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Reformas dentro da Igreja?

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Quando se trata de aplicar a idéia de «Reforma» à Igreja, impõe-se uma distinção de importância capital:

A Igreja como tal, em sua estrutura e em seus ensinamentos essenciais, não é reformável. São Paulo a chama «Esposa de Cristo sem mancha nem ruga» (cf. Ef 5,25-27). A Igreja não peca, mesmo quando seus filhos mais altamente colocados pecam; a Igreja, por seu magistério oficial, é a primeira a reconhecer e repudiar o pecado de seus filhos. Sendo assim, compreende-se que os filhos da Igreja é que podem precisar de reforma (reforma de costumes e disciplina), e não a Igreja em sua estrutura e seu dogma.

Com outras palavras, deve-se dizer: a Igreja não é simplesmente uma sociedade humana, que consta apenas da soma de seus membros.

Ela é, sim, uma entidade divino-humana; é, por assim dizer, a continuação do mistério da Encarnação. Possui, por conseguinte, uma face visível dada e caracterizada pelos homens que se Lhe incorporam e que a representam perante o mundo, de geração a geração. Tal face visível ou humana, porém, não esgota toda a realidade da Igreja; esta conserva sempre em seu âmago o tesouro da verdade e da vida de Cristo, tesouro que não está sujeito a vicissitudes e que, através da hierarquia visível, se comunica sempre puro ao mundo (embora tenha que passar pelas mãos de homens ora mais, ora menos santos).

Ora acontece que há setores na Igreja nos quais o aspecto humano ou a humanidade dos filhos da Igreja é de maneira especial chamado a desempenhar funções marcantes; são os setores do culto (Liturgia com sua linguagem, seu cerimonial, seus horários …), da educação, dos estudos humanistas e religiosos, dos métodos de apostolado… Tais setores dependem muito das circunstâncias da história e da cultura nas quais se acha a Igreja em determinada época. Por isto são periòdicamente sujeitos a reforma; torna-se mesmo necessário renová-los, atualizá-los, de acordo com a evolução da vida na sociedade profana, a fim de que os cristãos possam ser sempre «o sal da terra» e «a luz do mundo», como diz o S. Evangelho (cf. Mt 5,13-16).

Consequentemente, é licito falar de reformas na Igreja (note-se a forma de plural, que lembra setores particulares), ao passo que desarrazoado é preconizar reforma da Igreja; a Igreja como tal não pode ser sujeito de reforma; só o podem certos setores periféricos da Igreja. Compreende-se então por que merece rejeição a obra de Lutero e seus companheiros no séc. XVT : visava reformar a estrutura e o dogma que o próprio Deus comunicou à Igreja e que, por isto mesmo, são indefectíveis e irreformáveis. O mesmo não se dá com um Concilio Ecumênico, como será o n Concílio do Vaticano : este tem em vista os setores periféricos em que certos pronunciamentos da Igreja poderiam levar mais em conta a vida moderna, … certas normas e táticas precisariam de ser atualizadas ou dinamizadas, sacudindo-se assim a rotina ou a poeira da caminhada cotidiana, que não pode deixar de se acumular sobre a face humana ou sobre os homens da Igreja.

Vê-se, portanto, que se requer certo tino para distinguir entre autênticas (construtivas) e falsas (destrutivas) reformas dentro da Igreja.

Poder-se-iam estabelecer critérios característicos das genuínas reformas?

— O Pe. Yves Congar O. P. propõe as quatro seguintes notas, que bem parecem essenciais a qualquer reforma sadia que se queira empreender dentro da Santa Igreja.

1) Dar primazia à caridade e ao intuito pastoral (apostólico) sobre qualquer «bela idéia».

Que quer isto dizer?

Considere-se que todo reformador é alguém que concebe uma «bela idéia», um plano grandioso ou o ideal, ao qual ele se propõe adaptar a realidade presente «deformada». Esse homem pode-se deixar empolgar pela sua bela idéia a ponto de lhe subordinar todo e qualquer outro valor (como sejam os da caridade, das relações fraternas e humanas, da edificação do próximo, da salvação das almas); torna-se unilateral. Então os seus empreendimentos vem a ser destrutivos em vez de se tornar construtivos; dividem, separam, provocam litígios e escândalos.

Todo reformador, dizem os estudiosos, é um simplificador; nisto está a sua força, mas está também o seu perigo. As heresias geralmente nasceram do fato de que alguém isolava do conjunto da Revelação Divina uma determinada verdade e a afirmava unilateralmente ou exageradamente, sem levar em conta a capacidade de assimilação das pessoas a quem pregava.

