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Comentário à D. Francisco de Mendoza e sua doutrina sobre o Corpo Místico

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Por: J. Blazquez

Francisco de Mendoza, nascido em 1508, segundo de sete filhos, iniciou seus estudos na Universidade de Alcalá, então recentemente fundada pelo Cardeal Cisneros. Dali passou à de Salamanca. Teve como mestre de língua grega o célebre Pinciano. Na Universidade Salmantina terminou seus estudos com o grau de ‘Doutor em Ambos os Direitos’. Sabemos que lecionou publicamente língua grega nas escolas de Salamanca e João Hentenio, seu contemporâneo, pondera “sua variada e profunda erudição, seu julgamento certeiro, seu engenho sutil e quase divino, e sua memória tenaz”.

Assegura-nos também que era versadíssimo na língua hebraica e conhecedor profundo de todos os segredos da Filosofia e da Teologia Escolástica. A pedido do Imperador Carlos V foi nomeado bispo de Cória em 1533. Em 1544, não sem vencer sérias dificuldades, Carlos V obteve-lhe também o chapéu cardinalício. Em 1545 o mesmo imperador nomeou Mendoza seu teólogo no Concílio de Trento, mas, não obstante esta indicação, devido a vários contratempos, Mendoza não pode participar efetivamente do Concílio. Em 1550 foi nomeado bispo de Burgos e em 1566 designado arcebispo de Valença de cuja sede, porém, não chegou a tomar posse. Entregou sua alma a Deus em Arcos, em 28 de novembro de 1566, aos sessenta e seis ou sessenta e oito anos de idade, de morte quase repentina.

Muito íntimas foram suas relações com a Companhia de Jesus. Foi amigo pessoal de Santo Inácio de Loyola, a quem conheceu entre 1527 e 1528 em Salamanca. Tornou-se protetor da Companhia de Jesus em 1547 quando se iniciaram os ataques de Melchor Cano e outros teólogos contra os Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Nomeado bispo de Burgos, suplicou a Santo Inácio que fundasse um colégio da Companhia nesta cidade; fundado o colégio, São Francisco de Bórgia esteve pregando em sua diocese no ano de 1553.

Desde jovem começou a reunir livros selecionados, com os que formou uma excelente biblioteca, sobretudo de autores gregos, a qual logo, depois de sua morte, como costuma acontecer com os bens dos eclesiásticos, foi mal vendida e se dispersou. Como bom humanista rodeou-se dos eruditos mais célebres de sua época e favoreceu a publicação de várias obras de valor. Mandou traduzir a Física Hebraica do rabino Abben Tibon e pagou a impressão do De Adoratione in Spiritu et Veritate de São Cirilo de Alexandria.

Seu modo de vida não foi o mais propício para escrever. De sua produção literária direta, o mais abundante são suas cartas, além da obra “Sobre a Unidade Natural com Cristo, que os fiéis alcançam pelo digno recebimento da Eucaristia”.

Esta obra possui um caráter polêmico. Foi dirigida, em sua raiz, contra o teólogo protestante Ecolampádio, que negava a presença real de Cristo na Eucaristia, afirmando que a Eucaristia nada produz que o Batismo também não produza. Se, porém, a Eucaristia contivesse a presença real de Cristo, que o Batismo não contém, deveria produzir algum efeito a mais que o Batismo não produz. Como não o produz, nega-se com isto a presença real de Cristo na Eucaristia.

Negando os ensinamentos de Ecolampádio, Mendoza rejeita precisamente o termo médio de sua argumentação e apresentou a tese oposta, dizendo que a Eucaristia possui um fruto especial e específico, que o Batismo não possui, que não é a união natural e corporal com Cristo. Daqui procede o título da obra: “Sobre a verdadeira e natural unidade com Cristo, que os fiéis alcançam pela digna recepção da Eucaristia”.

A obra consta de cinco livros, Nos dois primeiros Mendoza discute se existe uma união natural entre nós e Cristo. No terceiro, o que seja esta união natural. No quarto, determina “a causa por graça da qual o próprio Jesus Cristo tão intimamente uniu a si também corporalmente aqueles que uniu pela reta fé e amor pela piedosa refeição dos sagrados mistérios”. Finalmente, no livro quinto, explica que a carne de Cristo é uma espécie de semente que prepara nossa carne para a incorporação e a imortalidade.

