Creio na Igreja Católica
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Fontes primárias
1. Textos de títulos idênticos no site do Opus Dei;
2. §§748 – 945 do Catecismo da Igreja Católica.
Na aula passada falei dos últimos mistérios da vida e obra de Cristo e também do Espírito Santo. Hoje, como dito, falarei do mistério da Igreja, da fé na Igreja.
A abordagem que tenho dado à doutrina Católica ressalta o mistério da Participação. Escolhi dar ênfase a essa realidade por dois motivos principais: primeiro, ela é central para compreender a Igreja e a sua relação com Deus, bem como a relação Dele com todas as coisas, e, segundo, ela é o fundamento mesmo da vida Cristã, de tal modo que, não sendo compreendida, gera graves distorções no modo como a moral, os Sacramentos e a oração são compreendidos.
Digo isso hoje, pois a Participação na natureza divina será o eixo da explicação do mistério da Igreja hoje e, à luz do que for dito hoje, das outras três partes do Catecismo, que começaremos nas próximas semanas.
Artigo 9o: “na Santa Igreja Católica”
§1. Deus, infinitamente perfeito e bem-aventurado em Si mesmo, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para o tornar participante da sua vida bem-aventurada.” Eis por que, desde sempre e em todo lugar, está perto do homem. Chama-o e ajuda-o a procurá-Lo, a conhecê-Lo e a amá-Lo com todas as suas forças. Convoca todos os homens, dispersos pelo pecado, para a unidade da sua família, a Igreja. Faz isto por meio do Filho, que enviou como Redentor e Salvador, quando os tempos se cumpriram. N’Ele e por Ele, chama os homens a se tornarem, no Espírito Santo, seus filhos adotivos e, portanto, os herdeiros da sua vida bem-aventurada.
A Igreja não é uma realidade meramente humana. É, também, divina. Sendo o Corpo de Cristo, tem as duas naturezas de Cristo, humana e divina. Isso quer dizer que,
ao mesmo tempo em que é uma instituição humana, que existe no tempo e na história, é uma instituição divina, existindo também fora do tempo e da história. Exemplo dessa realidade é que os Santos, que já estão junto de Deus, também fazem parte da Igreja – a parte chamada de Triunfante –, mesmo não estando mais submetidos à mudança e à corrupção.
A Igreja também é divina em outro sentido, lidado intimamente ao primeiro e principal, mas que pode ser distinguido: ela é guiada pelo Espírito Santo, enviado por Cristo no dia de Pentecostes. Ele é quem dota a Igreja de Santidade; é nela que Ele floresce (§749),
Portanto, ao falarmos de fé na Igreja, estamos antes falando da fé em Deus e age por meio da Igreja, tanto por tê-la constituído com as mesmas naturezas de Cristo – de certo modo –, quanto por guiá-la e dirigi-la por meio do Espírito Santo. Não existe fé na Igreja que não seja fé em Deus, pois ela só existe e age por causa Dele (§750).
Por que a Igreja existe?
Sendo a Igreja essa realidade tão elevada, que traz consigo as duas naturezas de Cristo, que é guiada pelo Espírito Santo e é instrumento divino, seu propósito deve ser igualmente elevado. Por que, então, existe a Igreja?
Falei de como, por causa do pecado, o homem caiu da graça, bem como que, para redimir os homens, a Segunda Pessoa da Trindade se encarnou e reordenou todos os aspectos da vida humana com sua vida e obra, vencendo, em última instância, a morte, tanto corporal quanto espiritual, e abrindo as portas do Céu para a humanidade.
Porém, como a mensagem dessa salvação – e, também, a própria salvação –, chegaria aos homens? Cristo, depois de ressuscitar, subiu aos Céus. Como sua obra poderia se realizar se Ele não estivesse aqui?
Para esse fim que instituiu a Igreja sobre os Apóstolos, liderados por São Pedro: cumprir sua missão aqui. Missão elevadíssima, que exige não apenas a mão humana, mas também a “mão divina”.