Em outros termos ainda, todo reformador julga possuir uma missão, que o põe em imediato contato com Deus e o dispensa de dar contas aos homens; essa missão, o reformador tende a executá-la «a ferro e fogo» ou apaixonadamente. Caso ceda a esta tentação, certamente não faz a obra de Cristo; deteriora, em vez de reformar.

Não em vão tem-se dito que o ministério pastoral ou o contato com as almas é ótima escola de verdade; com efeito, dá a ver quais as proposições que possam e devam ser reivindicadas com fruto. Ao contrário, uma carreira meramente intelectual (de professor, escritor ou pesquisador erudito…) fecha a pessoa em si mesma e no mundo da abstração; desperta nela certo orgulho, que na vida prática só pode ser nocivo à sociedade, por mais que se recubra do fulgor da erudição. O reformador meramente intelectual é muitas vezes propenso a fazer dos conselhos evangélicos (dirigidos a quem Deus dá uma vocação e uma graça especial) verdadeiros preceitos obrigatórios para todos os homens; encontrando oposição, tal reformador constitui seu «grupinho» de fiéis, independentes da comunidade, eivados de orgulho (consciente ou inconsciente). «Se, em vez de ficar no coração, a pureza sobe à cabeça, ela produz sectários e hereges» (J. Maritain, Humanisme intégral 265).

Muito a propósito vêm também as palavras de Fénelon:

«Se quereis uma reforma séria, não a comeceis por fora… com uma critica áspera e altiva; realizai-a, antes, em vós mesmos… Quanto mais vos reformardes desse modo, tanto menos desejareis reformar a Igreja» (Lettres sur l’autorité de l’Église III ed. Didot, t. I pág. 226).

«As almas humildes e pacíficas, que não vivem senão de amor e recolhimento, são sempre pequeninas aos seus próprios olhos e inimigas da controvérsia; estão muito longe de erguer-se contra os seus pastores. Seu estilo nada tem de acerbo ou picante ou desdenhoso. Não empreendem reforma seca, crítica e altiva que rompa a unidade e ouse afirmar que o Esposo (Cristo) repudiou a Esposa (a Igreja)… Não dizem que a Igreja se enganou durante vários séculos a respeito do sentido da S. Escritura e que não temem errar explicando os textos sagrados contrariamente às decisões dessa antiga Igreja» (Lettres… VII ed. Didot t. I pág. 233).

Tais palavras bem sugerem que todo genuíno reformador tem que começar a reforma em si mesmo, procurando, antes do mais, renunciar ao amor próprio e ao egoísmo, e despertar em si mais ardente amor a Deus e ao próximo; ser-lhe-á necessária esta atitude em todo o decorrer de sua obra, para se preservar de qualquer passo falso ou da procura de si mesmo dissimulada sob um falso zelo reformador.

Para terminar, sejam outrossim recordadas oportunas observações do Papa Pio XI:

«Toda reforma verdadeira e duradoura, em última análise, se derivou da santidade de homens inflamados e impelidos pelo amor de Deus e do próximo. Generosos, prontos para ouvir todo chamado de Deus e realizá-lo em si fielmente, estavam seguros de si mesmos, porque seguros de sua vocação; cresceram até tornar-se os luminares e reformadores do seu tempo. Ao contrário, onde o zelo reformador não jorrou da pureza do individuo, mas- foi expressão e explosão da paixão, ele anuviou em vez de aclarar, destruiu em lugar de construir, e mais de uma vez tornou-se ponto de partida para aberrações mais fatais do que os males que ele esperava ou pretendia remediar» (ene. «Mit brennender Sorge» de 14 de março de 1937. «Acta Apostolicae Sedis» 1937, pág. 154).

Dito isto, passemos à segunda característica de genuína reforma dentro da Igreja, nota que decorre homogeneamente da anterior e a completa.

2) Permanecer na comunhão do todo.

