Não terá a Igreja Católica transformado o autêntico Cristianismo em instituição imbuída de doutrinas e práticas não evangélicas? A Tradição que a Igreja segue juntamente com a Bíblia, não é suscetível de erro e corrupção?
Cristo trouxe ao mundo a plenitude da Revelação sobrenatural, que Ele anunciou de maneira simples, acessível aos doze Apóstolos e a seus imediatos discípulos. Sobre a sua doutrina o Senhor fundou uma sociedade que é a Igreja destinada a viver neste mundo, atravessando os séculos.
Cristo, sendo Deus (cf. PeR 8/1957, qu 1), ensinou a verdade. Ora é óbvio que a verdade não muda, não se desdiz.
Por isto os ensinamentos de Cristo comunicados à Igreja não podem (no que eles têm de essencial) variar segundo as fases da história e a moda dos homens; devem conservar-se numa linha de fidelidade e continuidade a si mesmos: «O céu e a terra passarão ; as minhas palavras, porém, não passarão», dizia o Senhor aos Apóstolos (Mt 24,35). Da mesma forma, a Igreja, em sua estrutura essencial, não pode ser retocada, pois é obra da Verdade e, por conseguinte, participa da perenidade da Verdade.
Contudo a fidelidade dos ensinamentos e da Igreja de Cristo a si mesmos não é tal que fiquem alheios a qualquer evolução. Se isto se desse, a obra do Senhor poderia ser comparada a um organismo mumificado, o qual se conserva sempre igual a si por não possuir vida em si e por haver sido artificialmente subtraído ao influxo da vida que o cerca.
Cristo, porém, não quis instaurar um corpo petrificado neste mundo, mas uma sociedade viva, um corpo vivo, do qual Ele mesmo é a Cabeça, posta em contato contínuo com todo o organismo (cf. Col 1,18). E onde há vida, há desenvolvimento …
Mais ainda: leve-se em consideração que a Palavra de Deus foi dirigida por Cristo à inteligência do homem e nesta vive conforme as leis naturais da razão humana (seja lícito frisar: a verdade e as idéias têm sua sede primária na inteligência antes que num livro). Ora é evidente que o espírito humano não atinge logo de início, com a primeira reflexão, todo o conteúdo de uma proposição que lhe seja sugerida; ele costuma progredir paulatinamente deduzindo conclusão após conclusão de um principio dado. É natural, portanto, que a Revelação cristã tenha desdobrado lentamente suas virtualidades através dos séculos mediante o trabalho da inteligência humana. Assim entendido, o desenvolvimento não pode ser tachado de corrupção ou alteração, mas deve ser tido como tomada de posse mais completa da revelação original e como fenômeno bem conforme à vontade de Deus.
Com efeito, Cristo mesmo predisse o desabrochar lento da entidade que Ele fundou, comparando-a com um grão de mostarda…; este é um ser vivo, minúsculo, sim, em seus primórdios, mas portador de dinamismo tal que, uma vez colocado no seio da terra, ele cresce até se tornar árvore possante na qual se vão abrigar as aves do céu (cf. Mt 13,31-32 e Mc 4,26-28).
Assim se comprova a legitimidade, mesmo a necessidade, de um desenvolvimento vital da obra do Senhor. As proposições de fé vão sendo objeto da reflexão dos fiéis, que paulatinamente deduzem conclusões implicitamente nelas contidas ; vão sendo, em tempos posteriores, focalizadas diretamente verdades que outrora eram professadas obliquamente. Também certas manifestações de vida (novos ritos do culto sagrado, práticas de ascese, determinações jurídicas) vão sendo postas em vigor como expressões de uma compreensão mais e mais minuciosa das verdades da fé (assim os votos monásticos, o jejum quaresmal, a praxe das indulgências, etc.).
Firmes os princípios acima, é preciso reconhecer que se pode dar uma evolução aberrante, monstruosa. Torna-se necessário, portanto, indicar o critério que distingue a evolução genuína da aberrante, ou seja, indicar como se relacionam entre si fidelidade e desabrochamento dentro da Igreja.
Note-se que a autêntica evolução do vivente se faz, deixando intata a estrutura ou a essência do respectivo sujeito; o grão de trigo, ao se desenvolver, não se transforma em milho; o ser vivo assimila elementos extrínsecos, não quaisquer, mas somente aqueles que não o desvirtuem, elementos que o vivente incorpora a si e reduz às leis de vida do seu próprio organismo. Será preciso mesmo reconhecer: para que se conserve a vida, torna-se indispensável o processo de metabolismo, isto é, a assimilação de elementos novos homogêneos e a eliminação de elementos caducos, que se tornariam nocivos se fossem conservados. Pois bem ; o que Deus realiza num ser vivo, Ele o efetua analogamente na sua Igreja. — Não se conceba, portanto, o desenvolvimento desta a semelhança do de uma bola de neve, que, ao rolar pela montanha, vai aglutinando à sua superfície elementos de todo e qualquer tipo, os quais só contribuem para desfazer a face e o significado originários da bola de neve. Considerem-se, antes, as imagens, sugeridas pela Sagrada Escritura, da semente que cresce, e do corpo vivo que se desenvolve.
