A moralidade dos Atos Humanos
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Fontes primárias
1. Textos de títulos idênticos no site do Opus Dei;
2. §§1690 – 1802 do Catecismo da Igreja Católica.
Na última aula terminamos a segunda parte do catecismo, que trata dos sete sacramentos. Vimos que eles são meios de graça, o que quer dizer que por meio deles Deus nos concede dons espirituais específicos para que vivamos cada aspecto da vida em harmonia com ele.
Mas o que significa viver em harmonia com Deus ou, como se diz, de acordo com Sua vontade? É disso que trata a terceira parte do catecismo, chamada A Vida em Cristo.
Os primeiros pontos exigidos são compreender o que significa agir moralmente, ser livre, medir o próprio comportamento pela consciência e, por último, como formar a própria consciência. Todos eles têm sua raiz em uma questão fundamental: a alma que existe em cada homem. É no problema da alma que a aula de hoje se centrará. Já havia falado disso na primeira aula do curso, mas o foco hoje será diferente.
Enquanto lá a alma foi vista como a parte do homem que o permite conhecer a Verdade, aqui iremos além. Conhecer a Verdade é um chamado a obedecê-la. É aqui que começa a investigação sobre o agir bem.
A existência da alma
O exercício filosófico que funda a própria filosofia e a vida moral é o de descoberta da alma humana. É fácil aceitar que temos uma alma quando crescemos em uma cultura – e, ainda mais, em uma Igreja – que a todo momento nos lembra de que somos feitos de corpo e alma. O problema é que, se nos perguntarem o que isso significa, não saberemos apontar as realidades simbolizadas pelas palavras, a menos que tenhamos tido uma experiência pessoal com a existência da alma. E, para isso, de nada adianta repetirmos o Catecismo.
Essa experiência, que é pelo menos tão antiga quanto a filosofia, está descrita, também, na Encíclica do Papa Leão XIII Libertas Praestantissimum (Excelentíssima Liberdade).
O exercício é o seguinte: pensem em um animal qualquer. O que o motiva a agir? O que faz com que ele coma, beba, ande, pule, reproduza-se et cetera? O animal não delibera, não raciocina. Ele não decide fazer uma coisa ou outra depois de considerar as possibilidades. Ele age com base, fundamentalmente, em duas coisas: no seu instinto corporal e na sua memória.
Minha noiva tem duas cachorrinhas, e elas sabem que alguns objetos estão relacionados a certos benefícios que receberão. Toda vez que veem a própria coleira, correm para a porta da cozinha, de onde sempre saem para passear; quando veem alguém se dirigir com uma panela ou com um saco de pão para a mesa, sabem que terão a chance de comer alguma migalha; quando algum de nós se senta no sofá, correm para nossas pernas, pois sabem que receberão algum carinho.
O que é tudo isso? Elas lembram que receberão algum prazer corporal quando alguma dessas realidades aparece, e porque isso já se tornou corporalmente habitual, elas esperam que o passeio, a queda de uma migalha ou o carinho aconteça. Mas elas não decidem esperar. Elas se guiam pelo que é corporalmente prazeroso, não por uma decisão que segue uma deliberação.
Agora olhem para dentro de cada um de vocês. Percebam que, em nós, também existe uma parte que se guia pelo prazer corporal, pelos sentidos. Nós também temos hábitos, bons ou maus. Nós também buscamos aquilo que é agradável e rejeitamos aquilo que é desagradável.
Porém, isso não é tudo: percebam que, em nós, além desse instinto sensorial, existe uma outra coisa, mais sutil, porém inegável. Existe um outro princípio de ação, um princípio que nos permite escolher – em maior ou menor grau – entre seguir nossos instintos ou não. Ele existe em nós mesmo que não estejamos habituados corporalmente a deliberar longamente sobre nossos atos. Ele é uma parte constitutiva e inegável da nossa natureza.
Esse princípio, que no momento nós apenas percebemos que existe, é o que se chama de alma. Por causa dele, nós não agimos como os animais – não apenas. É ele que nos confere a característica fundamental do agir humano: a capacidade de escolha entre duas ou mais possibilidades de ação ou de omissão.
Em outras palavras, é a existência da alma que nos permite ter liberdade. Investigações mais profundas mostrariam que a alma não é feita da mesma substância do corpo, mas é espiritual. E que o intelecto e a vontade são partes da alma, que têm a capacidade de dominar sobre o nosso corpo, mudando até mesmo nossos hábitos mais enraizados e, em alguma medida e com muita dificuldade, nossas sensibilidades aos bens corpóreos do mundo.
Mas é suficiente para nossa investigação perceber o seguinte: a liberdade humana só pode ser conhecida enquanto realidade na medida em que percebemos em nós a existência de dois princípios de ação, o corporal e o espiritual, e na medida em que o espiritual domina ou pode dominar sobre o primeiro, permitindo, assim, que nós escolhamos agir ou não segundo nossos sentidos instintivos.
Vejam que, nisso tudo, não estou falando ainda de bondade ou maldade. Existem instintos bons e maus, assim como decisões boas ou más. O ponto aqui é que a liberdade é possível para nós, homens, pelo fato de termos uma alma espiritual, que pode não se guiar pelas seduções do mundo, e isso permite que possamos escolher como vamos agir, ao invés dos animais.
