(Por: Monsenhor Hugonin, Bispo de Bayeux)
O Ensino em Paris no século XII
Estamos agora em pleno século XII, assistindo a um renascimento geral das ciências, das letras e das artes. Os mestres se multiplicam, as escolas rivais se elevam de todas as partes, professores ilustres aparecem e reúnem ao seu redor numerosos discípulos.
Entre as escolas célebres desta época as de Paris se colocam no primeiro lugar. Nenhuma oferece um ensino mais completo, nenhuma conta com tão grande número de estudantes e de mestres mais distintos, nenhuma goza de maiores privilégios. O trivium e o quadrivium são ensinados em toda a sua extensão; a medicina tem ali os seus doutores; o direito canônico e a teologia as suas cátedras públicas. Sua reputação é tão grande que chega-se de todas as partes do mundo para receber suas lições cheias de sabedoria. Lá nós encontraremos italianos, alemães, ingleses, suecos, dinamarqueses, e até mesmo eslavos não são desconhecidos em Paris.
Da mesma forma, nada iguala os títulos pomposos que lhe dão os autores contemporâneos. Paris é para eles a árvore plantada no paraíso terrestre, a fonte de toda a sabedoria, a chama da casa do Senhor, a Arca da Aliança, a Rainha das Nações, o Tesouro dos Príncipes. Em sua presença, Atenas e Alexandria empalideceriam.
Não foi, porém, somente a reputação dos mestres que trouxe a Paris esta multidão de estrangeiros, foi também a beleza de seus arredores, as honras que eram conferidas aos clérigos, as comodidades de todo gênero e a abundância de todos os bens. A escola episcopal não é mais a única que goza de celebridade; outras se elevam às suas alturas e participam de sua glória. Todas elas formam, ao longo do curso deste século, a mais brilhante Academia que dará daqui a cem anos nascimento à primeira Universidade. Nosso desígnio não será o de abraçá-las todas em um mesmo estudo. Ao contrário, dela visitaremos uma só, a Escola de São Vítor, e mesmo assim, nos limitaremos a assistir à sua fundação.
Três homens nos parecem ter especialmente concorrido para tanto: Guilherme de Champeaux, que reuniu os primeiros discípulos; Guilduíno, que foi o seu legislador;e Hugo de São Vítor, o primeiro doutor de quem conhecemos positivamente sua doutrina e seus métodos.
Primeiras origens de São Vítor
As origens de São Vítor de Paris exercitaram a sagacidade de muitos críticos. Os anais manuscritos desta abadia mencionam, entretanto, a existência ali de uma capela anterior ao XIIo século. A existência desta pequenina capela, anterior a Guilherme de Champeaux, é, entretanto, incontestável. Se acreditarmos em Simon Gourdan, autor da “História dos Homens Ilustres de São Vítor”, esta capelinha servia àqueles solitários piedosos que vinham, longe do tumulto da cidade, consagrarem-se à oração e à meditação das verdades cristãs.
Esta prática não era nova. Já nos primeiros séculos da Igreja, e antes da fundação dos primeiros mosteiros, as grandes cidades tinham as suas ermidas. Antioquia no Oriente, Roma e Milão no Ocidente, estas cidades nos fornecem mais de um exemplo. Suas ermidas não estavam submetidas a uma regra comum. A vida nelas estava dividida entre a oração, a meditação e o trabalho manual.
De qualquer maneira, apesar das controvérsias existentes sobre outros aspectos da questão, é uma coisa certa que não é senão a Guilherme de Champeaux que remonta a escola de São Vítor que estamos nos propondo a conhecer.
Primeiros anos de Guilherme de Champeaux
Guilherme de Champeaux, assim chamado por causa do nome do local de seu nascimento, foi arquidiáceno e estudante da Igreja de Notre Dame de Paris. Estudou teologia sob a orientação de Anselmo de Laon, que havia sido discípulo de S. Anselmo. As lições de um mestre tão bom foram como uma semente ditosa depositada em um campo fértil. O discípulo de Anselmo foi um dos sábios professores que viriam a ilustrar a escola de Paris. Ele soube dar-lhe, sobre as suas rivais, uma superioridade que ela não havia tido antes e que soube posteriormente conservar para sempre.
Jovens provenientes das províncias as mais afastadas, e mesmo de países estrangeiros, para aí vinham ávidos de escutar o célebre professor cujo nome despertava em todo lugar sentimentos de respeito e admiração. O próprio Abelardo, depois de ter percorrido as escolas mais renomadas, fixou-se em Paris por não ter encontrado em lugar algum mestre mais sábio e mais hábil.
Nos claustros de Notre Dame Guilherme ensinava retórica, dialética e teologia, circundado pela estima de seu bispo Galon, do amor e do respeito de seus discípulos, e da consideração do clero. Em 1107 foi honrado com uma prova de estima ao ser chamado para o Concílio de Troyes convocado e presidido pelo Papa Pascal II.
Porém, se ele se deixou seduzir pelo brilho de tanta glória, como parece dar a entender a carta de Hildeberto de Mans, a sedução não durou muito. Em 1108 Guilherme abandona a sua cátedra e seu arquidiaconato para se retirar em São Vítor onde toma o hábito de cônego regular de Santo Agostinho. Guilduíno, Godofredo, Roberto, Goutier, Tomás e vários outros de seus alunos o seguiram em seu retiro.
Origem da escola de São Vítor
Ao se retirar para São Vítor, a crônica de Morigny não nos apresenta Guilherme de Champeaux simplesmente como um homem bastante versado nas Sagradas Escrituras, mas também como um homem “cheio de zelo, de piedade e de religião”. Retirando-se para São Vítor, Guilherme renunciou ao ensinamento e aos aplausos da escola; quis viver somente com Deus na meditação das verdades eternas.
Retirando-se para São Vítor, Guilherme renunciou ao ensinamento e aos aplausos da escola; quis viver somente com Deus na meditação das verdades eternas. Seus antigos alunos, porém, não puderam consentir com o seu silêncio. Solicitaram-lhe que continuasse suas aulas mesmo no retiro que havia escolhido, e o bispo de Mans achou por bem unir suas instâncias àquelas de tantos amigos, escrevendo ao novo solitário uma carta de que possuímos o texto inteiro: “Vossa vida e vossa conversão”, diz o bispo, “encheram nossa alma de alegria e a fizeram estremecer de felicidade”.
Ele o felicita em seguida por ter abraçado a verdadeira filosofia. Mais adiante acrescenta: “Mas de que serve uma sabedoria encoberta e um tesouro enterrado? O ouro melhor brilha ao dia do que nas trevas, e as pérolas não diferem de pedras vis se não são expostas aos olhos. A ciência que se comunica aumenta; não estanqueis, pois, o regato de vossa doutrina, mas segui o conselho de Salomão, e que vossas águas se dividam sobre as praças públicas”. Guilherme não pôde resistir a pedidos tão amáveis e tão insistentes. Retomando suas lições, deu origem à célebre Escola de São Vítor de Paris.
Guilherme é elevado a bispo; Morte de Guilherme
Foi nesta mesma época que Guilherme foi elevado à sede episcopal de Chalons. Daí para a frente sua vida se tornou bastante ativa. Mostrou-se grande no episcopado como havia-se mostrado sábio e competente nas cátedras públicas, tornando-se a alma de todos os concílios, tão numerosos nesta época nas Gálias.
São Bernardo o escolheu para receber de suas mãos a bênção de abade. Seu episcopado foi, entretanto, de uma duração extremamente curta para o bem e a glória da Igreja. Guilherme de Champeaux morreu em 18 de janeiro de 1121, após haver governado a diocese de Chalons durante sete anos e seis meses.
Temos de sua mão um pequeno tratado sobre a alma, um opúsculo sobre a Eucaristia publicado por Mabillon e uma coletânea de sentenças contidas em um manuscrito inédito, que se encontra na Biblioteca Imperial, sob o número 220 do fundo de Notre Dame. Tais escritos, porém, são insuficientes para nos fazer conhecer a doutrina de Guilherme.
Guilduíno abade de São Vítor
Antes de abandonar seu retiro, Guilherme havia confiado a comunidade de São Vítor a Guilduíno, o mais querido de seus discípulos.
Guilduíno era nativo de Paris, gozando de uma justa reputação, que ele havia adquirido mais ainda pela sua sabedoria e virtude que pela sua ciência. Luís VI o escolheu para seu confessor e o tratou sempre com afeto filial. Sob a administração de Guilduíno a comunidade de São Vítor tornou-se uma abadia rica e poderosa. Nisto Luís VI o ajudou com uma munificiência verdadeiramente real, outorgando-lhe uma carta que é como que a carta de fundação de São Vítor.
Nesta carta Luís VI declara que depois de ter consultado os bispos e os senhores de sua corte, resolve estabelecer na igreja de São Vítor alguns cônegos regulares que se ocupem em orar a Deus por ele e pelo seu reino, aos quais ele dota e enriquece por sua liberalidade para que não se afastem deste santo exercício pela solicitude de prover às necessidades da vida. Com esta carta, Luís VI dava aos cônegos a inteira liberdade de escolha de seu abade, não sendo eles obrigados a pedir o consentimento do rei nem de outras pessoas. Entretanto, assim que tivesse sido feita a escolha do abade por eles mesmos, pelos membros de sua comunidade ou de alguma outra casa pertencente à sua ordem, eles teriam que apresentá-lo ao bispo de Paris para receber a bênção abacial. Não se faz, nesta carta, nenhuma menção da regra de Santo Agostinho.