Com repetida insistência Mendoza declara que esta doutrina não é sua, apesar de ser impugnada por alguns de seus contemporâneos, mas que está contida nas Sagradas Escrituras, nos Santos Padres, no Magistério da Igreja e nos escritos dos teólogos. De todas estas fontes cita testemunhos abundantes e não se limita apenas a citá-los, como também faz a exegese do texto e do contexto e faz muitas observações atinadas sobre o valor probativo e os meios interpretativos para com eles poder se chegar a uma conclusão certa.

A ocasião próxima que motivou o Cardeal a escrever este tratado nos é narrada pelo Padre Vazquez, um jesuíta seu contemporâneo: “Quarenta anos atrás”, escreve este padre, “o Cardeal Mendoza, Bispo de Burgos, não menos ilustre pelas letras do que pelo sangue, pregava um sermão ao povo em que ensinava que os fiéis pela digna recepção do venerável Sacramento da Eucaristia, não apenas alcançavam uma união de caridade e afeto com Cristo, mas também uma real, substancial e natural união de sua carne com a carne dEle. Esta afirmação pareceu a não poucos teólogos de seu tempo pouco de acordo com os princípios de nossa fé. Por esta causa o mesmo Cardeal se viu obrigado a escrever um livro para defender suas afirmações, confirmando-a abundantemente com o testemunho dos santos”.

O mesmo Cardeal Mendoza menciona estas impugnações e nos assinala esta mesma ocasião próxima de seu tratado ao delinear o estado da questão:

“Aquilo que é colocado em dúvida por muitos eruditos é se além da união espiritual, pela qual os que dignamente recebem o corpo de Cristo se unem a Ele, haja também outra união natural e substancial entre a mesma carne de Cristo e a carne daquele que dignamente a recebe”.

Não se sabe a data exata em que foi pronunciado este sermão, como nem tampouco o lugar. Conservaram-se, na Biblioteca Nacional de Madri, alguns apontamentos do Cardeal cuja redação mostra que se trata de uma resposta provisória a objeções recentemente levantadas, e que podemos chamar de “Esquema de seu Futuro Livro”. Esta resposta provisória deve ter sido escrita entre 1560 e 1562; não conseguindo, através dela, contentar os eruditos que levantavam dificuldades contra as afirmações de Mendoza, decidiu-se o Cardeal a escrever seu livro por volta do ano de 1563 ou 1564, dando-o por terminado em 1566.

No seu livro o Cardeal não trata duramente nem de modo sistemático da doutrina do Corpo Místico. Encontram-se, a este respeito, numerosas alusões, às vezes grandes, mas esporádicas, esparramadas por toda a sua obra, sem ligação entre si. Em função do objetivo de sua argumentação, o autor acumula argumentos de todo gênero para fundamentar sua tese da unidade natural. A doutrina da Igreja como Corpo Místico de Cristo aparece, deste modo, como argumento, pois na mente do autor os textos das Sagradas Escrituras e dos Santos Padres sobre a Igreja como Corpo Místico de Cristo não podem ser inteiramente entendidos senão partindo da suposição de que a união de que se fala seja uma união natural, conforme Mendoza a explica e entende.

O ponto de partida e o fundamento de seu raciocínio é a Igreja com Jesus Cristo formam um todo, uma unidade, um homem perfeito, que é Cristo. Segundo Mendoza, é isto o que está figurado no Êxodo, quando este livro trata, no capítulo 29, da consagração do sacerdote, e de modo especial nos versos 15 a 18 do mesmo:

“Tomarás também um carneiro, sobre a cabeça do qual Aarão e seus filhos porão as mãos. Depois de o teres degolado, tomarás de seu sangue e o derramarás em torno do altar. Depois cortarás o mesmo carneiro em pedaços e, lavados os intestinos e os pés, os porás sobre as carnes sobre as carnes despedaçadas e sobre a sua cabeça, e oferecerás todo o carneiro, queimando-o sobre o altar. É uma oblação ao Senhor, de suave odor, é um sacrifício pelo fogo ao Senhor”. Ex. 29, 15-18