Toda autêntica reforma há de ser inspirada pelo Espírito de Deus ou pelo Espírito Santo. Ora o Espírito Santo exerce a sua atividade imediata, vivificando e animando o Corpo Místico de Cristo como tal, e não diretamente este ou aquele indivíduo. Cada um em particular é atingido pelo Espírito Santo na medida em que está vinculado ao Corpo de Cristo ou à comunhão com Cristo Cabeça e com os membros de Cristo (que são os irmãos na fé). Vê-se, pois, que as circunstâncias nas quais o Espírito Santo exerce a sua atividade são essencialmente comunitárias. Por conseguinte, quem se separa da comunidade, sequestra-se à ação do Espírito de Deus, e arrisca-se a fazer obra (ou reforma) satânica, em vez de fazer obra (ou reforma) genuinamente cristã. O verdadeiro reformador de qualquer setor da Igreja não se desliga desta nem se insubordina contra seus superiores hierárquicos, mas, antes, retira dos tesouros da própria Igreja, representada por tais e tais prelados, a vitalidade, assim como a pureza de doutrina e costumes, necessárias à realização do seu ideal.

Foi desse modo que procederam:

– São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão, arautos da pobreza no séc. XIII, época em que o mundanismo ameaçava contaminar a própria hierarquia da Igreja;

– Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, São Pedro de Alcântara, São Caetano de Tiene, porta-vozes do ideal da penitência no séc. XVI, época em que a mentalidade da Renascença embotava o espírito religioso de muitos prelados. Paradoxalmente (dir-se-ia), conservando a subordinação a seus superiores, tais santos conseguiram mudar o espírito desses mesmos superiores e prepararam a grande Reforma Católica do Concilio de Trento (1543-1565).

Claro está que esta segunda característica de autêntica reforma dentro da Igreja só pode ser posta em prática por quem tenha profunda fé. Mas não seria justamente a fé uma das virtudes que mais devem caracterizar o verdadeiro reformador?

De resto, a obrigação de submissão que incumbe a todo reformador, suscita, nos superiores hierárquicos, a obrigação de ouvir humildemente as observações que lhes sejam feitas. Contudo, ainda que não cumpram este seu dever, os superiores merecerão sempre o respeito e a reverência de seus súditos, pois permanecer em comunhão com o todo é lei de vida, cuja transgressão acarreta a morte para o subalterno, ao passo que ouvir os súditos não é condição essencial para que haja autoridade legítima.

Eis agora o terceiro critério:

3) Saber pacientar ou aguardar os momentos oportunos.

A Providência Divina apreende horizontes mais amplos do que aquele que o homem atinge. Sabe levar em conta a lentidão inerente às criaturas. Por isto pode julgar conveniente diferir até mesmo as mudanças salutares, aguardando que as criaturas, de acordo com o seu moroso ritmo de amadurecimento, ofereçam as condições humanas mais adequadas para receber alguma reforma. Sendo assim, o reformador que se obstine a executar incontinenti os seus planos, arrisca-se a não servir a Deus, mas, sim, a si mesmo e às suas paixões. Se as circunstâncias lhe indicarem que deve aguardar, o homem justo não hesitará em aguardar; procurará acomodar-se humildemente à exígua capacidade de seus irmãos na fé, a fim de não os escandalizar nem prejudicar espiritualmente (é claro que com o pecado, mas somente com o pecado, não será lícito pactuar).

Tenha-se em vista o caso de um catequista bem formado que, começando a trabalhar em determinada aldeia, ai encontra uma população fervorosa, mas muito simples e rude. Os exercícios de piedade daquela gente, principalmente os métodos de assistir à Santa Missa, não são os mais recomendados pela Liturgia; além disto, a igreja do lugar é cheia de imagens e flores artificiais… O catequista percebe que é preciso reformar essa piedade… Se contudo quiser bruscamente suprimir os costumes devocionais dos fiéis e exigir que cada qual passe a dialogar a S. Missa em latim, acompanhe toda a celebração com o Missal em mãos, reze Prima e Completas, etc., corre o grande perigo de destruir, em vez de construir e edificar : os fiéis, não estando (do ponto de vista humano, isto é, psicológico e cultural) preparados para assimilar as novas práticas de piedade, largarão as antigas e não adotarão as novas; deixarão simplesmente de rezar ou mesmo de praticar a Religião — o que será profundamente doloroso. A genuína reforma da piedade, no caso, há de ser feita devagar, mediante gradativo esclarecimento dos interessados, levando sempre em conta a lentidão intelectual dos mesmos. Donde se vê quão necessário é a todo reformador1 saber esperar com paciência os momentos oportunos, tomando a realidade como ela é, levando em conta antes o que há de positivo do que o que há de negativo em cada situação, e adaptando-se com humildade ao que é menos perfeito, a fim de paulatinamente conseguir os resultados mais perfeitos possíveis.