A data desta carta tão importante é o quinto ano do reino de Luís VI, e o ano 1113 de Jesus Cristo: esta data coincide com aquela que pode ser lida em São Vítor no túmulo do mesmo rei. No ano seguinte o Papa Pascoal II confirma a nova fundação.
O aumento dos rendimentos da fundação permite que os cônegos de São Vítor se multipliquem. Ao morrer, Luís VI deixa como legado 2.000 livros a 20 abadias de sua ordem. No ano de 1138 eles já formam uma congregação considerável. Quando Guilduíno, o primeiro abade de São Vítor, veio a falecer, a ordem contava com 44 casas.
A história é testemunha, também, que os cônegos fizeram um bom uso de suas riquezas: foram consagradas ao amparo dos pobres e sobretudo dos jovens estudantes que o amor da ciência atraía a Paris. Há ainda hoje diversos documentos comprovando estas afirmações. Os cônegos de São Vítor tratavam com a mesma bondade estudantes franceses ou de qualquer outra nacionalidade. Entre eles estava Pedro Lombardo, para lá encaminhado a pedido de São Bernardo, o amigo mais devotado dos cônegos de São Vítor.
Caridosos e benfeitores para com aqueles que pediam o seu auxílio, os cônegos vitorinos se mostraram também respeitosos e devotados para com os bispos de Paris. Foram seus mais sábios conselheiros, os mais firmes apoios de sua autoridade, que eles também frequentemente compartilhavam, e os mais zelosos defensores de seus direitos.
A esta conduta deveram a estima e a confiança de todos. Os outros seus contemporâneos celebraram sua piedade e sua ciência. O Papa Inocêncio II, em uma carta endereçada a Estevão, bispo de Paris, louva sua religião, sua regularidade, sua fiel observância das regras canônicas e da disciplina da Igreja, dizendo que sua conduta dá glória a Deus e que o seu exemplo edifica os povos.
Jacques de Vitry, em sua História Ocidental, louva sua humildade, sua santidade e sua doutrina:
Esta congregação”, diz ele, “é como a chama do Senhor elevada sobre o candelabro. Ela ilumina não somente a cidade, mas também os lugares mais afastados; ela ensina os povos a conhecer a Deus; ela os incentiva a amá-lo. Desde sua origem”, continua Jacques, ela foi ornada e embelezada por alguns doutores parisienses, homens literatos e honestos, que brilharam em seu meio como estrelas cintilantes, ou como pedras preciosas”.
Várias dioceses quiseram possuir religiosos cuja reputação era assim tão grande e sua vida tão exemplar. Os grandes homens que se formaram em seus meios justificaram esta reputação. A abadia de são Vítor deu à Igreja sete cardeais, dois arcebispos, seis bispos, cinquenta e quatro abades estabelecidos em diversos lugares e outros homens que adquiriram uma merecida reputação em todos os ramos da ciência cultivada nesta época.
O governo dos cônegos de São Vítor
Os desígnios de Luís VI se cumpriram; os cônegos de São Vítor, enriquecidos pela liberalidade de seus poderosos e generosos protetores, puderam se dedicar em paz aos seus estudos e aos exercícios da vida religiosa. Estas riquezas, porém, fariam elas próprias nascer entre eles a dispersão e a desordem, se não estivessem submetidos a uma sábia disciplina e se uma forte constituição não houvesse mantido no mosteiro uma perfeita regularidade. Esta foi a obra de Guilduino.
A constituição e suas regras nos foram conservadas até aos dias de hoje, mas neste trabalho somente alguns de seus detalhes serão de nosso interesse.
O superior dos cônegos era o abade, que devia ter entre eles o lugar de pai. Sua eleição se fazia com uma grande solenidade; quando de sua morte, os irmãos jejuavam e guardavam silêncio até seus funerais.
Após as cerimônias das exéquias, o prior tocava um sino convocando a todos para o capítulo. Sete entre os membros mais distintos eram escolhidos então para formarem um conselho; entre eles deliberariam e escolheriam o religioso que julgassem mais capaz de governar a comunidade; os demais permaneceriam em oração. Era proibido que os cônegos se reunissem antes disso entre si para tratarem da próxima eleição. Se os eleitores não podiam chegar a um acordo, aumentava-se o seu número.
Assim que a escolha do conselho caía sobre um dos cônegos, reunia-se o capítulo e o membro mais velho anunciava haver sido eleito tal homem, prelado de tal ou qual casa. O eleito era conduzido à cadeira do abade onde recebia a homenagem de todos os irmãos.
No dia seguinte, todos os que faziam parte de sua obediência dirigiam-se ao capítulo e, prostrados diante do novo abade, este lhes dirigia a pergunta:
Prometeis a mim a obediência que me deveis, segundo as regras de Santo Agostinho, e segundo as promessas que fizestes no dia de vossa profissão?” No capítulo geral seguinte à eleição o abade por sua vez fazia também a sua promessa: “Eu, fulano de tal, humilde abade de São Vítor, salvo a liberdade, os privilégios e os demais direitos de nossa igreja, prometo obediência ao capítulo geral e fidelidade por mim e por nossa casa”.
A eleição terminada, o prior, o sub prior e alguns irmãos dirigiam-se ao bispo, apresentando-lhe o abade eleito e marcando o dia em que iria receber de sua mãos a bênção abacial.
O dia fixado, os religiosos permaneciam no coro e esperavam em silêncio o retorno do abade. Este voltaria entrando pela porta da igreja maior, atravessando o coro enquanto todos se prostravam.
Estas cerimônias imponentes eram naturalmente próprias para estimular a imaginação e despertar a fé daqueles homens simples. Eles viam na pessoa do abade o representante de Deus. O respeito que lhe era tributado lhes tornava a obediência mais segura e mais fácil.
Este respeito deveria manifestar-se também após as cerimônias. Ninguém poderia passar diante do abade sem saudá-lo. Com exceção do coro, levantava-se quando o abade entrava e não se sentava enquanto o próprio abade não o tivesse permitido.
O que se deve admirar aqui é a delicadeza que os pensamentos da fé inspiravam a estes bons religiosos que viviam ainda no meio de uma sociedade mal saída da barbaridade e que não se tinha ainda depurado da violência de seu caráter e da grosseria de seus costumes. Exemplos como estes não eram de fato inúteis para o próprio progresso da civilização.
A autoridade do abade era doce e soberana, mas não era nem arbitrária, nem sem controle. Ela devia ser exercida de acordo com as leis da ordem e sob a vigilância do capítulo geral e do bispo. Embora o cargo de abade fosse vitalício, ele poderia ser deposto ou mesmo expulso da comunidade se abusasse de seu poder.
O prior substituía o abade ou o auxiliava no exercício do cargo. Era escolhido pelo abade o qual deveria, para tanto, ouvir primeiro o conselho dos mais velhos. Era o prior o encarregado principal de vigiar a disciplina, e exercia esta vigilância sobre todos os demais cargos inferiores, embora não tivesse o poder de elegê-los ou destituí-los.
A biblioteca
Entre os diversos cargos e atividades previstos pela regra do mosteiro de São Vítor, interessam-nos aqui o ofício de bibliotecário, o trabalho dos copistas e as regras da escola anexa ao mosteiro.
Todos os livros do mosteiro estavam confiados aos cuidados de um bibliotecário. O bibliotecário possuía o seu catálogo e fazia duas ou três vezes por ano o recenseamento dos livros, examinando atentamente se eles tivessem sofrido algum dano e providenciando os reparos necessários.
Os livros preciosos não podiam ser emprestados sem a permissão do abade. Entre estes estavam todos os documentos e escrituras que diziam respeito ao mosteiro.
Era o próprio bibliotecário que fornecia aos copistas as coisas necessárias ao seu trabalho. O bibliotecário velava não só para que não lhes faltasse nada como também para que não copiassem senão as obras que tivessem sido indicadas pelo próprio abade. Todos aqueles que no mosteiro sabiam escrever deviam se submeter às ordens do bibliotecário se este julgasse que havia necessidade de seus préstimos.
No mosteiro cada cargo tinha seus regulamentos bem determinados e o trabalho de todos concorria para o estabelecimento de uma ordem perfeita. Esta ordem era o princípio e o guardião da paz e da tranquilidade de alma tão necessário para as especulações da ciência e para o progresso da piedade cristã.
De modo geral a regra prescrevia diversos exercícios de piedade e estudo que se alternavam com o trabalho manual, que deveria ser executado em rigoroso silêncio. Apenas os copistas estavam isentos do trabalho manual, e eram ordinariamente os clérigos ou os monges mais instruídos que eram convocados para este trabalho considerado nobre. Mas não era o amor das letras que inspirava este zelo: foram os pensamentos da fé, o desejo de conservar intactos e de multiplicar os exemplares dos santos livros e das obras dos Santos Padres da Igreja que foram os principais motivos de estímulo para a multidão de copistas que houve na história do monasticismo cristão.
