ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá. E porei [a chave do Santuário] e a autoridade da casa de Davi nas suas mãos; e [ele abrirá, e ninguém fechará; e ele fechará, e ninguém abrirá]. E eu o nomearei [um oficial fiel ministrando em um lugar duradouro… E todos os gloriosos da casa de seu pai confiarão nele, os filhos e os filhos dos seus filhos, desde os príncipes até os mais jovens, desde os sacerdotes que usam o éfode aos filhos dos levitas que seguravam as harpas].

Esta passagem culmina na expulsão de Sobna do seu lugar e em sua queda do ministério. Em contrapartida, o Senhor exalta seu servo Eliaquim, filho de Hilquias, vestindo-o com o manto e o cinto de Sobna, e lhe concedendo autoridade sobre Jerusalém e a casa de Judá. Esta autoridade se manifesta na posse da chave do Santuário e da casa de Davi, simbolizando uma autoridade incontestável e eterna. Eliaquim é nomeado oficial fiel, e todos confiarão nele, desde os príncipes até os mais jovens, dos sacerdotes aos levitas.

Dentro deste contexto, três elementos são de particular importância:

  1. A Mitra: A palavra grega para “turbante” traduz o aramaico “Mitra”, uma vestimenta usada pelos sumos sacerdotes no templo;
  2. A Faixa Sacerdotal: O “cinto” com o qual Eliaquim foi cingido representa a faixa sacerdotal, conforme explicado pelo professor Pitre;
  3. A Chave do Santuário: Esta não é uma chave comum; é a chave do Santuário, conferindo autoridade inquestionável sobre o templo.

Portanto, Eliaquim, como mordomo real e primeiro ministro do reino de Davi, assume uma posição notável como Sumo Sacerdote.

Implicações neotestamentárias

Este entendimento tem implicações profundas e revela a magnitude das palavras que Jesus dirige a Pedro. Ele não é meramente o líder de um grupo casual que Jesus chamou; ele não é sequer apenas uma figura real, mas uma figura sacerdotal.

Com a ascensão de Cristo aos céus como o eterno sumo sacerdote, oferecendo o eterno sacrifício no templo celestial, emerge a pergunta: Quem será o seu mordomo na terra? Quem cuidará da casa terrestre de Deus? Quem se tornará a pedra fundamental do novo templo? Quem guardará a casa? Quem cuidará da liturgia, dos vasos, dos copos, dos jarros, dos fiéis, com um cuidado paternal?

A resposta é clara e ressonante: é Pedro.

Este entendimento enriquece nossa percepção da fé e nos ajuda a apreciar o papel multifacetado e sagrado que Pedro desempenha na teologia Cristã. Ele é mais do que um líder; ele é uma figura sacerdotal, um guardião da fé, e um representante terrestre do divino.

A sucessão no AT e no NT

O capítulo 22 de Isaías ilustra o papel da sucessão, mostrando como Eliaquim ocupou o lugar de Sobna. Esta transição representa um padrão e um simbolismo que são muito profundos e enraizados na tradição judaico-cristã. O padre americano Thomas J. Lane revelou em um artigo que em outros livros da Bíblia é possível conhecer alguns dos servos que antecederam Sobna. Entre eles:

  • Ahishar: Durante o reinado de Salomão, conforme registrado em 1 Reis 4:6;
  • Arza: Durante o reinado de Asa, mencionado em 1 Reis 16:9;
  • Jotham: Durante o reinado de seu pai, Azária (também conhecido como Uzias em muitos livros bíblicos), registrado em 2 Reis 15:5;
  • Obadias: Durante o reinado de Acabe, em 1 Reis 18:3;
  • Outro funcionário não nomeado: Referenciado em 2 Reis 10:5.

A sucessão desses mordomos reais mostra que o papel não era apenas uma posição de prestígio, mas uma responsabilidade, e a transferência do ofício estava sujeita a um processo formal. Toda essa formalidade – o revestir da túnica, o cingir do cinto, a transferência dos poderes, a colocação das chaves sobre os ombros – indica um rito. Um rito de sucessão. Não era apenas uma mudança de poder, mas uma transferência solene e sagrada.

Da mesma forma, encontramos um paralelo notável na sucessão do Papa na Igreja Católica. É uma ideia que é muito razoável:

  1. Jesus estabeleceu Pedro como líder dos apóstolos: Quando a Igreja era ainda pequena, bem localizada, e as demandas de trabalho e liderança eram relativamente menores;
  2. A Necessidade de Liderança Firme: À medida que a Igreja avança, cresce e as demandas aumentam, a necessidade de uma liderança firme não diminui, mas aumenta muito mais;
  3. Transmissão da Liderança: Logo, é muito razoável admitir que a liderança de Pedro seja passada adiante, depois da sua morte.

A sucessão, tanto na tradição bíblica do Antigo quanto no Novo Testamento, não é apenas um fenômeno histórico, mas uma continuidade sagrada. Ela representa a transmissão de autoridade, dever e dignidade, ancorada na tradição e na fé.

Conclusão

À medida que exploramos os quatro aspectos que são implicados em Mateus 16, segundo as tradições judaicas, percebemos quão profundamente eles iluminam nosso conhecimento e compreensão sobre a natureza e a missão do Papado. Este exame mais atento revela uma riqueza cultural e espiritual que ressoa profundamente na fé católica.

O Prof. Pitre encerra enfatizando a necessidade de se ter orgulho de nossas raízes judaicas. Ele argumenta que devemos reconhecer que uma das razões pelas quais os primeiros judeus se converteram à fé da Igreja foi precisamente por causa dessas raízes. Essa ligação ancestral não só dá contexto à fé católica mas também enriquece nossa compreensão dela.

Para entender como os primeiros cristãos, até mesmo os apóstolos, aceitaram tão prontamente a autoridade de Pedro sobre a Igreja, precisamos reconhecer que as Palavras de Jesus refletiam uma série de implicações com as quais os judeus já estavam familiarizados.

Eles viram a Escritura com um olhar judaico, e reconheceram que toda essa estrutura de um reino, com um rei, um ministro que também é sacerdote, um sacerdócio, um templo e os sacrifícios, todas essas coisas que foram estabelecidas por Deus, não foram descartadas quando a Nova Aliança chegou. Pelo contrário, elas foram cumpridas em Cristo, em Pedro e nos Apóstolos, e, finalmente, na Igreja Católica.

Este entendimento nos conduz a uma perspectiva mais ampla, na qual podemos ver que os elementos da antiga tradição judaica não foram simplesmente abandonados ou substituídos. Em vez disso, eles encontraram sua plenitude e realização em Cristo e na Igreja. Eles foram transformados e elevados, trazendo significado e substância à Nova Aliança. Esta é uma visão que enriquece nossa fé e nos conecta mais profundamente às nossas raízes espirituais.

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