Aqui uma digressão se impõe. Se a missão da Igreja fosse apenas pregar o Evangelho, ou seja, publicar oralmente e por escrito aquilo que disse Cristo, alguma medida de ação divina já seria necessária.
Afinal, a mensagem do Evangelho, mesmo se publicada corretamente, já causa certo incômodo na sociedade, mesmo que unicamente pelo fato de quebrar o mito
da sacralidade do corpo político ao afirmar a existência de uma outra ordem social – de muitos modos invisível – dentro da ordem política e que, por ser mais elevada, cria outras responsabilidades para os homens, a ponto que eles passam a oferecer, pela sua própria existência, um risco sensível à ordem social.
Esse risco, muitas vezes materializado no assassinato ou na exclusão e expulsão, exige alguma medida de graça para ser aceito. Nenhum homem “são” – por uma visão puramente materialista ou política – aceitaria corrê-lo. A menos que, pela graça, veja mais do que os olhos carnais permitem, esse risco é intolerável.
Por isso, mesmo que a mensagem do Evangelho pudesse ser levada para todos os cantos da terra unicamente por indivíduos, seria necessário que a Igreja fosse guiada pelo Espírito Santo e que, desse modo e nessa medida, fosse tanto humana quanto divina.
Entretanto, como a missão da Igreja vai além da mera publicação do Evangelho, incluindo também a difusão da graça divina por meios específicos (os Sacramentos); Ela não apenas mostra aos homens outro modo de levar suas vidas com base em uma segunda ordem, espiritual e santa, mas confere os meios necessários para que essa vida seja vivida.
E, mais, esses meios elevam essa vida sobremaneira, a tal ponto que ela não pode ser considerada como apenas “mais um modo de viver”. Em primeiro lugar, a vida cristã não anula ou despreza a vida humana em um sentido estrito. Seu objetivo é, antes de tudo, conduzir essa vida ordinária à vida divina, de tal modo que ambas convivam em um mesmo indivíduo; que a vida ordinária participe da vida divina, não perdendo aquilo que lhe é próprio nem sendo apenas aquilo que é.
Em segundo lugar, ela não rejeita necessariamente todos os modos de viver. As diferenças de estamento – ou de classe social, como se diz hoje –, de povo, língua, sexo, nacionalidade, riqueza et cetera são todas diferenças acidentais para a vida Cristã, que pode iluminar e elevar todos os modos de vida – salvo aqueles que a negam por princípio.
Portanto, a vida Cristã não é “mais um modo de viver”. Ela é O modo de viver que ilumina e eleva todos os modos ordinários, sem destruí-los. Esse modo de viver elevado, Cristão, é o que se chama de Santidade na Igreja, e é esse o seu fim último: levar os homens a mais perfeita participação na natureza divina possível, a fim de que todas as coisas sejam, tanto quanto possível nessa vida, reinstauradas em Cristo.
Sem a “mão divina” agindo ativamente na Igreja, como essa missão elevadíssima pode ser realizada? Seria impossível. A graça de Deus, afinal, não pode ser
dispensada sem a ação dele. Se a Igreja pode ser instrumento de graça, não em sentido metafórico, mas realmente, é porque ela é divina também. Para cumprir sua missão, portanto, é necessário que a Igreja seja humana e divina, visível e invisível, institucional e espiritual, corporal e imaterial.
De outro modo, ela não poderia fazer papel de intermediadora entre Deus e os homens – papel que pode cumprir por ser o Corpo de Cristo –, nem poderia levar o Evangelho na sua correta interpretação para nenhum homem, o batismo para todos os que creem, os outros sacramentos para cada homem e mulher nos diversos momentos da sua vida, e a Participação na natureza divina para todos que fazem parte dela.
Desse modo é que a Igreja cumpre a missão de Cristo e leva a redenção – genuinamente – aos homens.
A origem da Igreja
Se a Igreja cumpre a missão de Cristo, assim como a vida e obra do Redentor, ela já era esperada e prefigurada no Antigo Testamento. A história da Igreja, para ser bem contada, exige o relato da sua antecipação e prefiguração desde a Criação.