Entre os cônegos de São Vítor este trabalho foi tido em alta conta. Os que se sentavam ao trabalho deveriam guardar entre si o mais rigoroso silêncio. Ninguém deveria perder o seu tempo andando de um lado para outro. Nenhuma pessoa entraria no lugar a eles reservado, a não ser o abade, o prior, o sub prior ou o bibliotecário. Se alguém quisesse fazer em particular uma comunicação inadiável a algum dos copistas, o bibliotecário tinha a permissão de conduzí-lo ao parlatório do mosteiro para uma troca rápida de palavras.
Em um grande número de mosteiros os copistas eram divididos em duas seções. Os primeiros copiavam. Os outros, os mais instruídos, revisavam e corrigiam as cópias. Ainda hoje temos um grande número de manuscritos onde se percebem os traços destas correções.
A função tão honrada de copista não era confiada ao acaso. O costume de São Vítor nos ensina que era o próprio abade que indicava quem a deveria exercer. Uma grande prática de ler textos antigos e um talento comprovado na arte de escrever conferiam o direito de ocupar uma cadeira no escritório. Quando alguém obtinha este cargo, deveria dirigir-se ao bibliotecário encarregado de distribuir o trabalho entre os copistas, que lhes prescrevia de copiar tal capítulo de tal livro, de começar naquela página e terminar naquela outra. Por uma disposição expressa de um decreto abacial, era proibido que o copista fizesse ele mesmo, para seu próprio uso, qualquer outra transcrição.
Foi devido a estas rigorosas disposições, escrupulosamente observadas, que nós devemos os belos manuscritos da idade média. Foi assim que se formaram as ricas bibliotecas de Saint Gall, de Bec, de York, de São Martin de Tournay, de Fulda, e, em particular, aquela de São Vítor.
A Escola de São Vítor
Percorrendo as constituições e as regras dos cônegos de São Vítor, percebe-se que ali não se menciona em nenhum lugar a escola de São Vítor. Somente pode-se ler que certas horas eram consagradas à leitura ou ao estudo. Mais do que isso, com exceção de uma conferência sobre matérias de piedade, ascese e a leitura pública, não encontramos menção alguma de aulas regulares estabelecidas nesta abadia. Não se pode daqui concluir que esta escola não existiu. Isto seria contradizer os autores da época que falam dela com elogios, e tornar inexplicável a produção de um tão grande número de obras de filosofia, teologia, gramática, história e mesmo de literatura que deram aos vitorinos uma grande fama de sabedoria e ciência. A única consequência que se pode tirar daí é que o autor do Liber Ordinis não reportou senão as regras mais gerais do mosteiro. Deveria haver outras mais partirculares para aqueles que se dedicavam ao estudo.
É coisa certa que Guilherme de Champeaux, rogado pelos seus amigos, e sobretudo por Hildeberto de Mans, retomou, em seu retiro, as lições de dialética, retórica e filosofia. Isto é atestado pelo próprio Pedro Abelardo.
Tolouse reporta que em uma antiga crônica da abadia de São Vítor, celebrava-se a santidade dos cônegos e o nome de seus estudantes:
“Havia”, acrescenta ele, “na mesma casa de São Vítor, cursos de letras. Eram ministradas aos jovens cônegos e mesmo àqueles que eram mais avançados em anos. Este uso data de Guilherme de Champeaux”.
Ele cita em seguida os sucessores de Guilherme na cátedra de São Vítor. O primeiro foi o bem aventurado Tomás, mártir de seu devotamento ao bispo de Paris. Veio em seguida Hugo de São Vítor e uma sucessão de outros até Teobaldo, este já contemporâneo de São Boaventura e São Tomás de Aquino. A partir desta data já não temos mais dúvida alguma: em São Vítor encontramos aulas de teologia e os mesmos exercícios públicos que na Universidade de Paris.
Entretanto, tanto os historiadores de São Vítor, como os próprios manuscritos que nós temos consultado, nos dizem muito pouco sobre o ensino que era lá ministrado. Foi para suprir esta lacuna que escolhemos, entre os professores desta escola, a Hugo de São Vítor, o primeiro dos quais possuímos as obras. Elas nos fornecerão, sobre este assunto, ensinamentos muito interessantes.
Nascimento e juventude de Hugo de São Vítor
O nome e a pátria de Hugo levantaram frequentes controvérsias. Houve quem afirmasse que o seu verdadeiro nome fosse Herman. Outros, considerando que nesta época o nome Hugo fosse desconhecido ou pelo menos muito raro na Alemanha, julgaram que ele deveria ter-se chamado Heymon, e que foi por ignorância que os franceses lhe deram o nome pelo qual nós o conhecemos hoje.
É um pouco mais difícil fixar o lugar de seu nascimento. Entretano, o autor de sua vida, o historiador de São Vítor, todos os escrivães desta abadia sem exceção, o segundo editor de suas obras, o epitáfio de seu túmulo, diversos autores e em geral todos os historiadores e os críticos até Mabillon lhe deram como pátria a Saxônia. Nós seguiremos, no relato a seguir, uma tese sustentada em 21 de dezembro de 1745 por Christian Gottfried Derling, o qual teve em suas mãos antigos manuscritos de Halberstadt, ignorados até então, que pensamos ter trazido à luz provas que nos parecem sólidas e que reportam detalhes da família e dos primeiros anos de Hugo dignas de interesse.
Hartingam foi uma das regiões mais célebres da Saxônia. Lá floresceu, no século XII, a família dos condes de Blankemburg, poderosa pelos seus ricos domínios e por sua influência.
Soube-se, todavia, que no fim do século XI um dos membros da família dos condes de Blankemburg faleceu deixando dois filhos, Hugo e Poppen.
Hugo abraçou o estado eclesiástico.
Poppen herdou o título e o domínio de seus pais. Sua administração foi ditosa, tendo governado a herança paterna até o início do século XII.
Três filhos sobreviveram a Poppen: Reinardo, Conrado e Sigfrido.
Sigfrido foi elevado à cadeira episcopal de Halberstadt.
Conrado sucedeu a Poppen no governo do condado dos Blankemburg. De sua esposa, que as crônicas não nomeiam, mas que lhe louvam o caráter e as virtudes, Conrado teve dois filhos: Hugo, que foi o nosso vitorino, e Burcardo.
Reinardo, o tio de Hugo que seria consagrado bispo, distinguiu-se desde cedo no estudo e nas letras. Seus pais assim resolveram enviá-lo a Paris para que pudesse prosseguir os seus estudos. Foi nesta época que Guilherme de Champeaux acabava de se retirar em Sào Vítor, e Reinardo o seguiu e acabou se tornando um de seus mais ilustres discípulos. Após ter-se formado em sua escola pelo estudo e pela prática das virtudes cristãs, Reinardo volta à sua pátria quando então foi elevado à dignidade episcopal em Halberstadt.
Mas na sede de Halberstadt Reinardo conservou pelo resto de seus dias uma grande estima pelos cônegos de São Vítor, os quais ele os fez vir à Saxônia para acender nos mosteiros que ele próprio havia fundado ou restaurado em sua diocese o amor pelo estudo e para estabelecer uma perfeita disciplina.
Mais tarde, foi Reinardo que exortaria Hugo, seu sobrinho, a frequentar nesta abadia vitorina na Saxônia as lições de ciência e sabedoria.
Reinardo era, pois, o tio de Hugo de S. Vítor. Conrado, o seu pai. Poppen, o pai de Conrado e avô de Hugo de São Vítor. Porém Poppen, avô de Hugo de S. Vítor, dissemos acima, tinha um irmão também chamado Hugo, que havia abraçado o estado eclesiástico. Este outro Hugo, pelos méritos da pureza de seus costumes e a inocência de sua vida, havia sido elevado a arquidiácono de Halberstadt. Em uma idade já avançada, entretanto, acabou cedendo aos pedidos do jovem Hugo e resolve acompanhá-lo em uma viagem a Paris onde ambos, o velho e o jovem Hugo, são admitidos na abadia de São Vítor. O velho Hugo foi benfeitor de São Vítor tanto quanto o jovem Hugo viria a ser a sua luz. A grande igreja do mosteiro de São Vítor foi então quase que totalmente construída às despesas do velho Hugo.
Hugo de São Vítor, o jovem, nasceu, portanto, em Hartingam, na Saxônia, filho de Conrado, conde de Blankemburg, no ano de 1096, e não em 1098, como quer Ellies Dupin. De fato, Osberto, cônego e enfermeiro de São Vítor e colega de Hugo, que nos deixou o relato tocante de sua morte, nos diz que Hugo morreu em 1140 com a idade de 44 anos.
Desde sua infância, Hugo mostrou ditosas disposições conferidas pela natureza. Seus pais viram nele as mais belas esperanças e resolveram não confiar sua educação senão a mãos hábeis, Reinardo, seu tio, bispo de Halberstadt, foi consultado sobre a escolha dos mestres que deveriam formá-lo na fé, nos estudos e na prática das virtudes. Naquela época, porém, na Alemanha, as únicas escolas para a juventude eram os mosteiros. O bispo Reinardo indicou para seu sobrinho o mosteiro de São Pancrácio de Hamerleve. Foi esta uma das fundações com que Reinardo havia enriquecido a sua diocese. Para lá ele havia chamado os cônegos de São Vítor, dos quais ele conhecia a piedade e os talentos. Sua confiança não foi traída: os vitorinos trouxeram para Hamerleve as virtudes religiosas e o amor pelo estudo. O mosteiro de São Pancrácio tornou-se para a inteira Saxônia uma escola de sabedoria e ciência. As cartas de fundação do bispo de Halberstadt nos mostram que foi frequentada por uma numerosa juventude.