Para Mendoza, este “todo o carneiro” que se oferece sobre o altar, e que é resultado da união das partes, cabeça e membros, é símbolo da união entre a Igreja e Cristo. A Igreja e Cristo formam um só todo:

“Vês este carneiro ser morto, e ser ordenado que seja cortado em pedaços, e todo ele ser amontoado em um só todo? Vês que não é diversa a natureza da carne entre a cabeça do carneiro e seus pedaços? Se, portanto, pelo carneiro entendemos a Cristo; pelos pedaços entendermos os fiéis, isto é, os membros de Cristo; de sua carne e de seus ossos, amontoados em um só todo, entendermos Cristo e a Igreja, a cabeça e os membros, conjuntos por uma certa união pela unidade da carne e dos ossos de uma mesma natureza”, diz o Cardeal, não é certo que além da união pela fé e pela caridade deveremos admitir outra união natural?

Esta doutrina assim aludida pelo êxodo foi ensinada, porém, com clara precisão por São Paulo apóstolo:

“Paulo chamou com uma só palavra a própria Igreja juntamente com Cristo sua cabeça. Ele diz que ‘Assim como há um só corpo que possui muitos membros e todos os membros, embora sejam muitos, todavia são um só corpo, assim também é Cristo’. I Cor 12, 12”

Os Santos Padres, intérpretes autênticos das Sagradas Escrituras, são copiosos neste mesmo sentido, ao comentarem o Apóstolo. No De Peccatorum Meritis et Remissione I, 31 Santo Agostinho afirma:

“São Paulo não diz: ‘Assim também é de Cristo’, isto é, ‘do Corpo de Cristo’, ou ‘dos membros de Cristo’, mas ‘assim também é Cristo’.

O Apóstolo chama a cabeça e o corpo um só Cristo”.

No tratado sobre o Salmo 142 Santo Agostinho apresenta esta idéia com mais perfeição. A Igreja com Cristo não é apenas um todo único estático, mas um mesmo sujeito de ação e paixão:

“Não diz o Apóstolo ‘assim também é de Cristo’, mas ‘há um só corpo e muitos membros, assim também é Cristo’.

E porque tudo é um só Cristo, por isso também a voz do céu disse a Paulo: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues?'” Santo Agostinho, ML 37, 1846

Para não ter que multiplicar interminavelmente os textos, pode-se concluir a doutrina patrística a este respeito com uma citação de Santo Agostinho que a condensa e a sublima:

“Retende tudo isto e enviai-o bem firmemente para a vossa memória, para reconhecerdes que Cristo é cabeça e corpo, e que se trata do mesmo Cristo, o Verbo de Deus Unigênito igual ao Pai. Vede daí quão imensa graça é o pertencerdes a Deus, a ponto dele ter querido ser um só conosco, ele que é um com o Pai”. In Ps. 142, ML 37, 1846-7

Encontramo-nos, pois, diante de uma realidade, o Cristo total, cuja natureza desejamos investigar. Os elementos constitutivos deste todo são designados de um modo complexivo por Mendoza quando afirma:

“Que a Igreja seja um corpo, cada um de nós membros e Cristo a cabeça é afirmado abertamente pelo Apóstolo Paulo”.

Cristo cabeça é o princípio da Igreja. Dele ela toma a sua origem, como Eva tomou também a sua origem de Adão. Adão, cabeça do gênero humano, é o tipo e figura de Jesus Cristo, novo Adão, que é cabeça da Igreja. Em Adão morreram os homens, em Cristo voltaram à vida.

A razão formal da cabeça consiste em que dela flui toda a virtualidade ao corpo e aos membros, e assim Jesus Cristo “é dito cabeça da Igreja na medida em que por Ele, como da cabeça ao corpo e a cada um dos membros do corpo emana toda virtude”.