O S. Evangelho mesmo nos diz que a natureza humana de Jesus, como que prefigurando o que se daria com o Corpo Místico, conheceu seu desenvolvimento paulatino: «O menino crescia em sabedoria, em idade e em graça diante de Deus e dos homens» (Lc 2,52). Este texto não quer dizer que a Encarnação só se tenha realizado por etapas, mas, sim, que a estrutura divino-humana de Cristo só aos poucos deu seus frutos humanos. — Ora lembremo-nos de que a Igreja é Jesus Cristo continuado até hoje de forma mística, misteriosa, mas muito real…
A evolução de um vivente, para a qual apelávamos, é orgânica e sadia, porque dirigida por um princípio interno, indefectível, o qual regula o respectivo metabolismo. Sendo assim, aprofundando a comparação bíblica, admitiremos que também na sua Igreja, no seu Corpo Místico, Cristo quis infundir um princípio vital indefectível, capaz de orientar o desabrochar da vida da Igreja; esse principio interno é o Espírito Santo, chamado, desde remota antiguidade, «a alma do Corpo Místico». Vão teria sido ao Senhor fundar a Igreja sem lhe dar esse Guia que garantisse a fidelidade da mesma no processo de evolução (cf. Jo 14,16-26; 15,26s; 16,13). E, notemos bem, em caso algum será lícito admitir que o Espírito Santo permita corrupção ou deterioração do que é essencial (isto é, do dogma e da estrutura hierárquica) na Igreja. Tal corrupção deveria ser atribuída ao próprio Deus… O Espírito Santo, portanto, faz que a Tradição cristã (em assuntos de fé e moral) não sucumba às vicissitudes que ameaçam contaminar qualquer tradição ou obra humana. Aquilo que a Igreja, assim vivificada, declara ser essencial em sua doutrina e em sua vida, é, de fato, essencial (as explicitações do dogma que ela reconhece como autênticas, são, de fato, autênticas) ; de outro lado, acidental é tudo aquilo que a Igreja aponta como tal, e falso (em teologia e moral) é tudo aquilo que ela tem por falso.
Parece importante agora salientar que não há instância ulterior à qual se possa recorrer para provar a infalibilidade do magistério da Igreja; esta é uma das proposições básicas sobre as quais o Senhor quis fundar a sua obra. Poderíamos apenas ilustrá-la por via negativa: se Cristo não tivesse dado à Igreja um magistério infalível, vã teria sido a Redenção, pois os discípulos de Jesus, entregues exclusivamente ao seu bom senso ou à sua piedade, não teriam conservado a mensagem do Evangelho… ; haja vista o que a partir do séc. XVI acontece no movimento encabeçado por Lutero: movimento que, rejeitando o magistério vivo para ficar com a Escritura apenas, em quatro séculos já deu origem a cerca de oitocentas seitas, que, apesar de esforços sucessivos (cf. o Ecumenismo), não se conseguem unir entre si, antes tendem a ulteriores divisões (cf. o «Fundamentalismo» contemporâneo).
Das idéias acima ainda se deve mencionar uma conclusão importante: a fé na Encarnação do Filho de Deus é inseparável da fé na Igreja; ninguém pode acreditar na veracidade e santidade de Cristo sem crer na veracidade e santidade da Igreja, isto é, daquela sociedade que ininterruptamente através dos séculos (através de 55 gerações) se prende ao Senhor Jesus.
Esta afirmação se pode comprovar por um fato histórico assaz significativo: o estudioso anglicano John Newman, no século passado, abraçava o pressuposto de que a doutrina católica, com o seu desdobramento sucessivo, implicou em alteração e corrupção do Cristianismo primitivo. Desejoso, porém, de professar mais conscientemente esta tese, pôs se a estudar minuciosamente os escritos dos Padres, ou seja, os documentos da Tradição a partir dos primeiros séculos. E justamente por meio de tal estudo chegou a conclusão oposta à tese que ele supunha: o que Newman julgava ser corrupção se lhe impôs como desenvolvimento legítimo e necessário; o estudo direto dos textos bastou para lhe evidenciar a autenticidade da Tradição de que vive o Catolicismo; em consequência, aos 9 de outubro de 1845 Newman foi admitido na Igreja Católica.
À guisa de comentário, poderíamos acrescentar que muitos preconceitos contra a Igreja de Cristo se dissipariam igualmente, se aqueles que os propalam fossem averiguar com que fundamento levantam tais objeções!