Foi no meio deste movimento literário e científico, que deveria ser retardado pela guerra civil, que Hugo entrou no mosteiro de Hamerleve para começar seus estudos.
Hugo de S. Vítor manifestou, em uma tenra idade ainda, seu amor pela ciência. No início do livro sexto do Didascalicon, em uma das pouquíssimas páginas de suas obras em que ele fala de si próprio, Hugo escreve:
“Eu ouso afirmar que nunca desprezei nada que pertencesse ao estudo; ao contrário, frequentemente aprendi muitas coisas que outros as tomariam por frívolas ou mesmo ridículas”.
Em seguida, na mesma passagem, ele nos descreve diversas destas atividades de quando era ainda jovem estudante. Entre elas incluem-se estudos relacionados com a ampliação do vocabulário, como primeiro passo para compreender a natureza das coisas; resumir no fim do dia todos os raciocínios feitos durante o mesmo, para guardar na memória suas seleções e seus números; procurar sempre investigar a causa de tudo; anotar as disposições controversas das coisas; estar sempre alerta para distinguir o discurso de um orador do discurso de um sofista; cálculos matemáticos executados no chão com pedaços de carvão; cálculos geométricos; teoria musical; e afirma também haver passado numerosas noites contemplando as estrelas do céu. No fim, Hugo acrescenta:
“Algumas destas coisas são pueris, é verdade. Todavia não foram inúteis. Não estou te dizendo isto para jactar-me de minha ciência, mas para te mostrar que o homem que prossegue melhor é o que prossegue com ordem, não o homem que, querendo dar um grande salto, se atira no precipício. Assim como as virtudes, assim também as ciências têm os seus degraus.
É certo, tu me poderias replicar: ‘Mas há coisas que não me parecem ser de utilidade. Por que eu deveria manter-me ocupado com elas?’
Bem o disseste. Há muitas coisas que, consideradas em si mesmas, parecem não ter valor para que se as procurem, mas, se as olhares à luz das outras que as acompanham, e começares a pesá-las em todo o seu contexto, verificarás que sem elas as outras não poderão ser compreendidas em um só todo e, portanto, de forma alguma devem ser desprezadas. Aprende-as a todas, verás que depois nada será supérfluo. Uma ciência resumida não é uma coisa agradável”.
Esta vida tranquila e laboriosa teve para Hugo tantos atrativos que ele resolve consagrar-se à mesma definitivamente. Resolve abraçar a Regra de Santo Agostinho, apesar dos conselhos de seus pais em contrário. Tivesse, porém, se tornado o Conde de Blankemburg, teria se tornado ilustre pelo seu valor em algum campo de batalha, ou por sua sabedoria no governo de seu Condado, mas seu nome jamais teria chegado até nós. Agora, porém, seu nome está inseparavelmente ligado às coisas que não perecerão jamais, à ciência teológica da qual ele foi um dos restauradores, aos nomes imortais de Pedro Lombardo e de São Tomás de Aquino, que sempre o viram como ao seu mestre.
Hugo professor em São Vítor. Sua morte
Entretanto, as guerras políticas e religiosas que se elevaram sob o reinado de Henrique IV obrigaram o jovem Hugo a abandonar a sua pátria. Reinardo, seu tio, aconselhou-o a buscar em Paris a ciência e a paz que ele não mais podia encontrar na Saxônia.
Hugo então parte assim como em outra época o fez Abraão, dizem os seus antigos biógrafos. O velho Hugo, irmão de seu avô, consentiu em acompanhá-lo em seu exílio. Juntos percorreram a Saxônia, a Flandre e a Lorena. Em todo lugar foram acolhidos com hospitalidade e honra, por causa da nobreza de seus nascimentos. Chegará, enfim, em São Vítor de Marselha e depois em São Vítor de Paris, onde Hugo pode, de alguma forma, reencontrar seus antigos mestres e êmulos de seu trabalho.
Em São Vítor de Paris não sabemos quase nada da vida de Hugo, a não ser que continua seus estudos sob o priorado de Thomas, sucessor de Guilherme de Champeaux, e que depois disso sucedeu ele próprio ao seu mestre como diretor da escola de São Vítor, cargo que exerceu com brilho até a sua morte.
Osberto, cônego de São Vítor, onde exerceu as funções de enfermeiro, nos deixou um tocante relato dos últimos instantes de Hugo em uma carta a um outro cônego chamado João.
Sua memória durante bastante tempo foi muito querida aos cônegos de São Vítor. Seu nome é frequentemente citado nos seus anais com veneração e amor. Mas sua luz se estendeu bem além dos claustros de sua abadia. Hugo foi certamente um dos homens mais ilustres de seu tempo por suas virtudes e por sua ciência. Jacques de Vitry, em sua História Ocidental, depois de um elogio pomposo da comunidade de São Vítor e dos grandes homens que ela produziu, acrescenta:
“O mais célebre e o mais renomado de todos foi Hugo. Ele foi a harpa do Senhor, e o órgão do Espírito Santo: um símbolo de virtudes e um símbolo de pregação. Levou um grande número de cristãos à prática do bem pelo seu exemplo e pela sua pia conversação; dando-lhes a ciência pela sua doutrina tão doce quanto o mel”.
Tritheme o representa como um homem muito versado nas Sagradas Escrituras, sem igual entre os antigos em filosofia, como um outro Agostinho, como o mais célebre doutor de seu tempo, de um gênio penetrante, eloqüente em seu estilo, tão venerável pelos seus costumes quanto pelo seu conhecimento. Chega a atribuir-lhe alguns milagres. É certo que foi venerado por sua santidade e honrado por sua ciência. A posteridade, porém, que não pôde conhecê-lo senão por meio de suas obras, não pôde também desmentir o testemunho universal de seus contemporâneos.
Doutrina de Hugo de São Vítor
Aristóteles não reina sozinho na Idade Média; Platão teve os seus discípulos; e depois de Boécio, que parece ter querido reconciliar as duas escolas rivais, a cadeia de filósofos platônicos não foi nunca mais inteiramente quebrada. Hugo de São Vítor foi um dos anéis desta cadeia; ele professa a doutrina de Platão, não porém aquela que este filósofo ensinou, mas aquela que Santo Agostinho corrigiu, purificou e completou pelo dogma cristão.
Cultivava-se, porém, pouco, à sua época, a filosofia por ela mesma. A ciência sagrada era quase que a única matérica sobre a qual se exercia a atividade intelectual. Felizmente, porém, a teologia não é inimiga da filosofia: são duas irmãs que se dão as mãos, e as dão ao homem para conduzí-lo ao mesmo fim.
A simples exposição da doutrina de Hugo de São Vítor será um testemunho novo em favor desta verdade que tantos homens esclarecidos se esforçam hoje em dia em estabelecer. Nosso ponto de partida para tanto será a própria noção de ciência:
“A ciência”, diz Hugo, “é o resultado natural do exercício das faculdades da alma. Ela se divide em dois ramos principais, a teologia propriamente dita e a filosofia que abarca todas as artes”(1).
Estas duas partes da ciência se distinguem uma da outra pelo seu objeto: “Deus”, diz ele, “fez duas obras que abraçam a universalidade dos seres: a criação e a restauração. A criação é a produção do mundo e de todos os seus elementos. A restauração é a encarnação do Verbo e todos seus Sacramentos, aqueles que o precederam depois do início do mundo, e aqueles que o seguiram até a consumação dos tempos. Todos os santos que houve antes de sua vinda são como soldados que o precedem, e aqueles que vieram e que ainda virão depois dele são como soldados que o seguem. A ciência da criação, isto é a filosofia; a ciência da restauração, isto é a teologia”(2).
Se a filosofia e a teologia têm por objeto uma o conhecimento científico do mundo natural, e outra o conhecimento científico do mundo sobrenatural, elas são distintas, porque estes dois mundos são distintos; elas são unidas, porque estes dois mundos são a revelação do mesmo Verbo de Deus.
“A filosofia”, diz Hugo, “é o amor, o estudo e a amizade com a sabedoria, desta sabedoria que não tem necessidade de nada, desta sabedoria que é um espírito vivo, desta sabedoria que é a única e a primeira razão de todas as coisas. Este amor da sabedoria é uma iluminação de um espírito inteligente por parte daquela pura sabedoria que o atrai e o chama; é, ao que parece, um estudo da sabedoria divina e uma amizade entre esta mente pura e Deus”(3).
A filosofia é o “amor da sabedoria que de nada necessita”. Por estas palavras Hugo quer dar a entender a sabedoria divina. Ela é chamada de um espírito vivo porque nada pode obscurecer o que está impresso na razão divina; ela não está sujeita a nenhum esquecimento.
A filosofia, portanto, diz Hugo, é o conhecimento e o amor da razão ou da sabedoria de Deus manifestada pela criação. Esta sabedoria não é distinta de Deus: é sua inteligência, é seu Verbo, é o seu Filho eternamente unigênito no seio de seu Pai.
