Vai, a seguir, reproduzida em versão portuguesa a entrevista concedida por Mons. Jean Bonfils, Bispo de Nice (França), ao periódico “Les Nouvelles Religieuses” de 5/4/02. Apresenta os argumentos que demonstram a incompatibilidade entre fé católica e Maçonaria.
A revista “Les Nouvelles Religieuses”, edição de 5 de abril de 2002, publicou o texto de uma entrevista concedida por Mons. Jean Bonfils, Bispo de Nice (França) a respeito da Maçonaria; mostra a incompatibilidade entre a fé católica e os princípios filosóficos da Maçonaria. Atende assim a uma pergunta frequente, pondo em relevo aspectos importantes da questão.
Sr. Bispo, como prelúdio a esta entrevista, eis a questão que nos interessa diretamente: pode alguém ser católico e simultaneamente pertencer a uma Loja Maçónica?
Essa pergunta, frequentemente colocada, pede uma resposta tão clara quanto possível. É precisamente essa resposta que intenciono dar. Ninguém pode ser simultaneamente católico e maçom. A incompatibilidade decorre de uma mensagem do próprio sr. Paul Gourdeau, antigo Mestre do Grande Oriente da França:
“O que importa compreender, é que o combate travado atualmente condiciona o futuro, especialmente a evolução da sociedade. Tem fundamento no confronto de duas culturas: uma baseada no Evangelho e a outra baseada na tradição histórica de um humanismo republicano. Essas duas culturas são radicalmente opostas uma à outra: ou a verdade é revelada e intocável, admitindo um Deus na origem de todas as coisas; ou a verdade encontra seu fundamento nas construções do Homem sempre sujeitas a novos questionamentos porque perfectíveis ao infinito. A respeito dessa perpétua batalha reiniciada com vigor há algum tempo, dizia Malraux que o século XXI seria religioso ou nada seria. É a essa afirmação, a esse desafio que nos compete responder” (Humanisme 198. outubro 1990).
Se assim é, não estranhemos os termos da Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, datada de 26 de novembro de 1983:
“Perguntaram se o juízo da Igreja a respeito das Lojas Maçônicas mudou, visto que no novo Código de Direito Canônico não são explicitamente mencionadas, como no antigo.
Esta Congregação responde que tal fato é devido aos critérios adotados pela Comissão Redacional, critérios aplicados também a outras associações deixadas no anonimato porque incluídas em categorias mais amplas. O juízo negativo da Igreja sobre as Lojas Maçônicas fica sendo o mesmo, porque os princípios da Maçonaria foram considerados incompatíveis com a doutrina da Igreja; a matrícula nessa Loja continua desaprovada pela Igreja. Os fiéis que pertencem a Lojas Maçônicas estão em pecado grave e não podem ter acesso à sagrada Comunhão.
Às autoridades eclesiásticas locais não compete pronunciar-se sobre a índole dessas associações maçônicas em sentido que implique contradição a quanto foi atrás afirmado.
O Sumo Pontífice João Paulo II, na Audiência concedida ao Cardeal Prefeito, aprovou esta Declaração” (Documentation Catholique 1/04/1984).
Todavia não se pode negar que a Maçonaria tem origens religiosas e pessoas honestas, espiritualistas e humanistas lhe deram adesão e encontram aí razões para viver.
Não tenho o propósito de julgar as pessoas. Também não é este o propósito da Igreja, pois só Deus julga os corações. Interessa-me apenas fazer brilhar o esplendor da verdade, da qual não sou o dono, mas apenas o servidor. Trata-se de esclarecer a consciência dos cristãos que, em nome de uma abertura do espírito, assaz simplória, se deixam arrastar para situações ambíguas. Acrescento que a fé não é apenas um código de boa conduta para gente humana – o que já seria muita coisa. O Evangelho que a fé professa é outra coisa e muito melhor.
Na verdade a Alta Idade Média conheceu no Ocidente corporações de profissionais que se organizavam como confrarias, em que o valor profissional era transmitido por opção e iniciação. Os pedreiros (maçons, em francês, construtores de igrejas, catedrais e castelos) em breve constituíram uma profissão à parte. Os segredos profissionais da arte de construir eram muitos. Os canteiros de obra eram empreendimentos enormes; a proteção da Igreja a eles se estendia – o que facultava aos pedreiros, arquitetos e chefes de canteiro escapar à servidão dos senhores. Esses pedreiros tornaram-se franco-pedreiros (franco-maçons), isto é, livres e independentes dos senhores feudais. Dessa Maçonaria diz-se que era operativa. Dela originou-se, a partir do século XVIII, uma Maçonaria especulativa ou filosófica, isenta das obrigações do trabalho material e introduzida na França pelos ingleses em 1725 e 1726.