Porém em Cristo deve-se considerar a divindade e a humanidade, e nesta a alma e o corpo. Para Mendoza Cristo é cabeça não somente enquanto Deus, mas também enquanto homem. E por esta mesma razão ele também afirma que Jesus Cristo é cabeça não somente quanto à alma, ou por razão da alma, mas também quanto ao corpo:

“Pois assim como do Espírito Santo emana a graça para as almas, assim também de seu corpo emana uma certa virtude vivificativa para os fiéis a si unidos. Cristo é, de fato, cabeça da Igreja não apenas segundo a alma, mas também segundo o corpo, pelo qual a sua virtude penetra na alma e em seguida também no corpo”.

A Igreja é, portanto, um corpo. Para entender o que devemos admitir primeiro “que a Igreja é a esposa de Cristo. É o seu Corpo Místico”.

A Igreja é um corpo real, verdadeiro, de tal modo que “se alguém pudesse ver a Igreja, por ela estar unida a Cristo, e ser participante de sua carne, nada mais veria do que o próprio corpo do Senhor”.

Os membros de Cristo são os fiéis. Há, porém, duas categorias de membros, os membros místicos e os membros naturais.Quando São Paulo afirma

“Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Farei, portanto, dos membros de Cristo membros de uma meretriz?” I Cor. 6, 15

O Apóstolo entende por isto algo mais do que membros apenas místicos, porque aquele “que se une a uma meretriz se torna um só corpo com ela”. I Cor. 6, 43

São Paulo, portanto, entendia com isto que se tratam de membros naturais, isto é, corporais.

Os patriarcas do Antigo Testamento, os profetas e os batizados que ainda não receberam dignamente a Eucaristia são membros apenas espirituais de Cristo. Os batizados que comungaram dignamente são membros naturais, corporais, “membros de sua carne e de seus ossos”.

Com isto chegamos ao ponto central de nosso tema. Temos um verdadeiro interesse em investigar a natureza desta união de que nos fala Mendoza. Não se trata de uma mera justaposição, mas sim de algo mais íntimo, conforme o indicam os termos “unir-se, incorporar-se, converter-se, inabitar, permanecer, etc.”, que são empregados pelas Sagradas Escrituras e pelos Santos Padres.

Não se trata, porém, de uma mutação substancial, já que esta união é “permanente, mas não há mutação substancial nem da essência de Cristo nem da essência do que o recebe sacramentalmente”.

O que ocorre é uma união mediante uma mutação acidental, “permanecendo a essência enquanto mudam os acidentes”.

Isto pode ser deduzido da própria expressão “permanecer em outro” com que Jesus Cristo declara a união entre a cabeça e os membros do Corpo Místico.

Tudo isto nos leva a concluir que, segundo Mendoza, trata-se de uma espécie de unidade acidental, um modo de identidade relativa, que os filósofos definem como “a conveniência de duas coisas em uma mesma qualidade”.

Deve-se notar que estamos dizendo “um modo de identidade relativa”, porque seus termos não podem ser convertidos entre si na proposição. Nossa identidade com Cristo possui um aspecto dinâmico de verdadeira conversão acidental, como notamos acima. Não se trata de uma simples coincidência em uma terceira qualidade. Este dinamismo consiste em que a qualidade em que compartilhamos nos vem de Cristo, e se reproduz numericamente em nós, mas não especificamente. Sua função é assemelhar-nos e incorporar-nos a Cristo:

“Permanece a essência, mas mudam os acidentes espirituais da alma e as qualidades acidentais de nosso corpo, de tal modo que tanto a alma quanto o corpo, tornado cristiforme, se torna com Ele uma só carne e um só espírito não pela unidade da essência, mas pela unidade da graça e pela comunicação das qualidades corporais e pela conveniência da união”.

Se não houvesse outros textos ainda mais explícitos, já somente a partir deste poderíamos deduzir que há uma dupla classe de identidade com Cristo.

A razão de meio desta identidade é a graça santificante, que chega até nós por meio de Cristo e que, elevando e sanando a alma e o corpo em sua raiz, nos cristifica e nos torna radicalmente idênticos com Ele. Esta conveniência, que em sua raiz é una, desdobra-se, porém, por sua vez, se considerarmos os meios próximos mediante os quais se realiza esta transformação. Se o fim desta transformação é nosso espírito pela mudança de suas qualidades acidentais, a união será espiritual, e consistirá em sermos “um só espírito com Cristo”.