Em seu Comentário ao Evangelho de São João, Hugo explica esta passagem:”Todas as coisas foram feitas pelo Verbo, e nada do que foi feito foi feito sem ele; a vida estava nele” (Jo. 1, 3-4). Depois de reportar as duas versões deste texto, Hugo adota a de Santo Agostinho e diz:
“Todas as coisas foram feitas por ele, e nada foi feito sem ele; e tudo o que foi feito era nele vida. Assim como o artífice concebe em seu espírito um tipo que permanece e que não muda ao mudar a obra que exteriormente o manifesta, assim Deus, criador de todas as coisas, compreende, desde toda a eternidade, em sua sabedoria, todas as coisas que viria a fazer, e esta sabedoria é imutável. É isto que faz dizer ao evangelista que o que foi feito era nele vida, isto é, que Deus de quem provém todas as coisas, as previu desde toda a eternidade, e o que ele dispôs em toda a eternidade, sem mudança em si mesmo, o realizou no tempo. Assim, todas as coisas receberam a vida e a existência da sabedoria de Deus. É, portanto, justo dizer que em Deus elas eram vida porque de lá receberam a vida. Ou também lá estava a vida, porque tudo o que foi feito, foi feito segundo a sabedoria de Deus que é a vida de todas as coisas. Ela foi o exemplar de Deus, à semelhança de cujo exemplar todo este mundo sensível foi feito”(4).
Pode-se reconhecer neste comentário mais ao discípulo de Santo Agostinho que ao de Platão. Santo Agostinho desenvolveu a mesma doutrina ao comentar a mesma passagem, e ele o fez em circunstâncias que mostram de quanta importância isto era aos seus olhos. Não o fez, de fato, em algum sábio comentário, em algum tratado dogmático ou na presença de homens de elite exercitados nas meditações das ciências; foi, ao contrário, em um discurso popular, em uma instrução familiar e no meio de simples fiéis. Não se sabe o que mais admirar aí, a versatilidade do gênio do santo doutor, que se esforça por tornar sensível estas verdades tão sublimes, fazendo-as penetrar nas inteligências simples e às vezes até incultas, ou se a avidez de seus ouvintes, que não o largam enquanto não o entendem, e que, em seu entusiamo, o interrompem por meio de freqüentes aplausos.
ós desejamos comparar esta passagem com aquela de Hugo; isto nos fará conhecer como o discípulo soube se apropriar das lições do mestre:
“Todas as coisas foram feitas pelo Verbo, e sem ele nada do que existe foi feito. Mas como tudo o que existe foi feito por ele? O que foi feito era vida nele. Entretanto, se tudo o que foi feito era vida nele, nós não afirmamos que tudo é vida. Seria desonesto entender assim, e não podemos fazê-lo, com receio de que a sordíssima seita dos maniqueus se nos apresente e nos diga que uma pedra tem vida, que uma muralha é animada, que uma pequena corda, que a lã e os vestidos têm uma alma. É isto, com efeito, que eles ensinam em seu delírio. A terra foi feita, e ela não é vida. Mas há na própria sabedoria uma idéia espiritual pela qual a terra foi feita, e esta idéia é vida. Vou explicar isto do modo como me é possível. Um artesão faz uma arca. Ele possui esta arca primeiro em sua arte, ele concebe em seu espírito a idéia de uma arca, porque se ele não tivesse esta idéia, como a poderia executar? Mas esta idéia que está em seu espírito não é a arca que é vista pelos olhos. A arca, que em sua obra será visível, existe invisivelmente em sua obra. A arca material não é vida, embora seja real, mas a arca que há na arte é vida, porque a alma do artesão, onde estão todas as coisas antes que elas se manifestem, é vida. Assim também, irmãos caríssimos, a sabedoria de Deus continha todas as coisas em sua arte antes que tivessem sido feitas. É por isto que tudo o que foi feito por esta mesma arte em si mesmo não é vida; mas tudo o que foi feito é vida no Verbo de Deus. Externamente, são corpos; na arte, são vida. Compreendei, se podeis como”, conclui Santo Agostinho, “que vos disse uma grande verdade”(5).
Hugo está persuadido, assim como seu mestre, da importância desta doutrina. Ele a reproduz sob todas as formas em muitas de suas obras. No De Sacramentis ele diz: “Toda criatura possui uma causa e uma imagem na razão de Deus e em sua providência eterna; e é por esta causa e sobre o modelo desta imagem que ela foi criada em sua substância”(6).
Na meditação desta magnífica doutrina seu coração se inflama e seu espírito se exalta; ele não sabe como exprimir os sentimentos de admiração e de amor que se apresentam diante de sua alma:
“O verbo de bondade e a vida de sabedoria que fez o mundo”, diz Hugo, “se manifesta na contemplação da criação. O Verbo em si mesmo era invisível, mas se fez visível, e foi visto pelas suas obras”(7) . “Pudesse eu compreender a beleza das criaturas com tanta sutileza e narrá-la com tanta dignidade quanto é o ardor com que a amo! É para mim doce e agradável, e um inefável deleite tratar com frequência desta matéria. Nela simultaneamente a razão apreende o sentido, a alma dilata-se pela suavidade, o coração inflama-se pela emulação e, cheios de admiração, exclamamos com o salmista: ‘Como são belas as vossas obras, ó Senhor: o homem insensato ignora estas coisas, ele não as compreende'”(8). “O mundo é, de fato, um livro escrito pelo próprio dedo de Deus. Cada criatura é como um sinal, não por convenção humana, mas estabelecido pela vontade divina. O homem ignorante vê um livro aberto, percebe certos sinais, mas não conhece nem as letras nem o pensamento que elas manifestam. Assim também o insensato, o homem animal que não percebe as coisas de Deus, vê a forma exterior das criaturas visíveis, mas não compreende os pensamentos que eles manifestam. Assim como em uma única e mesma obra um homem admira a cor e a forma das letras, enquanto outro louva os pensamentos que elas expressam. É bom, portanto, contemplar assiduamente e admirar as obras de Deus, mas para aquele que souber converter a beleza das coisas corporais em uso espiritual”(9).
criação é, portanto, a manifestação do pensamento e da sabedoria de Deus, assim como a palavra é a manifestação do pensamento e da sabedoria do homem. O mundo é um imenso livro; o homem, portanto, deve ser neste livro, deve escutar este discurso, não somente por dedução, como quando nos elevamos do efeito até a causa, mas por contemplação, como quando nos elevamos do sinal à coisa significada, da palavra ao pensamento.
Esta era a ordem primitiva. Mas a inteligência do homem, enfraquecida pelo pecado, se detém até hoje no elemento sensível e grosseiro, no sinal exterior e material. A criação ela mesma se tornou tenebrosa, é um véu que cessou de ser transparente para a inteligência. Ela vive mais de sensações do que de verdades; a parte animal domina e mantém em cativeiro a parte inteligente. Foi por isso que Deus quis fazer, pela Encarnação, uma nova manifestação de seu Verbo, que foi ao mesmo tempo uma reparação e uma continuação da criação.
No Comentário de Hugo à Hierarquia Divina pode-se ler o seguinte:
“Dois sinais foram propostos ao homem nos quais pudesse ver as coisas invisíveis: um da natureza, e outro da graça. O sinal da natureza é o mundo sensível; e o sinal da graça é a humanidade do Verbo”(10) .
“Os anjos, cujos sentidos eram interiores, contemplavam as coisas interiores e por estas as exteriores. Os animais brutos, cujos sentidos eram exteriores, alcançavam as coisas visíveis exteriores, mas não mediante elas as invisíveis que eram interiores. Assim, havia uma criatura cujos sentidos eram totalmente interiores, e outra criatura cujos sentidos eram totalmente exteriores. Entre ambas foi posto o homem, possuindo sentidos interiores e exteriores, interiores para as coisas invisíveis e exteriores para as visíveis, para que contemplasse entrando e contemplasse saindo: contemplasse interiormente a sabedoria, exteriormente as obras da sabedoria e, contemplando a ambas, em ambas encontrasse alimento. Os sentidos do homem foram feitos para que o homem pudesse se dirigir a ambos e em ambos encontrasse alimento. Iria pelo conhecimento, alimentar-se-ia pelo amor”(11).
Estes dois sentidos de que Hugo nos fala são evidentemente o sentido e a apreensão da verdade. O sentido corresponde ao mundo físico, e a idéia ao mundo espiritual, que não é outro senão o próprio Verbo de Deus de quem o mundo físico não é mais do que a manifestação. O sentido alcança o sinal; a idéia, a coisa significada. Assim, a sensação liga o corpo, de quem o mundo físico não é mais do que uma extensão, à alma; da mesma maneira, a idéia liga a alma a Deus.
Hugo desenvolve estes pensamentos nesta linguagem alegórica que lhe era tão familiar:
“Moisés”, diz ele, “sobe a montanha, e Deus desce sobre a montanha. Se Moisés não tivesse subido, e Deus não tivesse descido, ambos não se teriam encontrado. Grandes sinais há em todas estas coisas. O espírito sobe, e Deus desce; ele sobe pela contemplação, e Deus desce pela revelação. Esta também foi a escada de Jacó; apoiava-se sobre a terra e sua extremidade tocava o céu. A terra é o corpo; o céu é Deus. Os espíritos se elevam pela contemplação das coisas inferiores às coisas superiores, do corpo ao espírito, por meio da contemplação e da revelação. Deus, porém, se apóia sobre a extremidade da escada para que as coisas superiores se inclinem em direção às inferiores”(12).