Foi isso que fez Santo Agostinho na segunda parte da sua obra A Cidade de Deus, quando, em primeiro lugar, distinguiu os dois caminhos possíveis para o homem aqui na terra e, depois, detalhou as etapas do caminho Cristão:
Capítulo 28. Da Natureza das duas cidades, a terrena e a celeste.
Assim, as duas cidades são formadas por dois amores: a terrena pelo amor de si (amor sui), até o desprezo de Deus; a celeste pelo amor a Deus (amor Dei), até o desprezo de si. A primeira, em uma palavra, se gloria em si mesma; a última no Senhor. Uma busca a glória dos homens; mas a maior glória da outra é Deus, a testemunha da consciência. Uma eleva sua cabeça em sua própria glória; a outra diz ao seu Deus: ‘Tu és minha glória e O que eleva minha cabeça.’. Na primeira, os príncipes e as nações que ela subjuga são regidos pelo amor ao poder; na outra, os príncipes e os súditos servem uns aos outros em amor, os últimos obedecendo enquanto os primeiros pensam por todos. A primeira se alegra com a própria força, representada nas pessoas dos seus governantes; a segunda diz ao seu Deus: ‘Eu Te amarei, Ó Senhor, força minha.
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. The city of God. 31a Edition. Chicago, USA: Encyclopædia Britannica, Inc., 1952. (The Great Books of the Western World, v. 18), p. 397.
A genealogia ancestral da cidade de Deus, no que estima Agostinho, foi narrada explicitamente no Antigo Testamento: de um lado, a linha dos eleitos e abençoados é traçada de um descendente de Adão, Abel, por meio de Noé e seus filhos, Sem e Jafé, até os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, e daí por meio de Jó (um não-Hebreu) e Israel, a Moisés, Josué e Davi até a emergência do Messias, Jesus Cristo, e a Nova Dispensação. De outro lado, a linha da cidade dos homens traça sua ancestralidade de outro descendente de Adão, Caim, por meio do filho de Noé, Cam, e então por meio de Ismael, Esaú, os povos sem Deus que se opunham a Israel – os Canaanitas, Assírios, Babilônicos etc.
KAINZ, Howard P. Democracy and the “Kingdom of God”. Wisconsin: Marquette University Press, 1993, p. 85.
A primeira se estende de Adão até o Dilúvio; a segunda de Noé até Abraão, e a terceira de Abraão até Davi, com Nimrod e Nimus como seus opostos perversos. A quarta se estende de Davi até o Exílio Babilônico, e a quinta daí até o nascimento de Jesus Cristo. A sexta e última época se estende da primeira até a segunda vinda de Cristo, no fim do mundo.
LÖWITH, Karl. Meaning in History. Chicago: The University of Chicago Press, 1949, p. 170-171.
Os dois primeiros períodos têm dez gerações cada um; o terceiro, o quarto e o quinto têm catorze gerações cada, sendo a sexta idade indeterminada.
VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo, vol. 01. São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 275.
A era da Igreja, em sentido estrito, é a sexta, a última da história, que será sucedida pelo fim de tudo, pelo descanso divino, pela eternidade. Sendo a sexta e última, torna-se evidente que é o cume de um longo processo histórico guiado por Deus; que a Igreja não é mais uma das realidades temporais; que tem primazia sobre elas, dada sua missão e suas naturezas; que ela foi e é desejada por Deus e que participa de modo eminente da sua vida, permitindo que nós, por estarmos nela, também participemos.