Se o fim desta transformação é o nosso corpo pela comunicação das qualidades do corpo de Cristo, a união se chamará corporal e natural.

Deve-se notar que a união corporal supõe e inclui, de certo modo, a espiritual, e que a espiritual pode existir sem a corporal absolutamente falando, não porém sem o seu desejo, pelo menos implícito, na fé a na caridade.

Toda a essência da união espiritual consiste em ser “um só espírito com Cristo”

isto é, do mesmo parecer e do mesmo querer. Os extremos que se unem são, neste caso, a natureza divina de Cristo e nosso espírito. Trata-se de uma união espiritual. Segundo o que já dissemos, permanece a essência da alma e mudam seus acidentes. Os acidentes são, no caso, o pensar e o querer. A fé nos identifica com Deus quanto ao pensar e a caridade nos transforma nEle quanto ao querer.

Segundo este raciocínio, somos um só espírito com Jesus Cristo. Somos, porém, também um só corpo? Se nossa alma se identifica com o espírito de Jesus Cristo, porém, ficará nosso corpo privado de uma identificação unitiva com o corpo de Jesus? Ou, o que é o mesmo, à unidade espiritual e mística entre Cristo e os homens não se deverá acrescentar uma unidade corporal e natural? Toda a obra de Mendoza foi escrita com o fim de demonstrar que a resposta afirmativa a esta pergunta é correta. Vejamos qual seja o estado da questão, segundo as palavras do Cardeal:

“Aquilo que é colocado em dúvida por muitos eruditos é se além da união espiritual pela qual se unem a Cristo aqueles que comungam dignamente o seu corpo, haja uma outra união natural e substancial entre a mesma carne de Cristo e a do que comunga dignamente. Ou seja, se nos unimos ao verdadeiro e substancial corpo de Cristo pelo sacramento da Eucaristia dignamente recebido por meio de alguma união natural e substancial diversa da união e incorporação espiritual, que se realiza pela fé e pela caridade e que somente une e incorpora espiritualmente, alcançada sem dúvida pela misericórdia divina por aquele que recebe dignamente a Eucaristia e pela qual ele se torna membro do Corpo Místico de Cristo”.

Mendoza afirma sem rodeios a existência desta união natural e com tão grande firmeza que qualifica de hereges aos que ousam negá-la:

“A unidade natural é ensinada explicitamente em alguns lugares das Escrituras e em outros é uma conseqüência, se entendermos a Escritura segundo as sentenças dos Santos Padres”.

Esta união, segundo Mendoza, se chama natural e substancial porque

“é de natureza a natureza, de substância a sustância, de corpo a corpo, de carne a carne, de natureza dentro da natureza, de substância dentro da substância, de corpo dentro do corpo e da carne dentro de nós pela recepção do Santíssimo Corpo”.

Não se deve crer, porém, que a carne de Cristo se converte em nossa carne e em nossa alma: “não afirmamos que a carne de Cristo se transforma em nossa alma ou em nosso corpo”.

O Cardeal, igualmente, diz não afirmar que a carne de Cristo penetra em nossa alma. O que penetra em nossa alma é “uma certa graça e virtude que emana deste alimento e é admirável refeição e refrigério do corpo e da alma ou, melhor ainda, de todo o homem. O Verbo, unido à carne, ingressa na alma, e a carne de une à nossa carne, de tal modo que todo o homem é tomado e transformado em Cristo, sem porém que a carne de Cristo se converta em nossa carne, mas a sua carne une a si a nossa carne e a incorpora a Cristo, de tal modo que por Cristo o homem se coaduna ao Pai”.

Não se deve entender, porém, esta transformação de nosso corpo no corpo de Cristo em um sentido substancial, isto é, quanto à substância de nosso corpo, mas de modo que “transformam-se as qualidades acidentais de nosso corpo pela comunicação das qualidades do corpo de Cristo”.