Tal é, segundo Hugo, o plano de Deus na primeira manifestação de sua sabedoria através do mundo natural, o primeiro livro no qual ele escreveu seu nome, para que toda inteligência pudesse lê-lo e, em o lendo, o conhecesse, e em o conhecendo, o glorificasse. Mas Hugo acrescenta:
“A sabedoria quis, depois disso, que fosse ainda escrita de uma outra maneira, de uma forma ainda externa, para que aparecesse mais manifestamente e fosse conhecida mais perfeitamente, e para que o olho do homem fosse iluminado para esta segunda escrita, já que havia se obscurecido para a primeira. Fez, então, uma segunda obra após a primeira, a qual era mais evidente do que a anterior, porque não somente demonstrava, mas também iluminava”(13).
A criação e a encarnação são assim as duas grandes obras de Deus. Elas são, tanto uma quanto a outra, a manifestação de sua inteligência e de seu Verbo. Mas na primeira nós o conhecemos pelas suas obras; na segunda, o Verbo vem pessoalmente até nós. A primeira é um livro escrito pela sua mão, a segunda é antes uma palavra saída de sua boca.
O que é a arte? O que é o artista? Que são as suas obras, senão palavras reveladoras de uma idéia? O artista toma a matéria bruta, um mármore, uma pedra; ele a trabalha, lhe dá forma, lhe confere um semblante. Mas há um tipo interior em que ele fixa o olhar de sua inteligência e que guia sua mão e sua arte. A matéria a exprime, a revela, e, se soubermos ler esta escrita, se houver em nós algo de artista, ao contemplar sua obra, contemplamos sua idéia, participamos de sua alegria.
Mas este tipo em si mesmo é algo de real? Será uma pura imaginação, uma simples modificação de minha alma? Não, o sentimento do belo é de uma ordem mais elevada que as alegrias materiais. Se este tipo possui uma realidade objetiva, será a inteligência que a criou? Mas como o homem, que não pode produzir a matéria informe, criaria esta idéia que é mais excelente do que a matéria, pois é ela que lhe dá sua unidade e sua beleza? Resta somente reconhecer que o artista nada mais faz do que apenas contemplá-la. Ela não era porque ele a quis; ela era antes que ele a descobrisse; ela era eternamente a inteligência divina. Deus as possui como um bem próprio e natural; o homem as possui como um bem alheio que lhe é comunicado.
Nós não podemos senão indicar estes pensamentos que emergem naturalmente da doutrina de Hugo e que a completam. Será suficiente para nós mostrar como ele concebeu o plano geral de Deus em todas as suas obras, e diante deste plano a distinção e a união do mundo natural com o mundo sobrenatural. Eles de distinguem e se unem no seu objeto, que é a verdade; eles se distinguem, porque Deus realizou uma dupla manifestação dessa verdade na Criação e na Encarnação; eles se unem, porque não há senão uma só verdade eterna, uma só luz que ilumina todo homem que vem a este mundo, uma só sabedoria e um só Verbo de Deus. É a unidade, a identidade e a inalterável pureza da verdade que une todas as inteligências entre si, que as une a Deus, e que estabelece, no mundo intelectual, uma santa e viva harmonia.
É evidente que Hugo reconhece o valor da razão natural, e que a revelação divina, longe de a destruir, a aperfeiçoa. No capítulo 5 do De Sacramentis ele afirma:
“Importa considerar como a mente humana, que está tão longe de Deus, pode compreender tanto de Deus, ou diretamente pela sua própria razão, ou auxiliada pela revelação divina”.
Estas duas revelações distintas fornecem os princípios distintos de duas ciências que se harmonizam entre si como elas, mas que não se confundem jamais. A inteligência humana, recebendo a verdade, adere a ela, e a ela aderindo, entra em possessão da vida natural ou sobrenatural, de acordo com que esta verdade, que lhe é comunicada, pertença a uma ou outra destas ordens. Mas sua atividade não se confina a este primeiro ato; o homem estuda esta verdade que possui, a contempla, a analisa, a aprofunda, a torna mais sua, se ilumina, se inflama e se vivifica pelos seus raios; ele se transforma, de alguma maneira, nela própria: como um puro cristal que se ilumina pelos raios de sol, espalhando ao seu redor luz e calor, e, sem perder a sua natureza, se torna como um outro sol. Este trabalho é o trabalho da ciência. Assim, a ciência é o resultado do exercíco de nossas faculdades; é essencialmente a obra do homem, como a inteligência e a fé são essencialmente a obra de Deus.
Método pedagógico de Hugo
O método de Hugo está ligado naturalmente aos princípios gerais de sua doutrina. De fato, se todos os seres são palavras reveladoras, se todas as obras exteriores de Deus formam um grande livro que exprime sua sabedoria e sua verdade, nós devemos chegar ao seu conhecimento assim como se chega pela palavra ao conhecimento do pensamento, e pelo sinal ao conhecimento da idéia, isto é, pela meditação e pela contemplação. É com base nisto que Hugo se põe a traçar as suas regras. Nós as encontramos em mil lugares de seus escritos. Ele próprio as recolheu e as resumiu em um pequeno tratado intitulado “Sobre o Modo de Aprender e de Meditar”, o qual nos foi conservado por Dom Martinho.
O texto deste pequeno, mas precioso trabalho, encontrado na PL 176 de Migne, traz o título “De modo dicendi et meditandi”. Considerando, porém, o desenvolvimento de todo o opúsculo, e, ademais, seus parágrafos iniciais, julgamos que o original latino estaria mais correto grafado “De modo Discendi et Meditandi”, que talvez seja o seu verdadeiro título (Nota do Tradutor)
Três coisas são necessárias ao verdadeiro estudante para realizar progressos na ciência: certas disposições na vontade, certas qualidades na inteligência, e uma sábia cultura.
A primeira disposição é uma grande estima pela verdade, que nos leve a não negligenciar nenhum conhecimento; a segunda é não se envergonhar de aprender, mesmo com aqueles que nos são inferiores; a terceira é a de praticar a humildade quando já possuirmos a ciência.
O engenho se desenvolve pela leitura e pela meditação, que são os dois grandes meios pelos quais a verdade se comunica à inteligência.
A meditação começa pela leitura, mas ela não é submetida às suas regras.
A leitura é o começo da ciência, e a meditação o seu coroamento. Aquele que ama a meditação e que se torna familiar com ela por um exercício freqüente prepara para si mesmo uma vida agradável e encontrará, na tribulação, uma grande consolação. É ela sobretudo que separa nossa alma do ruído tumultuoso das coisas terrenas, e que nos faz gozar, ainda nesta vida, como que as primícias da bem aventurança eterna. Na meditação a alma aprende a conhecer, pelas criaturas, aquele que as fez.
Hugo distingue três graus na meditação: o pensamento, a meditação propriamente dita e a contemplação.
Ele estabelece esta distinção entre a meditação e a contemplação: a meditação tem como objeto uma verdade ainda obscura, e a contemplação uma verdade evidente. Na meditação o espírito procura descortinar um véu; na contemplação ele goza da verdade que possui. A contemplação começa pelas criaturas, e se eleva ao Criador, repousando nEle.
É, portanto, pela meditação e pela contemplação que se alcança a ciência. Não é somente a curiosidade que nos deve mover em busca da verdade, deve ser também o desejo da perfeição, porque, para Hugo, a finalidade da ciência é o pleno desenvolvimento das faculdades do homem. A ciência coloca o homem em possessão da verdade que é o princípio da vida, e dá ao amor o seu objeto próprio. A inteligência marcha em conquista da verdade; o amor repousa em sua posse; é o triunfo após o combate, a paz depois da guerra. A inteligência principia a obra, o amor a coroa. A ciência não deverá jamais separar estas duas grandes faculdades; ela deverá desenvolver e aperfeiçoar tanto uma quanto a outra, de outra maneira não cultivaria senão uma parte do homem e seria incompleta.
Esta doutrina era comum na Idade Média e, embora Hugo a tivesse desenvolvido de um modo que lhe é característico, é também a doutrina de São Boaventura e de São Tomás de Aquino. Eles não pregam a negação da razão e a destruição da ciência; não pregam uma absorção da alma em Deus que faça desaparecer a personalidade humana; não negam a Criação, ao contrário, a idéia da criação é o seu ponto de partida.
A doutrina pedagógica de Hugo faz parte de uma filosofia generosa e elevada: ela repousa sobre princípios sérios que merecem ao menos que se os estudem antes de condená-los. Nós os poderíamos resumir em alguns pontos básicos:
- Todas as obras exteriores de Deus são manifestações de seu pensamento e de seu Verbo, assim como a palavra é a manifestação do pensamento humano.
- Esta manifestação é feita pela Criação: é o mundo natural; pela Encarnação: é o mundo sobrenatural.
- Para se chegar à verdadeira ciência de Deus pelas suas obras, é necessário ter o coração puro, porque a verdadeira ciência une a alma a Deus, e o pecado é um obstáculo a esta união. A meditação é o caminho que a ela nos conduz.
- Sendo o objetivo da ciência a perfeição do homem, isto é, o pleno desenvolvimento de sua atividade e de sua vida, deverá exercitar a inteligência e o amor, e fornecer a estas duas faculdades o alimento que lhes é necessário.
