A Igreja sempre estimou a Sagrada Escritura, juntamente com a Tradição divino-apostólica, como fonte de fé. Ela atribui à Bíblia o valor de um sacramental, isto é, de objeto apto a comunicar a graça a quem o use com fé e devoção. Um dos sinais mais evidentes dessa estima é o fato de que a leitura pública da Bíblia sempre foi associada à celebração do Sacramento por excelência, ou seja, da S. Eucaristia; a comunhão com o pão da Palavra de Deus nas Escrituras deve preparar as almas para a comunhão com o Pão da Vida na Missa. Testemunho muito vivo dessa concepção é dado pela «Imitação de Cristo», «o único livro religioso que (fora a Bíblia) seja comum a católicos e protestantes», como se exprime o autor protestante C. Hilty, em «Lesen und Reden». Leipzig 1899, pág. 45, Eis, com efeito, o que lemos no citado opúsculo, l. IV c. 11, n. 4:
«Sinto que nesta vida me são absolutamente necessárias duas coisas, sem as quais se me tornaria insuportável esta mísera existência …
A mim, enfermo, deste o teu corpo sagrado para a restauração da mente e do corpo; e concedeste a tua palavra como lanterna para os meus passos.
Sem essas duas coisas não poderia viver retamente, pois a Palavra de Deus é a luz de minha alma, e o teu sacramento é o Pão da Vida».
Circunstâncias Históricas
Aconteceu, porém, que circunstâncias contingentes da história levaram algumas vezes as autoridades eclesiásticas a exercer vigilância sobre o uso das Escrituras. Tais foram na Idade Média:
a) a heresia dos Cátaros ou Albigenses, que, abusando dos livros sagrados, induziu os Padres dos concílios regionais de Tolosa (1229) e Tarragona (1234) a vedar provisòriamente aos cristãos leigos a leitura da Bíblia;
b) os erros de J. Wicleff, em vista dos quais o sino do regional de Oxford (1408) proscreveu as edições da S. Escritura que não tivessem aprovação eclesiástica (os hereges facilmente deturpavam o texto sagrado).
Estas medidas, contingentes como eram, não visavam impedir a propagação habitual do código sagrado. Para só falarmos da Alemanha, lembremos que o primeiro grande livro impresso por Gutenberg foi a Bíblia em dois volumes (1453-1456). Até 1477 saíram do prelo cinco edições da Escritura em alemão; de 1477 a 1522, vieram a lume nove edições novas (sete em Augsburgo, uma em Nürenberg e uma em Estrasburgo); de 1470 a 1520 apareceram cem edições de «Plenários», isto é, livros que continham as epístolas e os evangelhos de cada domingo. Isto bem mostra como a Igreja estava longe de querer, em circunstâncias normais da vida cristã, restringir o estudo da Bíblia.
A Reforma protestante
No séc. XVI, porém, Lutero e os seus discípulos, fazendo da Escritura a única fonte de fé, donde hauriam suas inovações doutrinárias, inspiraram aos pastores da Sta. Igreja medidas correspondentes, que tinham em mira preservar da sutileza exegética dos inovadores o povo cristão. Assim o Papa Pio IV aos 24 de março de 1564, na bula «Dominici gregis» (regra 4a), determinou que o uso de traduções vernáculas da Sagrada Escritura ficava reservado aos fiéis que, a juízo do respectivo bispo ou de algum oficial da Igreja, pudessem ler a Escritura sem risco, antes com proveito, para a sua fé e piedade. De resto, em Portugal o senso religioso dos reis fidelíssimos já havia antecipado essa determinação pontifícia, adotando medidas análogas, válidas para o território nacional. Note-se que as restrições caiam apenas sobre as traduções vernáculas, ficando o texto latino da Vulgata acessível a todos os fiéis. Não há dúvida, no séc. XVI, período de confusão religiosa e de inovações mais ou menos subjetivas, a leitura da Bíblia podia constituir perigo para os fiéis não familiarizados com as regras objetivas da hermenêutica.
Apôs a Paz da Vestfália (1648), que, pondo fim à Guerra dos Trinta Anos, estabilizou de certo modo a situação religiosa na Europa, foram perdendo sua atualidade as determinações que no séc. XVI controlavam o uso da S. Escritura e os Papas voltaram então a estimular a leitura da Bíblia. Eis como, por exemplo, escrevia Pio VI (1775-1799) ao arcebispo A. Martini, editor de uma tradução italiana do texto bíblico numa época em que os fiéis católicos ainda hesitavam sobre a oportunidade de tal obra: «Vossa Excelência procede muito bem recomendando vivamente aos fiéis a leitura dos Livros Sagrados, pois são fontes particularmente ricas, às quais cada um deve ter acesso».
Tempos Atuais
S. Pio X (1903-1914) em carta ao Cardeal Cassetta declarava:
Nós, que tudo queremos instaurar em Cristo, desejamos com o máximo ardor que nossos filhos tomem o costume de ler os Evangelhos, não dizemos frequentemente, mas todos os dias, pois é principalmente por este livro que se aprende como tudo pode e deve ser instaurado no Cristo… O desejo universalmente esparso de ler o Evangelho, provocado por vosso zelo, deve ser secundado por vós, na medida em que se aumentar o número dos respectivos exemplares. E oxalá jamais sejam propalados sem sucesso! Tudo isso será útil para dissipar a opinião de que a Igreja se opõe à leitura da Escritura Sagrada em língua vernácula ou lhe suscita alguma dificuldade.
Os Pontífices subsequentes, principalmente Bento XV e S. Santidade Pio XII, muito têm incentivado tanto o estudo cientifico da Bíblia como o uso da mesma na vida de piedade; vejam-se os testemunhos respectivos em «P.R.» 4/1958, qu. 5.
Em conclusão, tenha-se por certo que a Santa Igreja, hoje como em seus primórdios, estima a leitura da Bíblia como um sacramental. Acontece, porém, que nem para todo organismo o alimento mais nutritivo é sempre o mais adequado; períodos de doença exigem dieta… Foi o que se deu com o Pão da Palavra bíblica: em virtude de situações anormais nas quais se achava o povo de Deus, a Sta. Igreja, em determinadas épocas ou regiões, teve que controlar o uso da Sagrada Escritura, a fim de impedir abusos contaminadores da fé (não faltava entrementes aos fiéis à Palavra viva da Tradição divino-apostólica). Caso não tivesse assim procedido, a Igreja não haveria sido Mãe…