O próprio Jesus no Evangelho parece, mediante a parábola do joio e do trigo, incutir essa santa paciência : lembra o Senhor que pode não pertencer aos desígnios de Deus arrancar imediata e violentamente o joio (o mal existente no mundo); cf. Mt 13,29. Isto naturalmente não quer dizer que os bons pactuem com o mal e lhe dêem foros de legitimidade, mas apenas significa que nem sempre as soluções bruscas são as soluções de Deus e que os discípulos de Cristo devem muitas vezes tolerar não o pecado (isto nunca!), mas certos usos de seus irmãos mais rudes que poderiam ser substituídos por outros usos mais aprimorados.

A sabedoria popular ensina que «o ótimo é inimigo do bom». É o que se verifica também em assuntos religiosos : muitos reformadores, querendo obter imediatamente, e por meios drásticos, o que de melhor se poderia conceber, não conseguiram sequer atingir algum bom resultado.

A quarta condição de verdadeira reforma será:

4) Abandonar tradições menos antigas e autênticas em favor de tradições mais antigas e autênticas.

A história indica que os filhos da Igreja, no decorrer dos tempos, tendem a introduzir nas suas manifestações de vida certas práticas condicionadas pelas circunstâncias da época em que vivem. Tais práticas são muito oportunas no seu tempo. Contudo imprimem à vida cristã uma modalidade ou faceta contingente e um tanto periférica, porque dependente de situações transitórias da vida dos homens e da Igreja. Uma vez mudadas as condições históricas a que estão ligados, esses costumes tornam-se obsoletos, despropositados ou mesmo inoportunos. Daí surge a necessidade de os remover quanto antes e substituir por outras práticas. Estas deverão corresponder às circunstâncias e necessidades da nova época; deverão significar, por conseguinte, uma adaptação. Tal adaptação, porém, jamais poderá ser traição do patrimônio antigo; ao contrário, há de implicar volta às fontes e há de ser restauração dos valores antigos à luz de situações históricas novas. O que quer dizer : o reformador deverá sempre reconsiderar os elementos primitivos (que, por isto mesmo, são elementos centrais ou elementos de estrutura) do Cristianismo e procurar tirar da riqueza e da vitalidade desses mesmos elementos as expressões adequadas para a época em que vive o reformador.

O Pe. Congar observa sabiamente:

«A grande lei de uma reforma católica será, portanto, começar por voltar aos princípios do Catolicismo. Será preciso, em primeiro lugar, interrogar a tradição e colocar-se de novo nela. Tenha-se em vista, porém, que ‘tradição’ não significa ‘rotina’ nem pròpriamente ‘passado’».

Que seria então a Tradição, elemento tão importante no Cristianismo, mas tão sujeito a mal-entendidos?

— Continua o Pe. Congar:

«Sem dúvida, a Tradição tem um aspecto de passado;… ela traz o tesouro dos textos e das realidades do pretérito da Igreja; mas é muito mais do que isto… É a presença dos elementos iniciais do Cristianismo em todas as etapas do desenvolvimento deste» (Falsas y verdaderas reformas en la Iglesia. Madrid 1953, pág. 244).

Em outras palavras: a Tradição é o fio que une e articula as diversas fases da história da Igreja, fazendo que as etapas posteriores não equivalham a desvios ou deturpação em relação às anteriores, nem quebrem a unidade da obra de Cristo, mas, ao contrário, representem o desabrochar homogêneo de uma entidade viva.

Jesus mesmo no Evangelho, através de outra parábola, dignou-se ilustrar como se deve entender esse desenvolvimento que não é ruptura. Comparou, sim, a sua Igreja a um grão de mostarda que se vai transformando em arbusto e árvore para dar finalmente flores e frutos (cf. Mt 13,24-30). Nesse desenvolvimento o grão de mostarda toma sucessivamente novas e novas facetas; cada uma delas, porém, não é senão um aspecto do potencial contido no pequenino grão inicial. A mostarda tem que assumir, sim, novos e novos aspectos no decorrer dos tempos (se não, não seria uma entidade viva, mas algo de morto e fossilizado) ; contudo não toma qualquer aspecto (ela não se converte em cerejeira); qualquer de suas facetas está em ligação com as anteriores e com o tesouro de vida contido no gérmen inicial; ela absorve os elementos nutritivos que a terra e o ar lhe proporcionam, mas não os assimila todos : guarda apenas os que se possam integrar na sua estrutura característica, e elimina tudo que seria nocivo ou mortal para essa estrutura.