- A ciência será sempre imperfeita sobre a terra: não será senão no outro termo de nossa peregrinação que nós encontraremos, em nosso fim, aquela plena possessão da verdade pela inteligência e pelo amor.
Os estudos no XIIº Século
Hugo não ocupou somente uma cátedra em São Vítor; era também o diretor da escola, tendo que fixar os objetivos do ensino e traçar o caminho que deveriam seguir os professores e alunos. Nós conhecemos o plano que ele havia adotado; e se o compararmos àquele que servia de regra às escolas de seu tempo, constataremos que Hugo não se separa das antigas tradições; ele até as respeita e as defende contra os ataques dos inovadores temerários.
O curso dos estudos não era constituído no décimo segundo século como o é atualmente. A literatura não tinha a importância que ela adquiriu nos tempos modernos. Não era, porém, o medo dos autores profanos que afastava os discípulos deste estudo, ou o temor de tornar-se pagão lendo Cícero, Virgílio e Horácio. A cultura literária nesta época não era senão uma preparação às demais ciências e se estendia pouco além do domínio das gramáticas. Nós sabemos por testemunhos positivos que as obras dos autores pagãos estavam entre as mãos dos estudantes, e, é verdade, estudavam-se os grandes modelos; mas este estudo era geralmente pouco sério. Toda a atividade intelectual era encaminhada para as artes liberais onde a literatura não ocupava senão um lugar muito acanhado.
Os ensinamentos que serviam de estudos preparatórios à Teologia se limitavam, de fato, ao Trivium e ao Quadrivium.
O trivium, o primeiro dos dois ciclos, constituía-se de gramática, retórica e lógica. O quadrivium, o segundo, constituía-se de matemática, geometria, astronomia e música. Apesar da diferença sugerida pelos nomes das quatro matérias, todas podem, pelo menos genericamente, serem reduzidas à matemática. A relação entre a geometria e matemática é evidente. A astronomia da época era o estudo matemático das posições e movimentos dos corpos celestes e da previsão dos fenômenos celestes ou relacionados com eles, como os eclipses e as estações do ano. A música, pelo menos a ensinada no Quadrivium, não era a arte musical, mas uma teoria da harmonia entre os diversos sons produzidos pelos instrumentos. O quadrivium remonta à obra filosófica de Platão, que, no livro intitulado “A República”, aponta o papel relevante da matemática na formação do pensamento abstrato do aluno como pré-requisito para o estudo da Filosofia, afirmando que nenhum aluno deveria iniciar os estudos de Filosofia antes dos 30 anos de idade e sem terem sido longamente treinados desde a primeira infância em uma vida moralmente virtuosa e desde a adolescência no estudo destas quatro matérias. Na época de Platão somente existia a Geometria Plana; em seu livro “A República”, Platão foi um dos primeiros homens da História que levantou a necessidade de se desenvolver o estudo da Geometria no Espaço, fundado em motivos puramente pedagógicos. Semelhantemente ao que Hugo iria posteriormente afirmar no quinto livro do Didascalicon, o ensino destas disciplinas não poderia ser imposto pela força. Na República diz Platão que “o homem livre não deve ser escravizado na aquisição de qualquer espécie de conhecimento, pois o conhecimento que entra na alma pela força não cria raízes nela”. “Os que nestas disciplinas tiverem demonstrado sempre maior agilidade passarão, quando tiverem alcançado a idade dos trinta anos, a se dedicarem à Filosofia em que, sendo já capazes de renunciar ao uso da vista e dos outros sentidos, procurarão atingir o ser absoluto. Antes dessa idade, porém, não, porque tomarão a filosofia como um jogo e, em vez de se proporem a investigar a verdade, a transformarão em um jogo de contradições e fim de se divertirem” (Nota do Trad.).
Todos os documentos desta época constatam a existência geral e o caráter preparatório destes dois ciclos de estudos. Nós encontramos em todos os lugares os mesmo objetos de ensino e mais ou menos a mesma divisão das ciências. Hugo nada inovou sobre este ponto, esforçando-se, porém, por ligar estes diversos estudos e um pensamento filosófico que é a própria finalidade a que devemos nos propor ao cultivá-los. Esta finalidade é o aperfeiçoamento do homem.
Assim, a ciência não terá como finalidade direta o aumento da fortuna pública e o aumento dos prazeres materiais. O corpo do homem vale mais do que o mundo material, e sua alma vale mais do que o seu corpo. Ora, em toda a obra, o fim é superior aos meios, porque os meios são para o fim e não o fim para os meios. É, pois, reverter esta ordem colocar a alma a serviço do corpo e o corpo a serviço da matéria. É algo que deveria ser repetido constantemente a um século materialista: a primeira finalidade da ciência é a perfeição do homem, e não é senão sob esta condição que seus progressos e os progressos das demais artes são também o progresso da humanidade.
Não somente Hugo tinha uma estima profunda da ciência por causa de sua finalidade, que ele determina com tanta precisão mas também por causa de seu objeto que ele considera sempre em Deus.
O homem”, diz Hugo de São Vítor no sétimo do Didascalicon, “costuma amar a ciência por causa de suas obras. Ele ama a agricultura, por exemplo, por causa dos frutos que ela produz. Mas se nós aplicarmos este princípio em Deus, teremos que dizer que sua obra é mais excelente que sua sabedoria, e preferir a criatura ao Criador; o que seria um erro. De onde que é necessário reconhecer que a ciência é preferível às suas obras, e que deve ser amada por si mesma. Se, porém, às vezes a obra é preferida à sabedoria, este julgamento não procede da verdade, mas do erro; porque a sabedoria é vida, e o amor da sabedoria é a felicidade da vida. É por isto que quando se diz, nas Sagradas Escrituras, que o Pai da sabedoria se compraz nela, longe de nós pensarmos que ele ama sua sabedoria por causa das obras que ele produz por seu intermédio. Devemos, ao contrário, dizer que ele ama as suas obras por causa de sua sabedoria. De fato, tanto mais dignas de seu amor são as obras de Deus, quanto mais se aproximam de sua semelhança: não é, portanto, a sabedoria por causa das obras, mas as suas obras que Deus ama por causa da sabedoria”.
Mas em que ordem deve o estudante se dedicar aos diversos ramos da ciência? Hugo aqui permanece fiel ao velho método. Ele quer que se percorra sucessivamente as diversas partes do trivium e do quadrivium, cuja classificação ele remonta a Pitágoras. Ele inclusive se queixa, no Didascalicon, que os estudantes de seu tempo se afastam desta via batida e estudam sem ordem e sem fruto.
Obras de Hugo de São Vítor
Expusemos os princípios fundamentais da doutrina de Hugo de São Vítor; agora só nos resta completar este estudo por alguns detalhes que nos serão oferecidos por um percurso rápido de alguns de seus outros escritos.
Hugo exercitou desde a sua primeira juventude a arte da composição escrita. Segundo testemunha o autor da vida de Reinardo, seu tio, Hugo já escrevia no mosteiro de Halberstadt. Mas estes primeiros ensaios não eram mais do que esboços que não chegaram até nós. Foi em São Vítor que ele compôs as obras que hoje possuímos, numerosas e variadas, atestando um espírito elevado, um coração amante, um trato costumeiro com a meditação, uma erudição extensa, uma piedade plena de doçura e de sensibilidade, e uma cultura literária imperfeita, sem dúvida, mas notável para a sua época.
Podemos considerar as obras de Hugo como resumo de suas lições. Ele era, de fato, sobretudo professor como o foram os homens notáveis de sua época. Ora ensinava gramática, ora filosofia, mais frequentemente teologia; ora fazia aos cônegos de São Vítor a conferência da noite, ora nos sínodos diocesanos ele era encarregado pelo seu bispo de endereçar a palavra ao clero de Paris. Daí vieram as suas obras de filosofia, de gramática, de teologia, seus tratados ascéticos, suas piedosas explicações das Sagradas Escrituras:
“Eu resumi”, diz ele no prefácio de seus Comentários sobre o Eclesiastes, “o que eu vos ensinei diariamente de viva voz sobre este livro de Salomão”.
Uma parte de suas obras é composta pelos comentários. O gênero dos comentários era freqüente no século XII. Antes de escrever, ordinariamente ensinava-se, e o ensino era quase sempre a explicação ou o desenvolvimento de um texto. Este método produziu ditosos resultados, e freqüentemente contribuía ao progresso da ciência. O comentador cultivava muitas vezes uma terra arada e a fecundava pelo seu trabalho; ao mesmo tempo desenvolvia as forças de seu espírito, aumentava seus conhecimentos e preparava-se assim para outras produções mais úteis e mais sérias. Entre o grande número de textos que podiam ser comentados, mereciam lugar de especial destaque os das Sagradas Escrituras. É particularmente nela que os professores mais ilustres amavam exercer a sutilidade de seus espíritos.
Como comentador, os trabalhos de Hugo continham em gérmem todos os seus demais escritos. Às vezes foram apenas pequenas notas ou notas explicativas, sem ligação e sem encadeamento, sobre versículos isolados. Às vezes era o esclarecimento de uma passagem obscura, a solução de uma objeção, mais frequentemente uma piedosa reflexão; outras vezes eram verdadeiras homílias; em outras ocasiões ele procedia, segundo o método escolástico, por questões e respostas, por divisões e subdivisões.
