O Diabo existe realmente ou é mero símbolo da maldade e do ódio? Caso exista, será mesmo Adversário de Deus? O Diabo teria possibilidade de se reabilitar no fim dos séculos?
1. A questão da existência do demônio é de certo modo intrigante para quem observe o mundo presente. Verificam-se no pensamento contemporâneo duas tendências antagônicas entre si:
— de um lado, forte racionalismo, positivismo, que leva seus adeptos a negar a existência de qualquer ser espiritual ou invisível. Dizem que os demônios da tradição cristã não são senão figuras literárias ou personificações poéticas dos vícios ou derivados fabulosos da mitologia pagã;
— de outro lado, registra-se fascinante crença no demônio, manifestada por culto religioso ao mesmo, pactos com o Maligno, etc., mesmo entre pessoas de elevada cultura.
A coexistência de tão desencontradas opiniões diante da mesma questão é assaz estranha. Para uns, o demônio existe soberanamente e por certo neles domina; para outros, não existe, mas na realidade não domina menos entre eles, pois já se tem dito (o com toda a razão) que a mais requintada armadilha do Maligno nos nossos tempos é fazer crer aos homens que ele não existe. Cf. «P. R.» 37/1961, qu. 4.
Na verdade, o demônio existe, sim. É o que já de certo modo insinua a malícia esmerada, comumente dita diabólica, que campeia pelo mundo contemporâneo. É também o que se deduz de fontes diversas:
a) A Filosofia e a Teologia ensinam que os seres se dispõem em hierarquia de perfeições gradativas, que sobe do reino mineral ao vegetal, ao sensitivo e ao intelectivo. O homem, criatura intelectiva, se compõe de corpo e espírito; acima dele certamente está Deus, que não tem corpo (pois todo corpo significa limitação, imperfeição), mas é Espírito infinitamente perfeito. Sendo assim, a razão percebe a conveniência de existir entre o espírito humano (associado à matéria) e o Espírito Divino um tipo de seres espirituais que estejam acima do homem e abaixo de Deus: puros espíritos, criados por Deus para subsistir independentemente da matéria; seriam os anjos, dos quais muitos se conservaram fiéis ao Criador, outros se perverteram por seu livre arbítrio (demônios).
Tal raciocínio não é estritamente apodítico, pois a razão humana jamais poderia pretender ditar normas à ação criadora de Deus; o argumento, porém, leva a uma conclusão provável.
b) A probabilidade se transforma em certeza dentro da Revelação cristã: a Sagrada Escritura afirma frequentemente a existência de espíritos maus, contrários aos desígnios de Deus e ao bem dos homens; não são independentes de Deus, mas criaturas que abusaram e (na medida em que Deus o permite) abusam do seu livre arbítrio; cf. Sab 2,24; Apc 12,7.9; Mt 12, 25-41; Jo 8,44; 2 Pdr 2,4.
c) Fora da Revelação judaico-cristã, esteve muito espalhada entre os povos antigos a consciência de que existe um antagonista invisível, superior aos homens e inferior a Deus, que desencadeou a desgraça neste mundo. Este testemunho comum não é o fundamento da crença cristã, mas a ilustra.
Eis alguns dos muitos relatos dos primitivos que, através de traços simples e populares, manifestam tal consciência:
Os Mordvinos, tribo da Sibéria, contam que Tscham-Pas, o Criador, formou o corpo humano a partir do barro e o confiou à guarda de um cão, que, recém-plasmado, estava sem pelo. Tendo-se ido Tscham-Pas sobreveio Chaitan, o Adversário do Ser Supremo, e excitou um frio tremendo, que ameaçou de morte o cão; este então lhe entregou o corpo humano em troca de uma coberta. Chaitan, de posse do homem, pôs-se a cuspir sobre todos os seus poros, dando origem às doenças do organismo; insuflou-lhe lambem as tendências para o mal e o vício. Tscham-Pas, ao voltar, repeliu o Adversário e, a fim de curar o homem, voltou para dentro a parte externa do corpo manchada pelos escarros do inimigo; insuflou-lhe também uma alma boa. As doenças, porém, permaneceram e permanecem na vitima, assim como as inclinações para o vicio, de sorte que o homem se vê entregue à luta consigo, porque à obra do Criador se quis opor o Adversário mau.
Este Adversário, conforme a mentalidade dos antigos, apesar de toda a sua influência, não é absoluto, mas inferior ao Autor do mundo. É o que exprimem narrativas como as seguintes: os Ahinus, aborígenes do norte do Japão, referem que o Criador, após haver formado o mundo, jogou fora os machados de pedra que usara; estes apodreceram na terra, dando origem aos espíritos maus, os quais são numerosíssimos e têm um chefe supremo. Os Coríacos, tribo da Sibéria setentrional, referem que o Grande Corvo é oriundo da poeira que costuma cair do céu sobre a terra, quando o Ser Supremo afia o seu facão de pedra.
Mais ampla documentação se encontra no livro de E. Bettencourt, Ciência e Fé na história dos primórdios, 3a edição. AGIR 1958, 181-84.