Assim é a Igreja de Cristo. Apresenta novas e novas expressões de si mesma sugeridas pelos costumes e as circunstâncias de cada época. Essas expressões, ao se suceder, não fazem senão manifestar virtualidades do tesouro do Evangelho que Cristo pregou; cada qual delas não é senão o próprio tesouro inicial em uma modalidade correspondente a determinada época ou cultura. A Igreja dialoga com o mundo; deste, recebe muita coisa, mas não recebe qualquer coisa; guiada pelo Espírito de Cristo, só recebe o que se possa enquadrar harmoniosamente dentro do patrimônio de doutrina e vida que seu Divino Fundador lhe entregou.

Destarte se entende que qualquer reforma dentro da Igreja signifique sempre uma certa volta à estrutura, uma restauração do que é primitivo e perene na Igreja e que talvez esteja empalidecido por modalidades de vida dependentes das circunstâncias de época já ultrapassada. Reformas desse tipo não serão desvios nem rupturas, mas, ao contrário, renovação e revigoramento. Mais precisamente, «reforma na Igreja» quer dizer : repensar a situação presente à luz de quanto sempre ensinou a Tradição da Igreja; mediante este exame, percebe-se, numa situação, o que é adventício, contingente, e o que é essencial, intangível. E fazem-se as modificações necessárias ao desenvolvimento da vida cristã, sem perda nem deterioração de valores.

Parece oportuno realçar que a «volta às fontes» incluída em qualquer genuína Reforma na Igreja está longe de se identificar com cega ou mecânica fidelidade ao passado; nem tudo que é antigo, pelo simples fato de ser antigo, merece restauração hoje em dia; tal mecanicismo tomar-se-ia alheio à vida, que é algo de elástico e dinâmico; suporia que a Igreja é múmia, e não o Corpo de Cristo vivo na terra. A vida sadia se caracteriza sempre pelo empreendimento de novas iniciativas e a aceitação de riscos, a fim de se poder afirmar e robustecer.

Somente os animais que não têm esqueleto é que precisam de uma couraça ou de uma crosta que os isole e imunize de influências do exterior, possibilitando-lhes um conservativismo rígido e, por isto mesmo, imperfeito; ao contrário, o ser vivo que tem esqueleto ou sólida estrutura interior não teme o contato direto com o mundo externo; antes, este contato vem a ser condição indispensável para que exerça o seu metabolismo e conserve a saúde.

Tal é a Santa Igreja; Ela não se fecha ao ambiente que a cerca, pretendendo assim conservar de maneira artificial seus valores; tal fechamento seria sinal de fraqueza. Mas a Igreja sabe adaptar-se sem se deteriorar. Justamente na procura e no encontro do meio-termo entre cega aceitação de tudo e mecânico fechamento a tudo é que se exerce a sabedoria que sòmente o Espírito Santo lhe poderia comunicar e de fato lhe comunicou sempre até nossos dias.

Eis, rapidamente discriminadas, as quatro notas características de qualquer verdadeira reforma dentro do Cristianismo. A hierarquia de prelados, assim como os teólogos que preparam o próximo Concilio Ecumênico do Vaticano, têm consciência disto. Daí a meticulosidade com que vêm procedendo em seus estudos : o Santo Padre João XXIII, mediante cartas circulares e consultas, quis ouvir os pareceres è votos de todo o orbe católico (representado por seus bispos, suas Congregações Religiosas e suas Faculdades de estudos) a respeito dos meios de promover a vida cristã na hora atual; quis também, e quer, entrar em comunicação com os cristãos não-católicos (protestantes e ortodoxos) a fim de estar ciente de seus sentimentos e anelos. Mais ainda: o Santo Padre convocou, de todas as partes do mundo, os estudiosos católicos mais competentes de cada assunto, a fim de investigarem os documentos da Tradição e os confrontarem com os postulados da vida moderna, no intuito de delimitarem o que se poderia e o que não se poderia fazer para renovar a vida da Igreja sem a atraiçoar. E — além ou acima de todo esse trabalho humano — o Santo Padre tem pedido instantemente as orações dos cristãos, católicos e não-católicos, para que o Espírito Santo inspire, acompanhe e remate os esforços das criaturas em demanda do revigoramento da vida cristã no mundo inteiro!

É de crer que não será frustrado tanto empenho sincero em prol da santidade do Reino de Deus.

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