Ainda sobre a visão agostiniana da Igreja:
A concepção de Cristo como um com a Igreja é a chave para a correta compreensão da psicologia de Santo Agostinho frente a Igreja Católica (aCatholica, como ele a chamava), da qual ele era bispo. Era uma Igreja concebida na Encarnação e nascida da Redenção; animada pela vida divina de Cristo; continuação da Sua vida na terra, ou melhor, era uma com Ele. O Santo não poderia deixar de antever Cristo, Seu trabalho e Sua vida na Igreja. A Igreja como o Corpo de Cristo é trazida ao alto relevo na escolha pela sua concepção institucional; Cristo como a Cabeça é trazido ao foco a partir da concepção completa da Igreja como o Corpo. Pois é a Cabeça que confere sua vida e dignidade aos membros assumidos em união com ela. É a Cabeça que garante um valor inestimável à Igreja como um todo. A atenção em Cristo como a Cabeça não distrai nossa mente do teocentrismo nem menospreza a doutrina da união com Deus. Pois o Bispo Africano está sempre consciente, na sua doutrina, do Corpo Místico, da inseparabilidade da humanidade e da divindade de Cristo, ou, para usar sua própria fala, da ‘divindade humana e humanidade divina’ de Cristo. Na união de Cristo com Seus membros – na vida e santificação de Cristo, que se impregna pelo seu organismo espiritual – repousa a explicação do brilho da devoção, do zelo e do amor de Agostinho pela Igreja, brilho que raramente encontramos.
GRABOWSKI, Stanislaus J. St. Augustine and the Doctrine of the Mystical Body of Christ. Theological Studies, vol. 7, no. 1, Feb. 1946, pp. 72–125, p. 103-104. Disponível em <https://doi.org/10.1177/004056394600700103>. Acessado em 06 de maio de 2019.
Surge, então, a seguinte questão: como o homem pode participar na história sagrada por meio da Igreja? Santo Agostinho responde com toda a Igreja: por meio do batismo o homem é incorporado na Igreja [1] em Cristo, recebe o perdão dos seus pecados e tem o pecado original apagado – que é a santificação estática. E não apenas isso, mas agora suas obras podem valer como as de Cristo, em virtude da união corporal, e podem contribuir para a salvação e santificação – não mais estática, e sim dinâmica (Cl. 1,24)[2], Desse modo o homem age na história sagrada e participa da natureza divina.
A origem da Igreja, portanto, é a próprio amor de Deus para com os homens, que deseja que cada um de nós o conheça e o ame, que cada um de nós participe da sua divina natureza. Ela é divina e humana, ela é Cristo (§ 795).
Prof. Rafael Cronje Mateus
Dada no Centro Cultural Alvorada, no dia 05 de maio de 2021.
Referências:
- “Hence all such as have received the sacrament of baptism in the Church are said ‘to have been regenerated in Christ and born from above’; as they become new men, renovated by the baptism, and have put on Christ. These effects produced in the baptized subject are concomitant with, and inseparable from, the incorporation into the Body of Christ. For Augustine tells his hearers: ‘When you have been baptized, then you have been born members.’ Just as he pointed out that it is impossible to become a member of the visible Church except by the sacrament of baptism, so the incorporation he now speaks of is impossible unless it be by baptism or martyrdom (passio) in behalf of Christ. So closely united, therefore, in the sacrament of baptism with incorporation into the Body of Christ, that Augustine speaks of baptism as the actual incorporation into the Body of Christ (‘compages Corporis Christi’), which is the effect of baptism, rather than the sacrament which causes that incorporation. ‘For this is to evangelize Christ, no to say only that which is to be believed about Christ, but also that which is to be observed by him who approaches the union of the Body of Christ [ad compagem Corporis Christi].’” Ibid., p. 84-85.
- “The Head, of course, sanctifies the Body by imparting its own life and power. This sanctification is of a twofold nature, which we may term, in modern nomenclature, static and dynamic. Static sanctification, which may be described as automatic, is that which results from the very union of the Body with Head. Dynamic sanctification, which may be described as meritorious, results from the powers bestowed upon members of the Body by the Head in order that they may sanctify themselves through the actions which they perform with the aid of grace. Whilst the former type of sanctification is common to all who are united in the Body of Christ, the latter is measured according to the degree of co-operation by the members with the powers bestowed upon them by the Head for their self-sanctification. Some, therefore, are more holy, others less, and still others are sinners.” Ibid., p. 81.