O ponto da maldade e da bondade das nossas escolhas decorre dessa experiência fundamental com a estrutura do ser humano e da própria realidade. Importa perceber que, como eu disse, a vontade é parte da alma, e não do corpo. Isso significa que, embora seja informada pelos sentidos – pois a alma mesma o é –, a vontade não se guia por eles necessariamente.
Ao contrário, conforme ensina a filosofia clássica e medieval, a vontade é guiada pelo bem conhecido pela razão. Por uma argumentação que, penso eu, não teremos tempo de investigar aqui, é possível compreender que a razão não pode conhecer o mal, pois ele não existe. Ela pode conhecer a ausência de bem, que sempre existe em algo que já é bom. E, desse modo, a vontade nunca poderá se dirigir para o que é mau por uma decisão racional.
Em outras palavras, a nossa capacidade de escolher as nossas ações é sempre uma capacidade para escolher o bem. Por isso se diz, tradicionalmente, que não existe liberdade para escolher o mal, pois, quem age mal, não age de acordo com a própria razão, logo age contra a própria liberdade, escolhendo ser escravo.
Esse é o conteúdo fundamental da liberdade humana. É isso que o Papa Leão XIII explica na encíclica que citei antes, em conformidade com toda a tradição filosófica antiga e medieval. Sabendo que a liberdade existe e que pode ser conhecida como um aspecto da realidade, podemos agora pensar o que significa viver de acordo com a vontade divina.
A livre obediência
Percebam que, uma vez que cada um viu a existência da própria alma em si, não há mais como viver uma vida puramente corporal. Quem, depois de ter visto a Verdade, escolhe rejeitá-la, escolhe se aprisionar. Em outras palavras, “Omnis qui audit verba mea haec, et non facit ea, similis erit viro stulto, qui aedificavit domum suam super arenam“: todos que ouvem estas minhas palavras e não as obedecem, são como os homens insensatos que edificam suas casas sobre a areia (Mt. 7, 26).
Quem não serve às verdades conhecidas, age como o primeiro pecador, Satanás, que foi o primeiro a negar obediência à própria Verdade.
O problema fundamental do pensamento moderno – pois existe mais de um – é a recusa em reconhecer o que é verdadeiramente a liberdade humana, e que apenas se guiando pelo bem conhecido na razão o homem pode ser verdadeiramente livre. Esse bem, em última instância, é o próprio Deus, desde Platão e Aristóteles reconhecido com Sumo Bem, como Bem último e mais elevado.
Ora, sem o conhecimento do bem como guia da vontade e da ação, o que resta? Ou uma redução do homem aos seus instintos ou a relativização do bem, que pode agora ser considerado como tudo que o homem desejar. É isso que fizeram muitos pensadores modernos: reduziram o homem a um animal, ao lobo dos outros homens, como disse Hobbes.
A razão, que não serve mais para conhecer o Sumo Bem, serve apenas para planejar os muitos caminhos de buscar a realização dos desejos instintivos do homem. Se o homem tem uma razão meramente técnica, para onde vai sua liberdade? Se antes, como vimos, liberdade significava a capacidade de, apesar dos estímulos sensoriais, escolher o que é bom, agora liberdade não passa da possibilidade de buscar seus próprios desejos sem encontrar impedimentos externos: a capacidade de buscar aquilo que é agradável ao corpo.
Percebam que o sentido do termo foi completamente invertido. Agora ele significa o exato oposto do que antes. E percebam também como a experiência fundamental que antes servia para perceber a existência da alma e da liberdade desapareceu. Tudo que resta agora é a experiência sensorial – é nesse sentido que, desde então, toda a ciência e a filosofia têm usado o termo “experiência”.
A ação moral do homem se insere aqui, quando ele reconhece a capacidade que sua alma tem de conhecer aquilo que é a Bom, Justo, Belo e Verdadeiro e decide – pois é necessário decidir – se guiar por esse conhecimento tão bem quanto puder, moldando sua vida de acordo com o quanto conhece da Verdade.
É aqui que os primeiros princípios da Lei Natural podem ser conhecidos conscientemente e formulados em sentenças (processo chamado de sinderese por Santo Tomás de Aquino). O exemplo mais evidente é o de que é preciso “buscar o bem e evitar o mal”. Todo homem que reconhece em si a capacidade de conhecer a verdade atesta a veracidade dessa sentença.
Aqueles que não reconhecem em si esses princípios tomam, comumente, o “buscar o bem” por buscar o que é agradável ou prazeroso ao corpo, e o “evitar o mal” por evitar o que é desagradável – mas é bem possível que, dada a inversão completa que a perversão moral pode causar nos sentidos, que alguém tenha prazer na dor.
O ponto é que o conhecimento da alma e das suas faculdades é a única base sólida para uma moral que se fundamente no bem. E que, assim como é possível perverter- se, é possível elevar-se, educar-se e passar a agir de acordo com o bem. Isso se dá por um processo longo e árduo, e sem muitas chances de sucesso sem o auxílio da Graça divina, de formação da consciência.
Formar a consciência não significa apenas ter ciência da retidão ou imoralidade de certos atos, mas o processo intelectual de conhecer o que é bom para o homem e moral de agir de acordo com essas verdades, corrigindo os vícios pelo cultivo das virtudes opostas.
É daqui que continuaremos na próxima aula.
Prof. Rafael Cronje Mateus
Dada no Centro Cultural Alvorada, no dia 15 de setembro de 2021.