A graça que realiza tais maravilhas é a graça sacramental:

“Por meio desta estreitíssima união substancial com a carne de Cristo produz-se esta unidade natural entre nós e Cristo, que se realiza pela graça sacramental, a qual, depois de ter agido primeiramente na alma, também no corpo, proveniente da própria alma, deriva-se secundariamente e por uma certa e peculiar razão prepara nosso corpo à imortalidade e à incorrupção, por cuja causa é também chamada pelo santos de corporal”.

Não é obstáculo que para a unidade natural a carne de Cristo alimente a nossa com alimento espiritual e não corporal:

“Nosso corpo se alimenta espiritualmente do corpo de Cristo para a vida eterna, diz Santo Irineu, na medida em que a cobiça, a ira, a gula, a concupiscência ca carne irracional é reprimida e mitigada em nós, para que a lei dos membros, originada da lei do pecado, não viva mais e nem no nosso corpo mortal reine o pecado, mas sim a lei do espírito, conforme à Lei de Deus, obtenha o seu império, e por meio deste divino alimento se prepare à incorrrupção, à imortalidade e à glória”.

Encontramo-nos, pois, novamente diante de uma conversão ou mutação acidental, idênticas com Jesus Cristo quanto ao corpo pela participação transformativa, participação que se nos faz pela virtude e pela graça que opera em nós pelo corpo de Cristo:

“Ainda que o sujeito de nosso corpo não se converta verdadeira e realmente no corpo de Cristo, de modo que cesse de ser nosso corpo e se torne corpo de Cristo, somos todavia dispostos pelo corpo de Cristo e pela virtude que deriva dele para a nossa alma, e por ela também em nosso corpo, de tal modo que é semeado animal e ressurge espiritual”.

Todavia, para esclarecer a mente de nosso autor sobre a palavra natural com que ele designa esta união, será de interesse citar a solução que ele dá a uma objeção:

“Porque esta união é dita natural se ela se realiza por meio da graça sobrenatural? É chamada de natural e substancial porque é da carne para a carne. O que é mais natural à carne do que unir-se à carne? E ainda que a carne de Cristo seja gloriosa e divina e o próprio meio desta união seja a graça sobrenatural, todavia, porque os extremos convém na mesma espécie e natureza, por isso são ditos unirem-se naturalmente”.

Vemos, com efeito, ao tratar dos membros do Corpo Místico de Cristo, que aquilo pelo que eles são tais, isto é, sua razão formal, é precisamente esta união com a cabeça. A diversidade de membros, dentro da único organismo que é a Igreja, tem sua explicação na diversa classe de unidade com que estes estão adaptados à cabeça. São membros espirituais, apenas místicos, aqueles que somente estão unidos à cabeça pela união espiritual ou mística. São membros reais, corporais, naturais, os que ademais dessa união espiritual ou mística tenham também a união natural ou corporal.

E como o corpo é o conjunto dos membros, segundo a qualidade destes será a do corpo. E assim teremos ou o corpo somente místico, que consta de membros somente místicos, ou o corpo real, se além de místicos os membros são também reais, corporais, naturais. É deste modo que devem ser compreendidas as expressões de Mendoza quando chama a Igreja de Corpo Místico e de Corpo Real.

Porém, ademais, nosso espírito e nosso corpo, todo o nosso ser, renasce para uma nova vida, que é a vida de Cristo. De fato, “pelo Corpo de Cristo que penetra em nossas vísceras se nos comunica um certo dom, a saber, nossa vida cristífica, ou divina, e um certo ser divino e cristífico, o qual, originando-se da própria fonte da graça, isto é, Cristo, e seu divino corpo, e derivando-se da vida e do ser do corpo de Cristo, flui para nossa alma e nosso corpo, de tal maneira que não há palavras que possam expressar a dignidade à qual se eleva a nossa carne humana unida à carne puríssima de Cristo”.