Seria interessante sabermos um pouco mais o que torna incompatíveis o ser católico e o ser maçom.
Quero que fique bem claro tratar-se de incompatibilidade entre os princípios da Maçonaria e os da fé católica.
Sim. Mas há quem objete que a Maçonaria afirma ser essencial não impor algum princípio, algumas posturas filosóficas ou religiosas que onerem os seus associados. Ela visa simplesmente a reunir, para além das diversas religiões e cosmovisões, homens de boa vontade, tomando por base os valores humanistas que todos aceitam.
Respondo, antes do mais, que, para um cristão, não existe “o além de todas as religiões e cosmovisões do mundo”. Há uma só visão do mundo, unificada em Jesus Cristo, termo final dessa história humana, ponto para o qual convergem os anseios da história. Ele é a plenitude das aspirações de todos os corações conforme o Concílio do Vaticano II (Constituição Gaudium et Spes 45). Existe uma única Sabedoria, que é o Cristo (1 Cor 1, 24), e contrariamente ao que dá a entender Henri Rochais, membro da Grande Loja de França, em Actualité des Religions março 2002, p. 4. Essa visão da humanidade e do mundo, esse ato de fé não excluem em absoluto o diálogo inter-religioso e uma colaboração com os homens e as mulheres de boa vontade a fim de promover valores humanistas, valores aliás que deveriam ser de antemão bem definidos para não nos deixarmos tomar de emboscada pela índole sedutora dos chavões da moda. Mas, para dialogar e colaborar, é de capital importância que cada um saiba quem ele é.
O que V. Excia diz exprime a identidade cristã, mas deixa aberta a questão da incompatibilidade.
Segundo um estudo publicado em UOsservatore Romano aos 23 de fevereiro de 1984 a incompatibilidade decorre de vários elementos.
As Lojas de maçons e suas obrigações morais apresentam-se sob forma de símbolos que têm significado profundo; o esquadro, o compasso, o martelo, o fio a prumo e outros símbolos universais cósmicos ou religiosos não são inocentes. Contribuem para introduzir um universo ideológico sedutor, que relativiza o ser cristão, como se fossem a institucionalização de uma verdade mais ampla e inatingível. Como já foi dito, não é possível a um fiel católico viver seu relacionamento com Deus segundo duas modalidades, distinguindo uma forma humanística supraconfessional e uma forma interior cristã. O cristão não pode sustentar duas espécies de relacionamento com Deus, nem exprimir suas relações com o Criador através de símbolos de dois tipos. Para um cristão, a imagem de Deus é Jesus Cristo. Não há outra. Não basta, é mesmo impossível dizer: “Creio em Jesus Cristo e sou maçom”. Afirme adesão à verdade de Deus revelada na Igreja não é uma simples pertença a uma instituição considerada como forma particular de exprimir a orientação do homem para Deus, ao lado de outras formas igualmente possíveis e válidas. É elegante hoje em dia dizer que a verdade não pode ser conhecida. Esta opinião caracteriza nossa época e vem a ser o elemento essencial da crise que a afeta. A ideologia subjacente à Maçonaria cultiva essa opinião ou, ao menos, leva a ela. É preciso ser inconsciente ou cego para não o perceber.
Seria possível agora resumir em poucas palavras os elementos que justificam a afirmação categórica do início do nosso diálogo?
Digamos: Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida, segundo São João 14, 6. Portanto, Ele é a verdade definitiva e universal. Ninguém O possui, recebemo-lo. Nunca alguém O conhecerá suficientemente; todos são chamados a conhecê-Lo, amá-Lo e servir-Lhe sempre mais. Nenhuma pesquisa ideológica ou filosófica pode substituir-se a Ele para dar sentido à vida.
O Deus de Jesus Cristo, Deus mesmo, não é o Grande Arquiteto do universo. Ele é amor. Ele armou sua tenda entre nós, homens, no tempo e na história. Ele falou pelos Profetas e, no período em que nos achamos, por seu Filho Jesus Cristo. Esse Jesus deu aos homens uma luz verdadeira proveniente das profundezas do seu amor. A Igreja transmite fielmente a sua Palavra. A plena verdade sobre Deus e o homem não pode ser atingida unicamente pela razão. É necessária uma revelação, aquela que nos é transmitida por Jesus Cristo.