Estas histórias não sejam entendidas ao pé da letra; antes, hão de ser interpretadas como a forma popular pela qual se exprimem algumas verdades perenes, pertencentes ao patrimônio ideológico do gênero humano. Este, desde remotas épocas, professa a existência do demônio. Tal profissão deve corresponder à realidade das coisas.
2. A respeito da natureza e da sorte do demônio, a fé cristã ensina o seguinte:
Os anjos foram criados bons e, como todo ser espiritual, dotados de livre arbítrio. Deus, porém, não lhes quis dar a bem-aventurança consumada sem que colaborassem livremente na configuração da sua sorte eterna. Por conseguinte, submeteu-os a uma prova, a fim de que optassem conscientemente pelo Bem verdadeiro. Parte dos anjos aderiu realmente ao Sumo Bem e foi definitivamente confirmada na graça e na amizade de Deus. Outra parte, porém, abusando do livre arbítrio, mostrou-se infiel; pecou, e sofre as consequências disto, vivendo avessa ao Criador e infeliz (quem poderia ser feliz, longe do único Bem Indeficiente?). Cf. Apc 12, 7.9; 2 Pdr 2,4; Jud 6; Jo 8,44.
Pode-se afirmar que o pecado dos anjos consistiu em soberba (cf. 1 Tim 3,6; Eclo 10,15; Tob 4,14). São Tomás julga que quiseram atingir a sua bem aventurança final rejeitando todo auxílio divino. Suarez (+1617) propôs uma tese que se propagou assaz: os anjos pecaram por invejar os homens; de modo especial, invejaram a união da natureza humana com o Filho de Deus no mistério da Encarnação, união que eles teriam desejado para a natureza angélica. Tal sentença é meramente conjetural, embora plausível.
Após o pecado, os anjos maus estão excluídos da visão de Deus face a face, para a qual o Criador os destinou. É esta a sua pena máxima, a qual acarreta tremenda dilaceração de seu intimo ser; nos demônios a natureza permanece espontaneamente voltada para Deus, que a criou; não pode deixar de tender veementemente para o seu Senhor, mas se vê violentada pela vontade livre do respectivo sujeito que se alheou de Deus. Tal estado é definitivo. Deus, a rigor, poderia restaurar os demônios na amizade com o Criador; mas, para o fazer, teria que intervir na livre vontade destas criaturas, violentando-a. A opção a que foram sujeitos os anjos no início de sua existência, devia ter caráter definitivo (à diferença do que se deu ou dá com o homem, que na terra vai aos poucos concebendo o bem e optando por ele, estando sempre sujeito a reformar suas decisões na medida em que mais claramente apreende o que é o bem); os anjos têm inteligência muito mais penetrante que a dos homens; por isto, logo no início de sua existência, com uma só intuição puderam claramente ver o programa que deviam abraçar; nada lhes ficava obscuro ou oculto. Sua primeira decisão, por conseguinte, baseada em pleno conhecimento de causa e tomada com todo o empenho de sua personalidade, devia por isto ser definitiva (em caso contrário, a dignidade dos anjos seria vilipendiada; ser-lhes-ia denegada a responsabilidade de seu ato). Uma vez tomada essa decisão, quer para o bem, quer para o mal, Deus a respeitou e respeita; não mutila a liberdade de arbítrio que Ele concedeu, permitindo, em consequência, que cada criatura goze da sorte definitiva que ela mesma escolheu.
Em outros termos: sempre que o anjo quer alguma coisa, ele a quer de maneira irrevogável; por isto os anjos maus ou demônios após o pecado não se querem em absoluto converter para Deus, embora sintam dolorosamente as consequências de sua aversão. Já que o Criador, da sua parte, não os quer violentar, compreende-se que a sorte dos demônios seja definitiva; para eles não hã conversão (não se julgue, porém, que Deus negue o perdão a quem lho peça sinceramente).
Verdade é que os origenistas (discípulos de Orígenes) nos séc. V/VI e outros escritores cristãos, entre os quais recentemente Giovanni Papini, defenderam a reabilitação final dos anjos maus; sua tese, porém, errônea como era, não prevaleceu. Papini submeteu-se finalmente à doutrina da fé e morreu em santa paz com a Igreja.
Enquanto dura a história deste mundo, os anjos maus procuram arrastar os homens para a sua desgraça (eles não querem. ser nossos irmãos); todas as suas volições são más, pois sua vontade foi totalmente viciada pelo erro inicial. Tentam o homem de múltiplas maneiras (cf. Jo 12, 2.27; At 5,3; 1 Pdr 5, 8), dispondo dos recursos de uma inteligência muito mais perspicaz do que a nossa; em consequência, produzem fenômenos maravilhosos (preternaturais) aos olhos do espectador humano e podem até proporcionar aos homens vantagens materiais para melhor os seduzir.
Sua atividade, porem, está sujeita às soberanas disposições da Providência, que só lhes permite agir limitadamente, ou seja, em vista de purificar e consolidar as virtudes dos homens, em particular a humildade; toda tentação é assim providencial, e acompanhada da graça necessária para que a criatura não sucumba.