A graça de Cristo nos saneia e nos eleva, e as virtudes e os dons que lhe servem de cortejo e que se infundem com ela elevam nossas potências a uma ordem de operações vitais que são próprias e exclusivas da divindade. Desta maneira vivemos a vida de Cristo e participamos de suas qualidades em nossa alma. Mas sua graça não se detém neste ponto, mas por meio da alma este influxo vital chega também ao nosso corpo, no qual se reprimem a concupiscência e a irascibilidade e se alcança a sujeição e a obediência da mesma ao espírito. E esta participação não se limita às qualidades que pertencem à natureza divina; estende-se também às que são próprias da natureza humana de Jesus Cristo:

“Tornamo-nos consortes das propriedades de sua dupla natureza”.

Nosso corpo “prepara-se para a incorrupção e a imortalidade”.

Seu efeito especial é a ressurreição: “E eu o ressuscitarei no último dia”, diz Jesus Cristo (Jo. 6, 55).

Na oração “Unde et memores” que se faz depois da elevação da hóstia na Santa Missa, o “Celebrando, pois, a memória da paixão de vosso Filho, de sua ressurreição entre os mortos e de sua gloriosa ascensão aos céus, nós, vossos servos, e também vosso povo santo, vos oferecemos, ó Pai, dentre os bens que nos destes, o sacrifício perfeito e santo, o pão da vida eterna e o cálice da salvação”, não devemos pensar que se faça memória apenas da paixão, ressurreição e ascensão de Cristo cabeça, mas sim que se comemora também a paixão, ressurreição e ascensão dos membros a Ele unidos. Em uma palavra e em maravilhosa síntese assim o resume Mendoza:

“Esta participação da graça de Cristo, conjunta com a comunicação das qualidades de seu corpo, realiza toda a nossa deificação em todas as partes e, tornados um só corpo e um só espírito com Ele, vivemos do espírito daquele cujo corpo somos”.

Tanto a união espiritual como a corporal, se bem que esta de um modo muito mais perfeito, trazem consigo, entre outros frutos,

“Que aquele aceitabilíssimo sacrifício que oferecemos a Deus, nós mesmos, não apenas pelo espírito, mas também inseridos no corpo de seu Filho unigênito, ofereçamos uma hóstia grata a Deus, isto é, nossa carne morta ao pecado, unida à carne pura de Cristo, e tornada una com ela”.

“Que o santo consórcio entre nossa alma e Cristo, seu esposo, contraído pelo Batismo, se plenifica pelo consórcio natural com o mesmo, e não seja apenas contraído pelo consentimento da vontade, mas também seja consumado como que por uma união carnal, na medida em que por este sacramento, a Eucaristia, a esposa se faz uma só carne com o esposo”.

“Que os membros de seu Corpo Místico, incorporados a Cristo pela mente e pelo espírito, alimentando-se de um só mesmo pão e participantes de um só mesmo cálice se unem entre si por laços de estreitíssima unidade”.

“Que nossa unidade com Cristo, e Cristo mediador, se plenifica em Deus, e por este mesmo estreitíssimo e inefável laço nos unimos com o Pai e o Espírito Santo”.

Ao longo desta exposição colocamos em relevo o papel importantíssimo da fé a da caridade e das demais virtudes e, sobretudo, da graça de Cristo, às quais em certo modo poderíamos catalogar na ordem das causas formais. A questão consiste em investigar as causas eficientes, tanto principais como instrumentais, sacramentais ou não, que produzem a graça nos homens, os incorporam a Deus, dando origem ao Corpo Místico. Neste sentido, é preciso notar, afirma Mendoza, que “Assim como por um só homem entrou a morte, assim também por um só homem entrou a graça”,

e que este homem, pelo qual entra a graça, é Jesus Cristo, Deus e homem. Jesus Cristo, enquanto Deus, justifica, porque “é Deus que justifica”.

Na medida, porém, em que Cristo é homem, “opera para seus efeitos inferiores, isto é, operando a própria justificação de modo meritório, eficiente e também satisfatório”.

Para estes efeitos inferiores a humanidade de Cristo faz as vezes de instrumento, isto é, é um “instrumento conjunto a Deus”.