Além dos comentários, Hugo nos deixou outro grande número de obras telógicas que atestam o estudo profundo que ele realizou dos dogmas do cristianismo. Os teólogos se dividiam então em duas classes. Os primeiros se limitavam em estabelecer a doutrina católica pelas Sagradas Escrituras e pela Tradição, constatavam a fé da Igreja e tratavam como temerário qualquer um que procurasse levar suas vistas mais adiante. Este método foi denominado de método positivo. Já outros, possuídos pela necessidade que experimenta toda inteligência elevada de investigar a verdade, de iluminar-se com suas luzes, e se dar conta de sua fé, partiam do ponto onde estacionavam os demais. Os dogmas não eram para eles senão os princípios sobre os quais uma nova ciência, obra do exercício da atividade intelectual, seria erguida. Somente estes merecem o nome de teólogos. Seu método foi geralmente denominado escolástico. Infelizmente, encontraram-se entre estes alguns espíritos mais ardentes do que sólidos, mais curiosos que profundos, devorados por uma atividade inquieta, não procurando na teologia mais do que satisfazê-la e excitar os aplausos pela sutileza e pela novidade de seus raciocínios. No lugar de estudar pacientemente o dogma cristão,de deduzir suas conseqüências, de penetrar nas suas misteriorsas profundidades e descobrir-lhes a harmonia, seu trabalho mais parecia consistir em desnaturá-los. Tais diletantes imprudentes fariam perder a teologia, provocando o clamor não só contra eles, como também contra a verdadeira escolástica. Tanto naquela época como hoje, homens mais zelosos que esclarecidos condenariam a ciência em vez de reprimir o abuso. Mas a escolástica triunfa finalmente pelo gênio de Santo Alberto Magno, São Tomás e São Boaventura. A ciência teológica foi finalmente constituída.
Hugo foi o predecessor destes grandes homens. Com a obra De Sacramentis Fidei Christianae Hugo exerceu a maior influência sobre todas as Summas de Teologia que a Idade Média veria surgir, entre as quais as de Pedro Lombardo e de São Tomás de Aquino ocupam o primeiro lugar, no dizer de M. Laforet. É Hugo que inspirou a Pedro Lombardo, o qual se tornou por sua vez o mestre de todos os teólogos. Em suas especulações, sempre sólidas e frequentemente bastante profundas, ele se apoiou ordinariamente sobre os trabalhos de Santo Agostinho. É este incomparável doutor que é seu guia, é na sua escola que Hugo se formou. Hugo alimentou-se a tal ponto das idéias do bispo de Hipona que, ao lermos seus principais escritos dogmáticos, nos surpreenderemos de reencontrar, quase em cada página, certos pensamentos visivelmente emprestados deste Padre, embora o próprio Hugo nem sempre o percebesse.
Hugo de São Vítor continua um teólogo moderno de primeira ordem, tão respeitável por sua virtude quanto por sua ciência, diz M. Laforet. Seria para se desejar que seu tratado De Sacramentis, uma mina muito rica para a ciência teológica, fosse menos esquecida pelos homens que fazem um estudo especial de dogmática. O seu discurso é claro, e não se encontram nele essa quantidade de divisões, subdivisões, objeções e respostas que, sem dúvida, têm sua utilidade quando usadas moderadamente, mas que muito freqüentemente nos escritos dos escolásticos embaraçam o leitor em vez de ajudá-los.
A natureza destes trabalhos nos faz melhor compreender as características de seu tipo e do da escola que dirigiu. Quem se reporta, de fato, ao décimo segundo século, encontra um ambiente onde o espírito humano parece acordar de uma longa letargia, onde o desejo da ciência e a paixão do estudo se inflamam em todos os corações, onde o ensino conduz à glória quase em pé de igualdade com as armas, onde numerosas escolas se elevam e se combatem. Neste primeiro despertar é difícil alcançar a verdadeira ciência, e os espíritos estão impacientes, de modo que a controvérsia se torna o caminho mais fácil e mais curto para se chegar à celebridade. Que glória quando se reduz ao silêncio um adversário ilustre! Os escolásticos se batem as mãos e se juntam mais numerosos e mais ardentes em torno da cátedra do vencedor. As escolas eram como torneios onde se tinha menos em conta a força pessoal dos combatentes que os seus comportamentos e sucessos na luta. O próprio Hugo nos revela que chegou a hesitar em sacrificar a teologia pela dialética e o trabalho de escritor ao das controvérsias públicas. Felizmente o amor da verdadeira ciência triunfou.
Hugo não se intrometeu nas disputas de seus contemporâneos; suas características, seus gestos, seus métodos mesmo e os princípios da filosofia o afastam. Por um trabalho mais sério e mais paciente acabou exercendo sobre seu século uma influência mais útil. Neste ponto, foi o oposto de Pedro Abelardo. Este provocava os aplausos e corria atrás da celebridade; aquele procurava a verdade. Um deles, mais sutil e mais profundo, mais erudito que sábio, agitava as escolas, mas a abundância de seu espírito e o encanto de sua palavra não compensavam senão imperfeitamente a imperfeição de sua ciência. O outro, no meio da solidão, determina com o olhar seguro os limites e o objeto da ciência: ora se eleva até Deus, como que assiste de alguma forma aos seus conselhos, e expõe com nitidez o plano geral que Ele realiza em todas as suas obras; ora penetra no interior do coração do homem e lhe revela seus mistérios e suas grandezas. Ele é mais filósofo e teólogo que controversista.
Entretanto, mesmo assim ele entrou algumas vezes nas disputas. Mas quando Hugo combate é menos atleta que soldado; não procura fazer demonstrações de sua habilidade ou de sua força, mas sim defender a verdade. Não há um erro do décimo segundo século que não tenha sido pelo menos assinalado em seus escritos.
Conclusão
Hugo encontrou entre os estudantes de São Vítor um discípulo digno dele. Chamava-se Ricardo, e ficou posteriormente conhecido como Ricardo de São Vitor. Foi também como Hugo um estrangeiro na França: a Escócia foi a sua pátria; como ele foi discípulo de Santo Agostinho; como ele serviu-se da ciência para chegar ao amor que é a perfeição da vida; como ele aceitou os princípios da fé como fundamentos da ciência teológica, sem condenar a razão à imobilidade e interditá-la de toda especulação. Foi, juntamente com Hugo, luz para a escola de São Vítor e luz para os seus contemporâneos. Seus nomes são inseparáveis assim como seus escritos. É a eles que devemos remontar para encontrar o primeiro elo desta cadeia de teólogos ilustres que estabeleceram a ciência teológica sobre bases tão largas e tão sólidas, e que elevaram este magnífico edifício envolto, é verdade, algumas vezes, em turbilhões de poeira, ou mesmo coberto de lama, mas hoje inquebrantável no meio das maiores tempestades. É lá que damos a esta escola uma importância verdadeiramente histórica. O século XII prepara o século XIII, não pelo brilho de suas controvérsias, mas por um trabalho paciente, iniciado e continuado no seio da solidão mais profunda, e que alcançará seu mais alto ponto de perfeição nas obras de Alberto Magno, São Tomás de Aquino e São Boaventura.
O próprio são Boaventura, mais tarde, assim se expressaria sobre Hugo de São Vítor: “Todos os livros das Sagradas Escrituras, além do sentido literal que as palavras externamente expressam, ensinam três sentidos espirituais, a saber, o alegórico, que nos ensina o que temos de crer sobre a divindade e a humanidade de Cristo; o moral, que ensina o bem viver; e o anagógico, que nos mostra o caminho de nossa união com Deus; de onde se deduz que todas as Sagradas Escrituras ensinam estas três coisas: a geração eterna e a encarnação temporal de Cristo, a norma do viver e a união da alma com Deus, ou a fé, os costumes e o fim de ambos. Sobre a primeira destas coisas devemos exercitar-nos com afinco no estudo dos Doutores; sobre a segunda, no estudo dos Pregadores; sobre a terceira, no estudo das almas contemplativas. Santo Agostinho ensina de preferência a primeira; São Gregório, a segunda; São Dionísio Areopagita, a terceira. Santo Anselmo segue a Santo Agostinho; São Bernardo segue a São Gregório; Ricardo de São Vítor segue a São Dionísio Areopagita; porque Santo Anselmo se distingue no raciocínio, São Bernardo na pregação e Ricardo de São Vítor na contemplação. Mas Hugo de São Vítor se sobressai nas três”.
Referências
(1) Didascalicon, livro 1, cap. 1.
(2) De Sacramentis Fidei Christianae, prólogo.
(3) Didascalicon, livro 1, cap. 3.
(4) Adnot. eluc. in Ev. Joann., cap. 2.
(5) Tract. In Joann. Ev. 1.
(6) De Sacramentis Fidei Christianae, lib. 1, pars 5, cap. 3.
(7) Didascalicon, livro 7, cap. 1.
(8) Didascalicon, livro 7, cap. 4.
(9) Didascalicon, livro 7, cap. 4.
(10) In Explanatione Coelestis Hierarchiae M. Dionysii, cap.1.
(11) De Sacramentis, L. 1, pars 6, cap. 5.
(12) De unione corporis et spiritus.
(13) Speculum de mysteriis Ecclesiae, prólogo.