O homem entregue às suas luzes e às suas forças necessita de ser salvo. É incapaz de converter seu coração e encontrar a felicidade por si mesmo. A salvação lhe é dada pelo Deus de Jesus Cristo, o que inclui a reafirmação da sua liberdade ferida pelo pecado.
A verdade sobre Deus e o homem não é objeto de segredo algum. Tudo está dito em Jesus Cristo. Uma sociedade que cultiva o segredo é suspeita de o fazer com finalidades espúrias, dúbias, equivocas, para não dizer, desonestas. Sem dúvida, não estou falando do segredo profissional nem da justa reserva que se deve observar a respeito da vida particular de cada pessoa, mas refiro-me ao segredo dos maquinadores e mafiosos. O único segredo moralmente admissível é o que diz respeito à liberdade e à vida privada das pessoas.
Há, porém, um segredo que aliena a nossa liberdade: é o que torna o indivíduo prisioneiro do grupo que compartilha o mesmo segredo. O primeiro é compatível com a verdade; o segundo está ligado à mentira.
Dizem que há maçons pertencentes especialmente à Grande Loja Francesa, de rito primitivo, entre os cristãos, nas associações da igreja, nas confrarias e no pessoal docente católico. Que pensar a respeito?
Não me informei a propósito junto às instâncias adequadas, nem o farei. Não tenho mais confiança na Loja Escocesa do que nas outras, pela simples razão de que certa vez solicitei a um dos responsáveis dessa Loja que me fornecesse um manual ilustrativo da ideologia da Loja. Ora há um ano que o espero, embora tenha renovado entrementes o meu pedido.
Por conseguinte que dizer a tais pessoas senão as palavras do profeta Elias: “Até quando claudicareis das duas pernas? Se Javé é Deus, segui-o: se é Baal, segui-o” (1Rs 18, 21), e os dizeres de Jesus: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6, 2).
V. Ex.cia falou principalmente de incompatibilidade ideológica, mas nada disse sobre as sanções que o Direito Canônico prevê para os maçons. Que há realmente?
Respondo dizendo, antes do mais, que o importante não é a sanção como tal, mas a razão pela qual a sanção é imposta. Em matéria de sanção, sem mencionar explicitamente a Maçonaria, mas podendo eventualmente abrangê-la, eis o que prescreve o Código de Direito Canônico:
“Quem se inscreve numa associação que conspira contra a Igreja, será punido com justas penas, e quem nela desempenha papel ativo ou a dirige será punido com o interdito” (cânon 1374).
Também é preciso não esquecer a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé atrás citada.
De quanto foi dito percebe-se que a incompatibilidade entre a fé católica e a Maçonaria não é questão meramente disciplinar, mas decorre da razão iluminada pela fé e da vontade de manter um mínimo de coerência na vida cristã. A experiência ensina que a coerência é flor rara sobre a face da terra.
Somente o amor de Deus manifestado em Jesus Cristo e derramado em nossos corações pelo Espírito Santo pode estabelecer e manter essa coerência.
Comentando
As declarações de Mons. Bonfils põem em relevo três pontos importantes:
1) A incompatibilidade entre Catolicismo e Maçonaria não é questão de boa ou má vontade, mas deve-se à cosmovisão que cada qual professa: o Evangelho constrói o homem e o mundo em função do Transcendente, ao passo que a Maçonaria se detém num humanismo que está sempre a questionar.
Esses dois modos de ver são radicalmente diferentes entre si e, por vezes, antagônicos, de modo que a Maçonaria já perseguiu a Igreja na América Latina, inclusive no Brasil, onde foram presos os Bispos D. Vital, de Olinda – Recife, e D. Macedo Costa, do Pará. A Maçonaria contrária à Religião e é dita “irregular”. As outras Lojas constituem a Maçonaria regular.
2) A Maçonaria afirma que não contraria a Religião, porque vai além das religiões encontrando todos os homens no plano do humanismo por todos aceito. Esta pretensão é falsa, pois o cristianismo é globalizante. Ele ensina a Verdade em termos definitivos; não é apenas uma tentativa, entre outras, de alcançar a Verdade inatingível. O não saber (“não sei”) pretende ser humilde, quando muitas vezes é tímido e covarde.
3) Uma sociedade secreta é algo de suspeito.