Resulta daqui, portanto, que Cristo, enquanto Deus, é causa eficiente principal. A humanidade de Cristo é causa instrumental, e a morte de Cristo na cruz é a causa universal da graça e da justificação. Mas tudo isto, porém, está na ordem da aquisição. Quando isto se aplica aos homens, é necessário descer à ordem do adquirido. Esta aplicação se realiza por meio dos sacramentos:

“Os sacramentos são ditos instituídos por Cristo para que por eles cada um de nós toquemos a sua paixão e ressurreição, e a graça que por ela nos é dada, assim como toda a virtude salvífica proveniente da divindade de Cristo pela sua humanidade, transita para os sacramentos, por cuja virtude os pecados são apagados e a alma se aperfeiçoa nas coisas que pertencem ao culto divino. Portanto, a virtude da paixão nos é conferida e aplicada pelos sacramentos”.

Diz-se, portanto, que a Igreja está edificada nos ou sobre os sacramentos, já que por eles nos unimos a Cristo e a Igreja é a “comunidade dos unidos”. É evidente, portanto, que será pedra angular deste edifício aquele entre os sacramentos que mais estreita e perfeitamente realize a união. Ora, tendo em conta que a humanidade, “a carne e os ossos” de Cristo, “como instrumento conjunto à divindade”, “contribuíram muito mais à formação do Corpo de Cristo que é a Igreja do que a carne e os ossos de Adão para formar a Eva”, e que na Eucaristia está realmente presente não apenas a divindade, mas também a humanidade de Cristo, a carne de Jesus Cristo que nos demais sacramentos está presente apenas “segundo a virtude”, deve-se logicamente concluir que a Eucaristia deve-se chamar e de fato se chama de o Sacramento do Corpo Místico de Cristo, já que de modo mais perfeito e principal nos incorpora a Ele e nos torna membros da Igreja.

“A Eucaristia contém em si mesma a própria humanidade e divindade de Cristo, e não apenas nos incorpora espiritualmente ao Corpo Místico de Cristo, mas também a ele nos une por uma união natural. Pelo que não é idêntica a razão dos demais sacramentos com a deste sacramento”.

Finalmente, deve-se dizer que a Eucaristia não apenas significa, mas também realiza o Corpo Místico, unindo os membros com a cabeça e entre si, dando origem à comunhão dos santos. Mostram esta verdade com evidência as diversas expressões que fazem referência a este sacramento:

“mistério”, “penhor”, “exemplo”, “convívio”, “comunhão”.

A Eucaristia, diz ainda Mendoza, “É sacramento que possui promessa de vida eterna, de ressurreição e de habitação com Cristo, habitação estreitíssima com Ele que é significada pela união com seu corpo dignamente recebido, pela qual nos tornamos membros do corpo de Cristo, de sua carne e de seus ossos”.

Depois de tido isto que expusemos, cremos poder afirmar por modo de conclusão, sem faltar às leis de uma legítima conseqüência que:

Topamos com um autor, quase ou inteiramente desconhecido, que não se nos apresenta como de primeiro plano em Teologia, mas que bem mereceria um estudo ponderado, sério e completo, o que daria muita luz para a inteligência da primeira metade do século XVI e também para o Concílio de Trento.

Que a doutrina sobre o Corpo Místico de Cristo apresentada por Mendoza é, no seu fundo, a que era comumente ensinada em sua época, embora ofereça uma novidade, ou pelo menos isto foi o que pareceu e muitos teólogos espanhóis de sua época, no que se refere ao ponto nuclear da união entre a cabeça e os membros, que não se conforma com a união espiritual afetiva pela fé e pela caridade, mas que apresenta uma união mais íntima e mais completa, que é a substancial, corporal, natural, que nós explicamos no sentido metafísico de uma identidade relativa.

Finalmente, que para escrever a história da Teologia não é suficiente deter-se apenas nas figuras de primeiro plano, por maiores que estas sejam. É preciso descer a estes outros, tidos até o momento como talvez de menor importância, nos quais muitas vezes se encontram, se não a própria doutrina que supúnhamos original de uma figura de primeiro plano, pelo menos as raízes e os primeiros esboços e colocações dos problemas cuja solução, às vezes ainda imperfeita, foi suficiente para em seguida consagrar a outro autor e elevá-lo à categoria de primeiro e original mestre.

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